Leituras
26 jan., 2012
João Calangro

09 de dezembro de 2007 - Lembrança e esquecimento

A memória é uma coisa interessante. Estou lendo “Alucinações Musicais” do médico inglês radicado em Nova Iorque Oliver Sacks. Ele descreve um caso de um músico que perdeu a memória após um violento surto de encefalite herpética, uma grave infecção viral do cérebro. Quando recuperou-se, ele tinha uma memória de duração curtíssima, e tinha esquecido completamente de seu passado. Ele vivia num espaço de tempo de alguns segundos, cercado por todos os lados da mais completa escuridão, a escuridão da inconsciência. Ao piscar os olhos, ele esquecia do momento imediatamente anterior, de forma que, quando os abria de novo, era como se estivesse acordando naquele instante. Em seu diário, ele escrevia algo assim: “19h10 - acordei pela primeira vez; 19h15 - finalmente acordei; 19h20 - agora, definitivamente acordado; 19h25 - depois de semanas dormindo, acordei”. Para sua mulher, ele dizia: “não sinto nada, não sei nada, não consigo pensar, é como estar morto”. Em sua graphic novel “Sandman”, Neil Gaiman criou um castigo semelhante para o mago que manteve Morfeus, o senhor dos Sonhos, aprisionado: ele vivia num eterno pesadelo, acordando constantemente dentro de outro sonho terrível.

Eventualmente, depois de uma década ou tanto, o paciente melhorou, saindo de seu estado “infernal”, conseguindo assumir algum contato com a realidade, embora mantendo uma memória curtíssima ainda, apenas alguns momentos. Lembrando uma versão radical do filme “Como se fosse a primeira vez” (2004), ele mostra um amor esfuziante e intenso pela esposa, que o visita sempre na instituição onde ele está internado (uma fazenda para pacientes crônicos), a cada cinco minutos, ou perto disso, abraçando-a e cumprimentando-a, elogiando-a, como se fizesse meses que não a visse. A mulher dele escreveu um livro, “Forever Today”, publicado em 2005, para (nas palavras dela), entender “quem nós somos? O que isso significa para nós? O que vai acontecer conosco a partir de agora?” Numa entrevista para o “Guardian Unlimited” online, ela dá alguns detalhes sobre seu relacionamento com seu marido, antes e depois da catástrofe que os acometeu.

O mais importante é o questionamento: somos a nossa memória? Sem memória, não somos nada? Aparentemente, as repostas a essas perguntas são “sim” e “não”, respectivamente. Para o paciente em questão, temos a impressão de que a perda de memória, embora extrema, não “destruiu” o que ele é, mas isto é apenas uma aparência superficial criada pelo fato dele ter se agarrado à uma das poucas lembranças que lhe restaram: sua mulher, com quem estivera casado apenas 6 meses antes de adoecer. Seguramente, se ele tivesse perdido completamente a recordação de sua amada, se a visse como mais um dos estranhos personagens de seu pesadelo de eterno acordar, não teríamos essa impressão de “manutenção” de algo da personalidade , do ego, do self, apesar da amnésia quase completa. Sem capacidade de se comunicar com os outros, devido à falta completa de conteúdo para comunicar (ele teria apenas alguns segundos de existência para “viver” eternamente) ele seria institucionalizado até o fim dos seus dias, subvivendo num estado de terror eterno, mal se dando conta do que lhe acontecera. Decididamente, para sua grande sorte, a memória de sua mulher o salvou desse destino severo. Hoje, eles podem ser vistos, quando estão juntos, apaixonados como um casal de recém-namorados (como é descrito na entrevista do Guardian) o que bem pode ser encarado como uma verdade constante. Afinal, se ela sair de sua vista por um momento apenas (digamos, para pegar um café logo ali), ele a recebe de volta com abraços, beijos e carinhos, como se a tivesse visto apenas há muitos meses atrás e estivesse com uma enorme saudade. Eles vivem assim há mais de vinte anos…

Na entrevista do Guardian eles citam a lenda grega do mundo dos espíritos, o Hades, onde passavam dois rios: Mnemosine (lembrança) e Lete (esquecimento). Mnemosine era também tida como uma deusa, a personificação da memória, mãe das musas.

Assim como Lete era também uma ninfa, personificação do esquecimento.

Para ver uma interessante discussão sobre a memória como significando verdade (aletheia = negação de Lete), eternidade, vida e esquecimento como significando morte, perda, escuridão (Lete é filha de Eris - a discórdia - a qual é filha de Nix, a noite, mãe também de Hypnos - ou Morfeus - do sonhar e Tánatos - a morte) pode-se checar o ensaio “De mortos e monumentos” de Osmar Soares.

Nota (2023): eu não lembro como cheguei a esse texto, e nem encontrei mais nada sobre seu autor. Mais um encontro aleatório nas fímbrias da periferia da rede de computadores.

Nix, a deusa noite, era mãe de todas as divindades já citadas e de Algea (dor), do destino e das moiras (divindades gregas relacionadas ao destino), do dia, de Nêmesis, entre outras. Os gregos tinham uma forma poética de dizer que acreditavam naquele conceito de que nascemos do nada e para lá voltaremos.Ou em outras palavras, acordamos da escuridão do esquecimento e, no fim, dormiremos novamente, entregues à noite eterna. Ou ainda: nosso destino são sempre as águas escuras do Lete. Que o digam os pacientes gravemente amnésicos.Em tempo: por ser o rio do esquecimento, Lete também era tido como o rio do perdão pelos gregos.

21 de março de 2009 - A volta do recém-ateu

Passei um tempo considerável sem postar neste blog. Volto ainda ateu, mas de uma forma estranha, ainda recém-ateu. Não me sinto como se fosse desprovido de crenças religiosas há muito tempo. Sinto-me constantemente num estado de frágil equilíbrio. Tal e qual a pena ao vento de Forrest Gump. Que citação! Bem, é para combinar com alguns dos autores que citarei a seguir. Nesse um ano que não postei li pouco fora da minha área de trabalho, pois estava muito envolvido com publicação científica. No entanto, li Richard Dawkins (Deus, um delírio), Amit Goswami (Universo autoconsciente) e Loren Eiseley (A Imensa Jornada). A conclusão a que cheguei: o único autor que não me fez perder tempo foi Loren Eiseley!

Sinceramente, Richard Dawkins é xarope! Sua filosofia é primária, seus argumentos são facilmente discutidos e sua ciência é somente especulação vazia. Qual é a vantagem dele sobre o idealismo pseudopoliticamente correto de Amit Goswami? Dawkins e Goswami são ambos dogmáticos defensores de suas idéias pseudofilosóficas e, quando os argumentos acabam, partem para a briga - agridem os seus detratores. Ambos têm argumentação baseada principalmente em suas opiniões e em jogos lógicos suspeitos, e não em evidência. No entanto, ambos arrogantemente acham que estão revestidos da maior de todas as verdades. Ambos baseiam suas crenças em idéias científicas aceitas mas polêmicas (darwinismo e mecânica quântica), coincidentemente pouco entendidas pela maioria e fadadas a gerarem idéias esdrúxulas nas mentes de pseudocientistas que “interpretam” suas consequências. Ou seja, ambos são pastores ou bispos defendendo sua exegese particular de suas “bíblias”. Ambos lucram com sua atividade “intelectual”. Ambos usam suas idéias para gerarem um código moral particular, mesmo que oculto por uma postura supostamente isenta do ponto de vista ético, vagamente embutido dentro de suas opiniões. Como o fato de Dawkins criticar mais ardentemente as religiões não ocidentais (como a islâmica, baseando-se no fato de que uma ínfima quantidade de islâmicos é terrotista, mas esquecendo-se do monte de malucos protestantes dos EUA e europa) e Goswami defender o misticismo oriental e criticar a religião judaico-cristã. Os dois são farinha do mesmo saco e se o ateísmo e o idealismo religioso dependesse desses dois, estava tudo perdido!

Descobri Loren Eiseley lendo uma deturpação muito conhecida de um de seus ensaios: “The star thrower” (o atirador de estrelas). A história, muito conhecida, pode ser lida aqui em uma de suas versões populares. Essa versão foi criada pelo orador motivacional Joel Barker, para servir como exemplo em palestras em empresas e faz parte de um vídeo de 6 minutos gravado por ele. A idéia básica de Loren Eiseley, intrinsecamente pessimista, porém contendo um inesperado otimismo pouco óbvio e baseado numa crença na imprevisibilidade dos seres vivos (para entender isso é preciso ler o ensaio completo de Eiseley) foi alterada para transmitir a importância do papel de cada um numa estrutura maior. Claramente voltada para gerar os 60% de funcionários “felizes” que fazem exatamente aquilo que se espera deles e a quem os empresários mais desprezam (isto dito num episódio do reality show “O Aprendiz” pelo empresário Roberto Justus, que declarou que os melhores funcionários são os 30% ou menos que “criam”), afastou-se bastante do sentido original de Eiseley. A idéia de Eiseley está longe de tentar fazer com que nos satisfaçamos com o pequeno, pelo contrário, ele transmite inicialmente uma tal impressão de impotência diante da grandeza do universo que chega a ser sufocante. Para depois achar, do inesperado, uma fonte de liberdade e beleza difíceis de descrever. Ler este ensaio mudou um pouco a maneira como vejo as pessoas e as coisas em geral, além da minha própria idéia sobre ateísmo e religião. Depois de ler Loren Eiseley, profundo, denso, pessimista, ateu, mas dono de um olhar único para a beleza do mundo, finalmente compreendi a pequeneza de pessoas como Dawkins.

Nota (2023): no meu texto original, nem mesmo coloquei o nome das obras citadas, ou seja, foi um texto displicente e escrito sem pretensão de nada. Porém, nunca me senti convencido pela argumentação de Dawkins, um cético que chegou a criar uma pseudociência (memética). Eu sou completamente ateu, porém quero crer que tenho um pouco mais de solidez na minha (falta de) crença. Além disso, continuo não gostando que Dawkins (e mais um monte de intelectuais ocidentais) continuem a ser tão flagrantemente anti-islâmicos. Bem como não concordo com a postura ética de Goswami (mas ele é claramente um charlatão, então que ética ele teria?).

06 de fevereiro de 2011 - Novo livro de Stephen Hawking

Comecei a ler “The Grand Design”, do eminente matemático e físico Stephen Hawking, que todo mundo conhece apenas pela sua condição física, restrito a uma cadeira de rodas e com cara de espantalho devido à ELA, e não pelas suas idéias. Ao cabo de 2 capítulos, estou cada vez mais convencido de que, com 70 ou 170 de QI, não deixamos de ser todos muito humanos. Logo de entrada, Hawking dispara “a filosofia está morta”, idéia que, embora claramente coerente com o restante de seu pensamento, nos é introduzida com aquela displicência desprovida de fatos que os cientistas guardam para o que eles acreditam serem as maiores obviedades do cosmo. No segundo capítulo, ele declara-se adepto do determinismo científico em sua versão mais radical, Laplaciana, e define o livre arbítrio como uma ilusão sofisticada. Sem parar para ponderar que tal idéia provavelmente soa tão improvável para a maioria quanto os exemplos de crenças primitivas e animistas com as quais ele brincara, penso que a óbvia existência de fenômenos estocásticos e, mais ainda, os não tão óbvios sistemas complexos ‘quase-deterministas’ não devem fazer parte do mundo de Hawking. Mais perturbado fico quando lembro que a mais bem sucedida teoria científica existente, capaz de prever eventos com uma precisão de nove casas decimais, a mecânica quântica, não é determinista do ponto de vista clássico. Ainda no seu início, esta nova obra de Hawking, que se propõe a mostrar ao leigo que a ciência já consegue explicar tudo no universo, inclusive porque ele existe, compromete-se claramente com um paradigma bem definido a priori – determinismo materialista clássico – meio démodé dentro da própria física moderna, que pulula com idéias bem estranhas. Hawking junta-se, assim, a grandes nomes como Roger Penrose (este idealista matemático, platonista), que, em idade avançada, escreveram livros para leigos de fôlego, apenas para defender seus pontos de vista particulares. Resta saber se “The Great Design” vai ter a mesma influência que “The Emperor`s New Mind”, lido por poucos e citado por muitos. Possivelmente não, a não ser que alguma ‘seita’ entorte seus conceitos para torná-lo popular. Para mim, ler o restante do livro vai ter aquele sabor chocho de filme que mata a ação nos primeiros 15 minutos. Tomara que pelo menos a pipoca seja boa! Bom, em matéria de livro sobre ‘ciência’ que tenho lido ultimamente, [As Cosmicômicas][cos] de Ítalo Calvino vai ganhando…

Nota (2023): o livro de Hawking é realmente bom, e hoje em dia eu tendo mais a abraçar a postura filosófica dele (mas ele não disse que a filosofia tinha morrido!?!?).

26 de março de 2011 - O argumento da assinatura

Lendo um artigo de Marc Hauser, eminente biólogo evolucionário, psicólogo e estudioso da evolução da mente humana, professor de Harvard. Ele discorre sobre as características singulares da mente humana e o grande vão entre nós e mesmo os animais mais desenvolvidos, em particular a linguagem e criatividade humanas, que não tem paralelos na natureza. Um prato cheio para os defensores do argumento do desenho inteligente. À parte esta discussão básica, aproveitei para fazer um exercício mental. Posso testar logicamente os argumentos céticos, antiteístas, até o extremo e ver se tais argumentos suportam uma reductio ad absurdum. Creio que o exercício intelectual mais básico para quem quer realmente dedicar-se ao estudo da questão teísta não é o desmonte sistemático dos argumentos de seus opositores, algo que em geral não traz nada realmente novo e recai rotineiramente em falácias, sofismas e preconceitos. O exercício básico deve ser testar seus próprios argumentos, abandonando os que não se sustentam. Posso exemplificar pelo que me ocorreu hoje, o que chamo o Argumento da Assinatura. Este argumento é largamente discutido pelos dois lados, e constitui uma das linhas principais de exploração de um conhecido livro de um autor cético, Contato (Carl Sagan). Interessantemente, Sagan cria a situação hipotética na qual a assinatura é encontrada. O argumento pode ser resumido desta forma: porquê deus não assinou claramente sua obra, a fim de provar sua existência inequivocamente e fomentar a fé? Embora muito usado pelos céticos, este argumento é extremamente simplório e facilmente descartado pela lógica, eu diria que é de nível infantil, mesmo. O fato de que até nomes do porte de Sagan terem centrado neste argumento mostra a fragilidade lógica da maioria dos discursos céticos, que somente granjeiam hoje maior proeminência por motivos culturais e conjunturais (é fancy, fashion) e não por mérito. A contra-argumentação, sucintamente:

  1. Muitas linhas de raciocínio podem ser criativamente desenvolvidas, mas uma das que me agrada mais é a analogia com uma obra de arte. Composições artísticas são complexas expressões dos estados mentais do artista, em geral sem assinatura ou com uma dissimulada, por motivos óbvios. O intuito do artista, embora autoral, não é criar um outdoor de si mesmo e a assinatura potencialmente perturbaria a mensagem da obra.
  2. Fadada a interpretações pessoais como pode ser, esta argumentação deve ser complementada por outra: o argumento da assinatura pressupõe um conhecimento sobre a mente de deus; na hipótese de sua existência, que poderíamos dizer sobre seus motivos? Por que supor que ele deveria ou quereria deixar uma assinatura?
  3. O argumento final, porém, é este: somente se poderia supor sobre a vontade de deus de deixar ou não uma assinatura se primeiro for considerada a hipótese de sua existência. O cético radical, assim, sequer poderia formular o Argumento da Assinatura.

Concluindo, este argumento enfraquece a posição cética e deve ser abandonado por qualquer um que deseje defender o ponto de vista antiteísta. Em outras ocasiões, voltarei a fazer este exercício com outros argumentos. Marc Hauser não defende o desenho inteligente, mas relata que, por enquanto, não temos ainda como responder à questão de porque sou eu e não um chimpanzé que postou este texto!

Nota (2023): como as coisas são, não é mesmo? Hauser, uma estrela na época em que escrevi o texto, já estava sendo investigado por má conduta científica (ele apenas inventou os resultados dos seus “trabalhos científicos”, só isso), e afastou-se voluntariamente de sua posição como professor de Harvard em agosto de 2011 (menos de 6 meses depois que eu escrevi esse texto). Ele se notabilizou por defender que o ser humano é realmente muito diferente dos outros animais, incluindo os símios mais proximamente aparentados a ele. Então, tá bom, todo mundo é mesmo macaco, e daí?

01 de maio de 2011 - O argumento da lacuna

Lendo “Decoding Reality”, de Vlatko Vedral, físico conhecido por seu trabalho com a Teoria da Informação Quântica. Logo no início do livro ficamos surpresos com o aparentemente completo e profundo conhecimento que Vedral tem dos mais variados campos do conhecimento. Ao contrário de Hawking, que matou a filosofia (vide meu comentário sobre seu último livro), ele passeia por complexos conceitos de outras áreas. Seu ponto de vista é bem original, propondo um tipo de idealismo materialista, onde a informação é o material básico de construção da realidade. Ele explora semelhanças entre ciência e religião e propõe uma mudança no modo como vemos nosso mundo, que pode levar a uma mudança de paradigma. Alguma reminiscência? Para quem lia livros de divulgação científica para leigos nos anos 80, uma lembrança é imediata. Fritjof Capra: o autor de “O Tao da Física”, controversa obra que fez um paralelo entre ciência e religião e ainda influencia opiniões até hoje. Algumas diferenças importantes: Capra foi um físico medíocre, Vedral é respeitado pelos seus pares e originou conceitos hoje muito discutidos na física moderna; Capra ficou mais conhecido pela sua justificação aparente de conceitos do misticismo e por participar do movimento por idéias holísticas (não importando muito o que isso realmente significa), já Vedral visita a religião mais superficiamente, embora isso ainda chame a atenção dos leigos; Capra também enveredou pelo estudo dos sistemas complexos, onde obteve maior impacto na discussão e divulgação de seus conceitos (a maioria com importância na biologia), Vedral, na verdade, demonstra sérios equívocos quando divaga sobre genética e biologia, o que me leva a pensar se ele realmente entende algo além de sua área. Em resumo, Capra é um físico apagado que obteve mais influência na biologia de sistemas complexos, enquanto Vedral é um físico de renome cujas idéias com certeza teriam impacto na biologia, mas esbarram no conhecimento limitado que ele tem desta área. Ou por outra: Capra deve ser lido desconsiderando a física, Vedral deve ser lido considerando apenas a física da Informação Quântica, sua especialidade. Isso é uma pena e teria sido evitado se Vedral tivesse consultado especialistas em genética com interesse na teoria da informação. No geral, por enquanto Capra ainda tem vantagem, a meu ver.

Lembrei de outro argumento cético, que a leitura de Vedral também suscita, que chamo o argumento da lacuna. Em resumo, antes de importantes descobertas científicas recentes, deus parecia ser a única explicação disponível para a complexidade. Genética, física moderna e, principalmente, Darwin, parecem ter “empurrado” deus para os momentos iniciais do universo e os poucos nichos sem explicação da biologia, como a cognição e a origem da vida. Ou seja, as lacunas do conhecimento científico.

Esse “deus das lacunas” será previsivelmente excluído de todo com os futuros desenvolvimentos da ciência. Trata-se de um argumento importante e muito utilizado por céticos. Os próprios religiosos preocupam-se com este tipo de conceito, temendo um culto a este “deus das lacunas”. Apesar de aparentemente sólido, este argumento não é robusto. Seu problema mais óbvio pode ser resumido pela pergunta: “porque existe a realidade?” Ou seja, mesmo que deus não precise mais ser invocado para explicar o universo, porque existe algo, ao invés de nada, pra começo de conversa? Essa pergunta não é nova, tem séculos e faz parte da prova da existência de deus de Leibniz. Eis uma das razões porque insisto em dizer que Dawkins não entende nada de filosofia e não defende bem o ateísmo, apenas tornou-se popular. Um outro problema com o argumento da lacuna, menos óbvio, é seu caráter probabilístico: ele não prova nada, apenas mostra uma tendência central. Assim como a segunda lei da termodinâmica não é uma lei física real, o argumento da lacuna não se sustenta, logo, deve ser abandonado pelos céticos.

26 de janeiro de 2012 - Rei de todas as moléstias

Estou passando pouco mais da metade da leitura do livro “The Emperor of All Maladies” do médico americano de origem indiana Sidharta Mukherjee. Oncologista, ele trabalha no Columbia University Medical Center, em NY, onde atende pacientes com câncer e leciona. Também um cientista, ele publicou extensamente em sua área, em revistas de prestígio. Agora, após a publicação de seu livro, em 2010 e de ganhar o Pulitzer em 2011, ele foi repentinamente catapultado ao estrelato. Seu livro está disponível apenas em inglês mas, graças aos modernos sortilégios da globalização, pode ser obtido em qualquer aldeia do Xingu, desde que com uma conexão de internet… Tem-se escrito muitos relatos de leitores mesmerizados por sua escrita ágil, elétrica e apaixonada, porém ao mesmo tempo detalhista, minuciosa e crítica. O NY Times declara que Mukherjee tem “DNA literário” e faz comparações cinematográficas, como identificar seu laboratório com um cenário de Stanley Kubrick ou ponderar que, à primeira vista, Mukherjee parece menos com um cientista médico do que com um produtor de Bolywood (a frenética “Hollywood” indiana). Exageros à parte, é bem verdade que o escritor domina seu “enredo” de uma forma novelesca e, porque não, cinemática. Apesar de ter se proposto a escrever uma história sobre o tratamento do câncer ao longo das eras, Mukherjee diz ter achado o verdadeiro caminho dentro de sua busca literária quando deu-se conta de que escrevia uma “biografia do câncer”. Mais do que isso, porém, Mukherjee consegue transformar o que ocorreu através de áridas discussões científicas e longos intervalos de tempo na mente de cientistas cismarentos e desconfiados uns com os outros, em um vibrante enredo que prende o leitor do início ao fim. O que sucedeu-se através dos dramas e idiossincrasias de milhares de pacientes anônimos e centenas de médicos enclausurados em seus inacessíveis postos, torna-se numa aventura das mais emocionantes. Não apenas uma aventura de indivíduos, algumas vezes mesquinhos, muitas vezes heróicos, porém sempre repletos de uma força de vontade por vezes sobre-humana, ainda que semeados das mesmas fraquezas ordinárias de todos nós. Não, a aventura desenhada por Mukherjee no seu “The Emperor of All Maladies” é de toda a humanidade, do gênero humano em sua totalidade e profundidade. Para além da “Guerra contra o Câncer” existe a guerra do ser humano contra ele mesmo, contra sua natureza falha e rebelde. Através das vitórias e das derrotas que ele descreve ao longo do tortuoso panorama que ele revela, o autor nos leva a refletir sobre nós mesmos, nossas (in)certezas, e nos ajuda a descobrir aquilo que realmente nos une a todos, heróis, algozes, anônimos: nossas humanas fraquezas. Epitomizando tal verdade, numa das passagens mais tocantes, o título da parte 3 do livro diz: “Will you turn me out if I can’t get better?” descrevendo parte de um diálogo com um paciente. Um dos capítulos, intitulado “The smiling oncologist” mostra como, em aparente resposta a esta demanda dos frágeis pacientes agredidos pela quimioterapia, os oncologistas adquiriram uma atitude de excessiva confiança e relutância em admitir o sofrimento alheio, uma óbvia barreira contra a insuportável presença constante da dor humana. Mukherjee nos canta uma aventura, ao estilo dos grandes escritores da antiguidade, como se escrevesse uma Ilíada do Câncer, onde heróis tão audaciosos quanto um Agamenon ou um Aquiles (Halsted ou Farber, por exemplo) nos são descritos em batalhas épicas. Ao mesmo tempo, a linguagem tecnicista que parece querer reinventar a realidade e que filtra-se através dos personagens, como a dar voz viva à sua arrogância, e aos erros e vícios humanos e mundanos que permeiam a história nos remetem a um James Joyce. Mukherjee fala várias vezes que, como nas tragédias gregas, a trama da Guerra contra o Câncer está repleta de hubris, da desgraça dos heróis quando ousam, temerários, poder mais que o terrível poder contra o qual lutam. Também ele nos fala de um admirável mundo novo, onde o câncer não é mais uma doença incompreensível ou incurável, um mundo onde vivemos hoje, ignorando a longa história e as paixões por vezes tão intensas (como a devoção de Mary Lasker, a primeira e maior ativista contra o câncer, que reinventou uma época) que nos trouxeram aqui. É dessa história que Mukherjee nos fala, com uma verve literária invejável. Até onde li, ainda longe do final da jornada, entendi que, na verdade, não é o Câncer o Rei de Todas as Moléstias. É o ser humano que assim busca se tornar, derrotando para sempre todos os seus algozes, numa busca incessante que termina por levá-lo a uma aparente derrota, mas que insufla humildade e respeito por si mesmo e pela vida. Mal posso esperar para ler o resto desta narrativa.

Nota (2023): terminei a sua leitura naquela época, muito satisfeito, e hoje reconheço que o livro de Mukherjee fica melhor com o passar do tempo. Realmente, ele é meio que o Homero da oncologia.