Diário de um recém ateu
9 dez., 2007
João Calangro

Início

Em 13 de fevereiro de 2007 comecei a escrever textos motivado por uma profunda angústia existencial que surgiu do fato de que perdi (aparentemente) a fé em qualquer coisa. Buscando, raciocinando, escrevendo, anotando coisas que ia vendo ou ouvindo, eu criei algo que poderia talvez ser chamado de um diário. O nome que lhe dou deriva da minha atual condição de recentemente auto-incluído entre as fileiras do ateísmo. Para os religiosos, aviso que meu blog não será agradável e minha (in)decisão dificilmente terá volta. Para os ateus, tampouco, prometo satisfações intelectuais, sendo minha condição provavelmente transitória demais para considerar-me entre eles por muito tempo. Começarei a transcrever textos desde fevereiro de 2007, além de escrever textos novos.

13 de fevereiro

… e então eu escrevi as primeiras palavras. Eis-me aqui, é quase meia-noite e estou deitado, iniciando pela primeira vez um ‘diário’. Por que diário? Por que não um blog? Por que não um arquivo no meu computador? Por que, porque… é justamente para explicar o(s) PORQUÊS que iniciei este diário. E o imaginei pela primeira vez com estas páginas, esta tinta preta e esta letra desarrumada. Escrever tem uma magia que dificilmente algum dia srá rivalizada pelo digitar. E olha que todo mundo digita, hoje… Não sou escritor, isto não é um livro, nem obra de arte de nenhuma espécie. É apenas reflexão, materializada nesta forma específica de páginas brancas pautas e tinte preta. Apenas isso. Embora entenda apenas superficialmente PORQUE um diário escrito, sei muito bem PORQUE escrevê-lo. A questão fundamental é que, finalmente, tornei-me integral e verdadeiramente ATEU. No dizer de Niezstche, ‘matei Deus’. Não consigo aceitar ou acreditar nos conceitos religiosos gerais de vida após a morte, deus ex machina, julgamento, paraíso, inferno, etc. Isto me perturba profundamente. Porém, no momento, estou com sono demais e minha fonte de luz (o celular) está descarregando. Amanhã continuarei de onde paramos…

14 de fevereiro

Acordo às 6h00. A noite não foi muito boa. Minha mulher acordou de madrugada com enxaqueca forte. Minha filha acordou tossindo muito. O noticiário fala de violência e mostra um corpo envolto em um lençol. Eu queria poupar minhas filhas dessas coisas, mas estão presentes em todo momento!

Quase 22h00, estou no hospital de plantão. Os mesmos pensamentos me perseguem. Somos apenas relógios que um dia perderão a corda e deixarão de marcar seu tempo? Penso que sim, e não consigo mais me convencer de nenhum contrário. Hoje pela manhã minha filha mais nova chorou para que eu ficasse com ela. Disse-lhe que ela se juntasse ao grupo que eu observaria um pouco, à distância. Após um ’enterro’ improvisado de um inseto morto organizado pela professora, ela separou-se do grupo e andou de volta para a sala, com cara de choro, obviamente me procurando. Chamei-a. Automaticamente ela ficou tranqüila e, então, o adeus foi sem mais choro nem trauma. Por isso nunca minto para elas. Por isso nunca ameaço abandoná-las, de brincadeira ou para conseguir obediência. Por isso acho que tudo que ela precisa de nós é segurança e paciência. Por isso acho que esses momentos são e serão o mais próximo que um dia chegarei da felicidade e da eternidade.

16 de fevereiro

Hoje saí correndo da enfermaria, deixei a trupe de filósofos e terapeutas do meu inconsciente/consciente (no momento, formado por Schopenhauer, Nietzsche e Freud) comandar e fui para o carnaval da creche das meninas.

O melhor foi pular com elas e depois correr para a areia, de pés descalços. Sempre o Lacan… Estava com minha mulher, estávamos bem. Ela estava feliz, sentindo-se bem, curtindo. Valeu ter esquecido o hospital e os pacientes. Bem, depois de chegar em casa não me controlei e ainda liguei para a enfermaria e para a pediatra da neurocirurgia, sob o olhar reprovador de Freud, Nietzsche e Schopenhauer.

Bem, algum dia chego lá.

“Torna-te quem tu és”

  • Nietzsche

Continuo com o pensamento assombrado pela aniquilação da morte. Uma revista popular trouxe uma reportagem sobre pensamento mágico. Diz que os homens que sobreviveram à idade do gelo foram apenas os que desenvolveram fé e religião. Religare - a comunicação não com um deus, mas consigo mesmo. Então, meu “anjinho” é um neandertal temente a seus deuses e respeitador dos antepassados. E ele está zangado!

“Amamos mais o desejo do que o ser desejado”

  • Nietzsche

Saint Patrick - Triad

Tabhair dom ghrása,

Fíormhac Dé.

Tabhair dom do neartsa,

An ghrair  gheal glé.

(Dê-me o seu amor,

Filho verdadeiro de Deus.

Dê-me a força,

O claro Sol brilhante)

  • Autoria desconhecida, gravado por Eithne Patricia Ní Bhraonáin (Enya)

18 de fevereiro

Dia de molho, exceto por irmos no Zoológico à tarde. Por pouco não conseguimos entrar. As meninas adoraram, lógico.

Voltei a ler física quântica. Mas dessa vez ela não está me acalmando como fazia antes. A contemplação do multiverso não traz alívio para o neandertal cutucado pelos filósofos. De que adianta um universo imortal e infinito? Se for realmente, quem é que sabe ao certo.

19 de fevereiro

Praia. Tudo de bom.

Nós seres humanos sempre nos sentimos tranquilos e bem na praia, ou quase sempre. Essa é uma resposta meio que inata. Nossos antepassados sabiam que o litoral normalmente significava segurança e fartura. Sempre o neandertal. Ele está por trás de quase tudo o que achamos bom e nos acalma ou satisfaz?

O que em nós é biológico e o que é social? E o social, o que é? Por que temos consciência? Coloquei “proof of life after death” no google. Minha obsessão continua. Os filósofos balançavam a cabeça, desaprovadoramente. Um site tem fotos antigas de ectoplasmas “materializados”. Se depender destas fotos, meu ceticismo é inabalável.

Um sujeito colocou na net sua “prova lógica” da vida após a morte. O problema é que essa prova depende de pelo menos 3 dogmas a priori que não podem ser comprovados e da nossa faltas de conhecimento sobre a natureza da consciência. Aliás, esse é o último baluarte do neandertal: o que é a consciência? quando começa? quando acaba?

20 de fevereiro

Dia de preguiça e shopping center.

Mais pesquisa - Parapsicologia

Dois fenômenos parecem ter “comprovação científica” em metanálises de estudos pequenos: Ganzfeld - experimento de telepatia e microPK (micropsicocinese) - experimento de psicocinese com máquinas automáticas ou objetos de pequeno porte. As críticas são de que os dados contém viés e não são bem analisados. Mesmo que aparentemente não haja viés intencional, os efeitos são relativamente discretos, apesar de homogêneos. Outra coisa, uma das principais críticas atuais é de que o pequeno efeito aparentemente visto em Ganzfeld não pode ser interpretado como prova de telepatia!

Atualmente, contam-se várias centenas de pequenos experimentos de Ganzfeld realizados por bem poucos grupos experimentais contabilizados nas meta-análises. Creio que qualquer pequeno efeito mostrado neste cenário fala mais sobre o relacionamento do ser humano com a estatística, e nosso mal uso dela. Para um médico oncologista, como eu, é comum ver grandes efeitos de novos tratamentos em pequenos trabalhos, que evaporam-se em trabalhos de maior envergadura.

21 de fevereiro

20h00

Estou entrando no plantão. Começo com citações:

“Onde a morte está, eu não estou. Onde estou, a morte não está.”

  • Lucrécio

“Acredito que a vida seja uma centelha entre dois vácuos idênticos: a escuridão antes do nascimento e aquela após a morte.”

  • Irvin D. Yalom

(Esta última, Yalom deve ter retirado de um pensamento de Schopenhauer).

Tenho escutado muito uma música que ouvi a primeira vez há mais de 10 anos, quando era aluno de medicina.

MERCY STREET (Peter Gabriel, Album: So)

looking down on empty streets, all she can see

are the dreams all made solid

are the dreams all made real

all of the buildings, all of those cars

were once just a dream

in somebody’s head

she pictures the broken glass, she pictures the steam

she pictures a soul

with no leak at the seam

let’s take the boat out \ (twice)

wait until darkness comes /

nowhere in the corridors of pale green and grey

nowhere in the suburbs

in the cold light of day

there in the midst of it so alive and alone

words support like bone

dreaming of mercy street

wear your inside out

dreaming of mercy

in your daddy’s arm again

dreaming of mercy street

swear they moved that sign

dreaming of mercy

in your daddy’s arms

pulling out the papers from the

drawers that tugging at the darkness, word upon word

confessing all the secret things in the warm velvet box

to the priest - he’s the doctor

he can handle all the shocks

dreaming of the tenderness - the tremble in the hips

of kissing mary’s lips

dreaming of mercy street

wear your insides out

dreaming of mercy

in your daddy’s arms

mercy, mercy, looking for mercy (twice)

Anne, with her father is out in the boat

riding the water

riding the waves on the sea

Eu tinha esse disco…

Lacan dizia que a melhor idade do ser humano é quando tínhamos 3 anos.

23 de fevereiro

Estou internando uma menina de 6 anos com miastenia gravis em crise e pneumonia - preocupo-me com seu estado.

01h00

Ela sofre uma crise miastênica com apnéia e provavelmente broncoaspira maciçamente, inicia seu calvário, do qual compartilharei.

02h00

Ela está morta - fiz tudo o que sabia para salvá-la e, durante as manobras de reanimação, enquanto massageava seu precórdio, em frenesi, somente conseguia pensar “não vou perdê-la, não posso perdê-la.” O pior de tudo foi contar à mãe logo em seguida. Senti-me miserável por todo o dia e acho que ainda sinto-me hoje.

Não consigo acreditar que algo havia naquela menina que tenha sobrevivido, só consigo pensar em seu fim e no vazio em seguida. Tinha medo disso - do contato com a morte após perder minhas ilusões. Porque vivemos, se morremos? Porque morremos, se vivemos?

Sempre, sempre, lembro de minha mulher, e da oportunidade única e individual de termos nos conhecido e nos amado, e de como isso dá valor a toda a minha vida, minha existência fugaz e, de outra forma, fútil.

“Haja ou não alguém que a acompanhe, uma pessoa sempre morre sozinha.”

  • Irvin D. Yalom

“Amor fati - Ama teu destino.”

  • Nietzsche

24 de Fevereiro

(…) What if god was one of us

Just a slob like one of us

Just a stranger on the bus trying to make his way home?

Like a holy rolling stone

Back up to heaven all alone

Just trying to make his way home

Nobody calling on the phone

Except for the pope maybe in rome

  • Joan Osborne

(One of Us, Relish, letra e música de Eric Bazilian)

25 de Fevereiro

James Cameron vai lançar amanhã um documentário e um livro “provando” que um sítio arqueológico achado em (próximo de) Jerusalém há 36 anos atrás tem os restos mortais de Jesus, Maria, Maria Madalena, além de Judas, filho de Jesus com Madalena.

Provas improváveis à parte, quando há dinheiro no meio, surgem todo tipo de evidências e contra-evidências. Provavelmente veremos uma batalha de pseudociência contra religião. Resultado: poeira de nada!

Obs.: quase na Páscoa? que coincidência!

26 de Fevereiro

Faça de qualquer contato com outro ser humano uma ocasião que valha a pena ser lembrada.

27 de Fevereiro

Comentário sobre a inteligência humana e suas raízes biológicas: afinal, as baratas também tomam decisões…

04 de Março

Você tem sempre que estar pronto para morrer não apenas hoje, mas agora! Essa é a única liberdade que nos é possível.

Existe o destino? Essa é uma discussão bem interessante. Até recentemente (digamos, uns 100 anos atrás), as leis da física, se aplicadas “ao pé da letra”, podiam dar a entender que o destino de qualquer sistema neste universo é pré-fixado pelas condições iniciais. Tipo aquele lance da bola e do plano inclinado: sabendo-se todas as variáveis, pode-se calcular EXATAMENTE onde a bola estará no futuro. Se o sistema tiver duas esferas, ao sabermos todas as variáveis iniciais e leis do sistema, prevemos com absoluta certeza (tão absoluta quão exatos são os valores que temos) onde cada esfera estará em cada momento do futuro, se se encontrarão, etc.

Teoricamente, esta progressão poderia ser repetida, num crescendo linear de complexidade, sem alterar-se a exatidão das previsões, desde que aumentasse também a quantidade e precisão dos dados iniciais e o poder de calcular a matemática oriunda das leis que descrevem qualquer sistema. Mesmo num organismo com centenas de bilhões de células, dadas as condições iniciais com exatidão e detalhes suficientes e leis exaustivamente completas, poderíamos calcular onde CADA ÁTOMO E MOLÉCULA ESTARIAM EM QUALQUER MOMENTO, ou seja, tudo o que ocorresse com um organismo. Uma vez que o cérebro é material, também cada pequena ação e decisão poderiam ser previstos. Como o computador perfeito de Laplace, que de tudo sabia, no presente, passado e futuro.

Ou seja, tudo poderia ser previsto, tudo é determinado, tudo ESTÁ ESCRITO, Maktub! Bem, as leis da física já não são as mesmas, e o Princípio da Incerteza de Heisenberg e o Efeito Borboleta de Lorenz sabotaram o ideal Laplaciano de um universo determinista.

Mas qual o impacto prático destes novos princípios na questão do destino? Na verdade, ninguém sabe! Arriscar qualquer resposta seria um misto de literatura com espiritualidade barata. Talvez, mais que isso, nossa própria imperfeição sabote o destino…

02 de Março foi a festa do aniversário da minha filha. Mais um gosto de eternidade. O melhor foi ver a alegria dela(s). As crianças acharam o máximo. Os adultos, como sempre, acham que isso faz parte. Adultos não necessariamente se divertem em festas infantis. Eu me diverti.

Ver o brilho nos olhos da minha filha e seu encantamento quando cantaram  os parabéns foi o suficiente. Enquanto escrevo estas linhas, dois dias após, lembro que aqueles momentos perduram para mim apenas na memória, e a memória humana não é uma “fotografia” ou uma “filmagem”, não tenho detalhes precisos “impressos” em meu cérebro, mas sim uma sofisticada “recriação” virtual a partir das modificações que centenas de milhões de neurônios sofreram naquele dia, induzidas pelas experiências que vivenciei. Resumindo: o cérebro nunca se lembra realmente de nada, ele reconstrói momentos “anteriores” no presente. Essa reconstrução nem sempre é perfeita e pode mudar com o tempo. Por isso não adianta viver de lembranças… isso é ilusão. Carpe diem! Curta a vida, HOJE!

“I’ve seen things you people wouldn’t believe. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tanhauser gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die.”

  • Roy Batty, personagem de Hutger Hower em Blade Runner (1982), no diálogo final

“Como lágrimas na chuva…”, uma bela metáfora para nós e nossas memórias. Nunca a esqueci.

Hoje, o documentário do James Cameron e do Simcha Jacobovici saiu no Discovery Channel: “The Lost Tomb of Jesus”. Polêmica à parte, uma entrevista para o TODAY, da NBC na internet, foi bem interessante. Ele argumentou que sua polêmica afirmação de ter achado os ossos de Cristo não necessariamente abala o dogma da ressurreição, apenas lança outra discussão: Jesus ressuscitou “espiritualmente” ou “corporalmente”? Que pérola! Está claro que eles estão apenas se divertindo às custas dos católicos! Os judeus parecem ter gostado da novidade…

Cameron diz, na entrevista: ‘A ressurreição em si não é contestada. […] O problema é a ascensão física ao céu, levando seus ossos e corpo com ele, em vez de deixá-los para trás na terra.’

Eles estão realmente curtindo com a cara da igreja católica. Mas a idéia não deixa de ter um significado para reflexão: teria algum sentido um deus que “morresse” (embora, segundo a bíblia, tenha morrido mesmo) e, ao invés de ressuscitar corporalmente, apenas reaparece em espírito e deixa um corpo para apodrecer e restar ossos para a posteridade? Ossos divinos terão alguma propriedade especial? E a alternativa, um deus que se fez carne (ainda segundo o dogma), morreu de fato e ressuscitou essa carne e, com corpo e tudo, foi para o paraíso. O que houve com o corpo, a carne? Como sabemos, carne viva tem o péssimo hábito de envelhecer e depois morrer. Ele então ficou imortal e continua vivo até hoje em algum lugar (no mundo espiritual?). No outro mundo pode existir uma pessoa de carne e osso? Se ele ainda está vivo, pode morrer de novo? O processo que evitou que ele envelhecesse nos últimos 2000 anos pode ser aplicado em nós?

Continuam as anotações de dias pregressos…

06 de Março de 2007

Fernando Portela Câmara escreve, no nº 7, volume 10, do Psychiatry on line Brasil, em julho de 2005:

“Somos o resultado inesperado de saltos de qualidade. Por toda a natureza, especialmente no domínio biológico, percebemos estes saltos e seus vestígios em toda sorte de combinações de programas, comportamentos e formas por toda parte. A sociedade humana representa um destes saltos e não pensaríamos, planejaríamos e talvez nem mesmo tivéssemos a linguagem que temos e os meios de comunicação se a vida em sociedade não nos empurrasse um pouco mais para a fronteira do caos.”

Teoria da Complexidade explicando a emergência da consciência a partir dos sistemas complexos? O psiquiatra Eulen Bleuler chamou de “psicóide” todas as manifestações vitais dotadas de reais analogias com os fenômenos psíquicos. Para ele, a psique humana seria um caso “psicóide” especial. Lágrimas na chuva…

“A igreja diz que a Terra é achatada, mas sei que ela é redonda, porque vi a sombra na Lua, e tenho mais fé numa sombra do que na igreja.”

  • Fernão de Magalhães

07 de março de 2007

“The world is so exquisite with so much love and moral depth, that there is no reason to deceive ourselves with pretty stories for which there’s little good evidence. For better it seems to me, in our vulnerability, is to look death in the eye and to be grateful every day for the brief but magnificent opportunity that life provides.”

  • Carl Sagan

O principal argumento para a nossa real finitude e ausência de continuidade após a morte é aquele (a meu ver) que fala sobre nosso desejo. NÓS GOSTARÍAMOS MUITÍSSIMO de não morrer, por isso QUEREMOS MUITO ver evidências de continuidade. Nada nesse clima pode ser considerado objetivo. Nossa busca por vida após a morte, através da religião, pseudo-ciência ou seja o que for, serve em primeiro lugar para suprir uma necessidade profunda, não para buscar a verdade. A verdade já está aí: se até o Universo que conhecemos vai “morrer” um dia, como podemos ousar querer sermos imortais?

Lágrimas na chuva…

Mais notas pregressas…

8 de Março de 2007

O que somos?

Afinal, somos capazes de sermos mais libidinosos e violentos que nossos antepassados e primos símios propriamente ditos, nunca conseguindo contemplar a natureza  divina que criamos e tentamos incutir nas coisas, apenas a nós mesmos, refletidos no espelho das coisas todas, sem nem mesmo conseguirmos nos guiar pela nossa suposta racionalidade.

O que nos diferencia, então, realmente?

O que nos torna únicos, se é que há?

O SONHO!

(Algum animal sonha?)

Na verdade, animais (mamíferos) também têm sono REM como os humanos, mas quanto ao conteúdo, nada se sabe. Acredito que, provavelmente, os animais também sonhem, sonhos diferentes dos nossos, assim como são diferentes (mais simples) os sonhos das crianças pequenas. Afinal, a filogenia mostra que nenhuma capacidade surge “pronta”. Ela vai evoluindo e “aperfeiçoando-se” com o tempo.

No entanto, quando falo do sonho, ou do sonhar, não me refiro à capacidade biológica de criar ou construir conteúdo mental “virtual” durante o sono; claro está que uma tal capacidade, baseada em redes neurais existentes em nossos cérebros, não “apareceu” no ser humano, sendo fruto da evolução. Dessa forma, mesmo que o ser humano possa ser capaz de atividade onírica radicalmente diferente daquela de outros animais, devem existir “precursores” de atividade onírica, um conteúdo “oniróide” mesmo em mamíferos primitivos e, quem sabe, até mesmo em animais anteriormente colocados na escala evolutiva. Ou seja, sonhar é biológico, e tudo que é biológico não é exclusividade absoluta nossa, mas fruto de uma longa evolução, até mesmo as nossas mentes.

Eu falo é do SONHO, da capacidade de SONHAR com aquilo que desejamos, queremos, o ser humano sonha com seu destino. Isso, creio, não tem paralelo entre outros animais. Essa capacidade nos diferencia mais do que nossa suposta “racionalidade”, a qual é apenas aparente.

Pensemos, quanto de qualquer decisão banal que tomamos é realmente “racional”! Talvez, as pessoas mais habilitadas a responder a este questionamento hoje sejam não psicólogos, biólogos, físicos, matemáticos, ou mesmo místicos, mas os publicitários!

Como médico, tenho muitas vezes que tomar decisões que afetam o “destino” dos pacientes. Mas, com essa palavra, o que quero dizer? Por mais criticada que seja, a medicina baseada em evidências ajuda a responder essa questão. Ora, todas as vezes que tomamos decisões clínicas sobre um paciente estamos, mesmo que inconscientemente, escolhendo um ou mais “desfechos” do tratamento proposto e montando, mais uma vez a maior parte inconsciente, um “modelo” de como chegar a este(s) desfecho(s). Além disso, reunimos “evidências” (na maior parte inconscientes) que corroborem o “modelo” montado e que aumentem a “chance” de chegarmos ao(s) “desfecho(s)”. Coloquei tudo entre aspas porque tais conceitos são científicos, retirados do método de trabalho da medicina baseada em evidências. Mas creio que tais conceitos, dentro de certos limites, são úteis para entendermos nosso processo de tomada de decisões. Os seres humanos claramente não são racionais (no sentido de científicos) ao tomarem decisões. O cérebro humano usa suas redes neurais para escolher entre várias opções disponíveis ou para adaptar criativamente o que tem à mão a partir de um método heurístico. Entre outras coisas, nosso cérebro reconhece e registra padrões de eventos com repetição freqüente e compara estes padrões com outros padrões, categorizando coisas e padrões e criando hierarquias de eventos e semelhanças ou diferenças. Um exemplo é a forma como crianças pequenas diferenciam coisas “vivas” de coisas “não vivas”. O primeiro critério, aparentemente, é o movimento espontâneo, depois, com o tempo, seguem-se outras características (como ter “pele” ou “pêlos”, ou “respirar”) que vão sendo agregadas ao padrão armazenado do que é “vivo” e permitem à criança reconhecer e diferenciar entre o que é vivo e o que não é cada vez com maior exatidão. Por isso é tão fácil iludir o ser humano , se você puser diante dele um conjunto de informações que os “padrões” armazenados não consigam definir adequadamente. Detalhe: este processo está bem longe de ser “consciente”. Depende de redes neurais estabelecidas desde a infância.

Esses mecanismo de comparação de semelhança de padrões me lembra o Princípio da Semelhança dos homeopatas: similia similibus curantur. Talvez, o gosto humano por essa e outras práticas não científicas esteja relacionado ao mecanismo neural humano de reconhecimento de padrões. Tal como a arte, elas “falam” a nós…

Voltando ao destino e à medicina baseada em evidências, obviamente quando falo em seus conceitos é apenas como analogia. Mas acredito que, quando falamos no “destino” de alguém, temos uma idéia bem objetiva (um padrão), inconscientemente, daquilo que queremos para o paciente. Ou seja, nosso conceito “real” de destino  não tem nada de filosófico, é muito prático, mesmo que não tomemos consciência. Destino é o sofrimento, a morte, no caso de pacientes. Assim como, para as crianças (e para a grande maioria dos adultos) tudo o que se move com intenção (ou aparentemente, isto é, aquilo que entendemos como intenção) está vivo. Dessa forma, inconscientemente sempre estamos escolhendo “desfechos”, montando “modelos” e colhendo “evidências”, de forma heurística, não racional. Muitas vezes, apesar de racionalmente chegarmos a uma determinada conclusão, tomamos uma decisão diferente. Esta é a base daquilo que chamamos de intuição. Também é a base do inconsciente de Freud.

Aos espiritualistas: uma vez que mais estas características da mente humana foram “roubadas” da alma para o cérebro físico, como fica nossa capacidade intuitiva na vida após a morte? A alma também tem inconsciente?

18 de março de 2007

Tudo o que fizermos, dissermos, mudarmos, jamais mudará nosso destino final, nem reterá qualquer significado para nós ou os outros que amamos. Um  dia, mais cedo ou mais tarde, tudo o que somos, realizamos e sonhamos não fará mais sentido para ninguém. Então por que viver, se o destino é a morte?

Amor fati - ama teu destino!

Carpe diem! - aproveita o agora!

Tudo o que nós somos, realizamos e sonhamos faz sentido agora! E isso é só o que importa! A vida após a morte - se existisse - seria apenas um triste consolo. E nos privaria da doce irresponsabilidade da deleção completa no futuro.

Espíritas: quando a humanidade finalmente acabar, como ficarão as almas humanas? Vão sofrer upgrade? Ou a teoria espírita exige que a humanidade nunca acabe?

Não acredito em paraíso, céu, prêmio celeste para os justos, mas acredito no inferno: ele existe na cabeça, na mente de pessoas perversas e doentias.

26/03/2007

Nós somos apenas nós mesmos, a única coisa que podemos ser, certos ou não, errados ou não, bem ou mal, apenas nós.

Sempre tive essa sensação de não fazer parte, de não pertencer aqui, de não estar conectado, de estar à parte. Só minhas filhas me fizeram sentir diferente.

Um dia morrerei e tudo que sou desaparecerá sem deixar vestígio. Um dia tudo o que fiz será esquecido, e meu rastro será tão anônimo quanto pegadas na areia. Um dia a própria humanidade desaparecerá para sempre e não terei mais descendentes sobre a Terra. Um dia a própria Terra perecerá dentro do fogo de um sol gigante e jamais o universo será lembrado que um dia existiu a humanidade.

Engraçado, todos esses fatos são mais certos que o meu destino daqui a 5 minutos. Por que?

Forças cegas nos trouxeram até aqui, até ao ponto de contemplar-nos a nós mesmos e ao universo em seu esplendor? Um conjunto de equações sem consciência? É mais fácil acreditar nisso que em um deus? Não, não é mais fácil, na verdade, simplesmente é mais provável. Por que acreditar naquilo que queremos simplesmente por ser o que queremos? Não será mais honesto abrir os olhos e enxergar a verdade, tão cruel ela nos pareça? E, além disso, a verdade não é cruel, pois a crueldade é uma característica humana. A verdade pode ser frustante, mas não cruel. No entanto, essa frustração vem de nossas expectativas errôneas. ACHAMOS que queremos viver para sempre, mas não é isso que queremos. Quem realmente gostaria de envelhecer para sempre…? ACHAMOS, então, que queremos ser jovens para sempre, para a velhice não nos roubar a vitalidade, mas novamente não é isso que queremos. Imagine a vida eternamente jovem. Teríamos filhos, netos, bisnetos, e a partir de certo momento, não daríamos mais conta de nossos descendentes, eles perderiam o significado para nós. Então passaríamos a eternidade estéreis, a não ser que voltássemos ao início e tivéssemos filhos de novo, e nossa vida eterna seria um ciclo eterno de recomeçar do mesmo ponto e perder tudo a partir de certo ponto. Imaginem qual amor poderia resistir REALMENTE à eternidade. Nas histórias românticas, a fórmula da eternidade “e foram felizes para sempre” é seguida invariavelmente por “THE END” e então, o filme acaba. E nos filmes e novelas espíritas, o encontro das almas gêmeas, sempre no final, logo antes do “fade out”, dá-se na forma de uma desincorporação etérea em miríades de belas luzes. Ninguém que admira os “finais felizes” e alimenta esperança na vida eterna jamais imaginou a ROTINA ETERNA, tenho certeza. Quando eu era criança (a idade que somos mais inteligentes) essa idéia me fascinava e desafiava: o que se faz durante a vida ETERNA? A resposta católica de uma eterna contemplação de deus, estática, me enchia de horror. Acho que isso encheria de horror qualquer criança. Então, na verdade ACHAMOS que queremos a vida eterna, mas logicamente nunca imaginamos suas consequências mais óbvias. Apenas, chego à conclusão, apenas não queremos envelhecer nem morrer. Somos seres mortais relutantes em morrer.

E, mesmo assim, morreremos.

28/03/2007

Sendo fugaz nossa existência, sendo a aniquilação do que somos e fizermos certa, sendo egoísta nossa natureza, sendo o tempo irrecuperável, vale a pena acreditar em altruísmo, em qualquer tipo de bondade e gratuidade? Para mim, a resposta é categoricamente SIM!

Dentro de certos limites, pois nossa natureza é claramente auto-centrada, como teria de ser em qualquer animal que busca a auto-conservação, creio ser o próprio fato de estar vivo algo maravilhoso, milagroso. Não no sentido sobrenatural, do milagre que subverte a nosso bel prazer as leis naturais, mas um milagre do real! Apenas porque não existe o mágico e o sobrenatural não devemos menosprezar a beleza transcendental da realidade! O enorme cosmo coalhado de estrelas e galáxias, o mistério e deslumbramento da matéria escura e da etérea energia escura. A recém-descoberta quintessência. O surgimento sutil da vida no meio da balbúrdia da matéria inorgânica. A explosão de complexidade das formas de vida cada vez mais numerosas e diversas. O surgimento da centelha miraculosa da auto-consciência no âmago de redes neurais que evoluíram para espelhar o mundo e conhecê-lo. Porque não falamos mais dos milagres que nos cercam? Assim, penso que, em retribuição ao grandioso presente que recebemos, nossa vida, seja ele de um deus ou de uma profunda força cósmica inconsciente daquilo que cria, torna-se muito pouco mesmo se fizermos todo o bem de que formos capazes nesta vida. É quase uma obrigação, com certeza uma honra e, na verdade, um grande prazer, passar toda a vida que temos trazendo bondade e gratuidade a esta existência, a todos os seres! Trata-se de uma ínfima retribuição em troca de tudo o que recebemos pelo fato de um dia termos nascido. Afora isso, conclui-se também que, além da própria dádiva da vida, tudo o mais que vivenciarmos ou tivermos de bom e prazeroso é bônus, prêmio extra para os já premiados. Dessa forma, vale a pena sairmos de nosso natural egoísmo para vivermos assim, pela mera gratidão de viver!

Nessa perspectiva, a aniquiladora morte perde a força e torna-se pálida, pois ela mesma é incapaz de reverter e apagar a vida que vivemos antes. A morte, na verdade, é apenas mais uma parte da vida, o seu final. Como tudo o que tem começo, deve necessariamente ter fim.

09/12/2007

Morrer é retornar ao início de tudo…