Um amigo meu trabalha na Central de Leitos, uma repartição da Secretaria de Saúde do Estado. Do que entendo, sua atribuição é encontrar “a melhor vaga para cada paciente”. Mas não é sobre isso que versa este texto. Apenas acrescento, como curiosidade, que meu amigo confirmou que a Central tem poucas vagas para um mar de solicitações (nenhuma surpresa nisso).
O objetivo desta digressão, todavia, é comentar a descrição da solicitação de internação de um paciente em especial, relatado a mim por meu amigo. Não entrarei em detalhes aqui, é claro, para proteger as identidades envolvidas. O caso é um senhor idoso, com uma história de muitos dias de uma doença consumptiva, com perda progressiva de suas capacidades, a um ponto de estar o pobre senhor acamado, sem conseguir andar, nem falar, emagrecido e muito fraco. Nesta situação extremamente penosa, e aí introduzo meu grifo, o patrão do paciente, trabalhador rural em sua propriedade, procurou a família deste para que assumisse seu cuidado.
Como assim? O paciente não estava com a família? Estava com o patrão? Em que situação? E porque o patrão, se o paciente (ao que parece) residia em sua propriedade rural, onde trabalhava, não procurou assistência médica para seu “funcionário”? Podem os crentes na moderna e cruel “ingenuidade” do sistema acreditar que nada se pode provar com essa história, mas, a meu ver, estamos diante de mais uma das desgraças modernas: a volta da escravidão.
A escravidão moderna é diferente da antiga. No lugar de correntes e senzala, um modelo mais sutil de encarceramento: os trabalhadores recebem sim salário, mas tem que comprar do próprio patrão comida, gêneros de primeira necessidade e um lugar para dormir (isso mesmo, pasmem, o empregado paga para ter onde repousar). Com uma equação simples e premeditadamente maligna, o que os trabalhadores pagam chega rapidamente a passar do que ganham, fazendo deles… devedores! Assim, devendo cada vez mais dinheiro, eles são enganados a pensar que sempre precisam trabalhar cada vez mais para pagar suas “dívidas”. No final, saem sem absolutamente nada, nenhum produto de seu trabalho duro. Sério, em qualquer país minimamente desenvolvido e na mente de qualquer pessoa minimamente humana isso é um completo absurdo.
Se as correntes de ferro foram substituídas por um livro-caixa fraudado, as chicotadas e castigos físicos também foram substituídas por versões modernas. Capangas, instalações remotas em propriedades rurais, ausência de contato de qualquer tipo com o mundo exterior, ameaças veladas (ou nem tanto) aos familiares e entes queridos, são a versão moderna. Quer algo mais parecido com aqueles filmes de terror psicológico clássicos de cárcere privado?
Bem, aqui em nosso país a palavra “escravidão” parece ter sido proscrita informalmente da mídia (convenientemente controlada por grandes grupos corporativos) e do jargão legal, substituída pela expressão “politicamente incorreta” trabalho análogo à escravidão. Hora, o famoso médico sírio (descendente de gregos) do século I, Lucas, mais conhecido por ter escrito um dos 4 evangelhos aceitos pelo cânone cristão, era um escravo. Servindo um nobre romano, tinha uma vida cheia de regalias, mas não tinha nem posses, nem liberdade. Ninguém parece ter muita dúvida em chamar sua condição trabalhista de escravidão. Se o eufemismo brasileiro atual fosse aceito na época, nem Lucas nem a maioria dos cristãos famosos teria sido considerado escravo. Eles teriam apenas trabalhado em condições análogas à escravidão, simples assim. A medalha Cara de Pau para quem criou esta expressão infame, por favor!
E a crueldade apenas aumenta: mesmo com uma bruma de eufemismos encobrindo sua verdadeira natureza, os senhores escravagistas brasileiros modernos não estão satisfeitos, e em conluio com os corruptos sistema judiciário e poder legislativo brasileiros, tentam “lavar” de vez suas mãos, como Pilatos fez, para continuar nas analogias bíblicas. Arrogantes, achando-se acima de leis (nós escolhemos o presidente e os ministros, disse um poderoso senador/latifundiário num programa de televisão) e de qualquer justiça, eles tencionam transformar qualquer tentativa de denunciar suas práticas abusivas na mais completa futilidade, e condenar seus “trabalhadores em situação análoga à escravidão” a morrer na servidão anônima.
Assim, voltamos a nosso solitário paciente aguardando uma vaga num sistema de saúde falido. Pobre homem, quem olhará por ele após ter sacrificado seus melhores anos e sua saúde trabalhando como escravo para um latifundiário sem escrúpulos, que daria náuseas nos primeiros cristãos? Quem estará com ele enquanto morre pobre e só, após ter sido enganado por anos e anos pelo “sistema da meritocracia” brasileiro? Quem levantará um dedo ao menos contra isso?