Propositadamente sem título
17 abr., 2007
João Calangro

Fala-se muito de violência ultimamente e o insistente repetir das mortes violentas de toda sorte na mídia tem beirado o escatológico. Mata-se como nunca, hoje em dia, tem-se a impressão. A vida humana não vale nada, é frase repisada continuamente. E, no entanto, não apenas a morte é parte integral da vida, mas também matar.

Vejamos, o que é matar? Constitui interromper a vida de um qualquer ser vivente. Costumo matar formigas que andam pela minha cozinha. Ora, elas não estão tão vivas quanto eu? Elas têm membros, movimentam-se, engajam-se em atividades, têm olhos, sistema digestivo, sistema excretor, sistema vascular, olfato (um muito bom, aliás), sistema nervoso. Elas nascem, elas crescem, vivem suas vidas efêmeras e, por fim, morrem. Qual a diferença, afinal, entre elas e mim? Espiritualistas diriam que nós temos alma. Pulemos esta afirmação improvável. O ser humano é animal nobre, afirmariam os humanistas. Não devemos nos apegar a este julgamento parcial, claro que fruto de uma mente humana (se uma formiga pudesse expressar-se, diria que somos preconceituosos?). Um biólogo declararia a diferença óbvia de complexidade entre os dois seres. Isso é bem verdade, no entanto, tal diferença é de ordem de grandeza, mas não de essência. Vida, afinal, é vida.

Quando mato uma formiga, estou matando. Interrompendo uma vida que teria continuidade se não fosse por mim. Mesmo que a formiga não tenha um sistema nervoso complexo o suficiente para experimentar felicidade, amor, estas são apenas palavras, e poderiam ser utilizadas em correlatos do comportamento das formigas. Matar, na verdade, e é aonde quero chegar, é bem comum na natureza. O predador mata a presa, trata-se da associação mais conhecida. Animais (e até plantas) competem pelos mesmos ambientes, eliminando concorrentes. O animal mais adaptado sobrevive e deixa descendência, os menos adaptados falecem.

Para alimentar nossos bebês com sopinha de carne, temos que matar. Quando nos deliciamos com churrasco, estamos consumindo carne (semelhante à nossa própria), músculo que já movimentou espontaneamente um animal vivo. Eu olho para meus braços e vejo músculos bem semelhantes. Matar parece ser algo muito natural. Animais desenvolveram estratégias variadas para tanto. Dentes, garras, fortes músculos, agressividade. Entre animais sociais, como nossos antepassados símios, essa capacidade para a violência parece ter um papel especial. Para nós, seres humanos, essa capacidade pode ter sido importante para a sobrevivência em tempos primitivos. Os nossos antepassados homo sapiens sapiens tiveram que exercitar sua agressividade para sobreviver, e provavelmente massacraram os neandertais, tomando seu lugar. A Morte sempre esteve a nosso lado.

Modernas técnicas de neuro-imagem mostram que seres humanos ativam áreas cerebrais relacionadas ao prazer e à recompensa quando visualizam cenas de outros seres humanos sendo castigados. Somos todos sádicos? Eu diria que podemos ser, mas ainda acredito no espaço para o livre arbítrio neste tocante. Então, se matar tão próximo de nosso dia-a-dia, aonde termina o limite daquilo que aceitamos, do que achamos natural e não nos comove (como mastigar o que já foi o lombo de um lindo bezerrinho) e onde começa o que nos escandaliza (como o recente caso do menino arrastado preso a um carro e despedaçado até a morte, por assaltantes). Qual a diferença? Parece óbvia, mas não tanto. Se matar é aprte integral da experiência de estar vivo, onde situa-se o limite? Quando matar torna-se intolerável?

Poder-se-ia dizer que o cruel sofrimento da criança dilapidada seria o diferencial. Na verdade, todavia, os ebzerrinhos também sofrem, tanto mais porque sua morte não é cercada de considerações éticas. Não é interessante que as normas de bioética que explicitamente criamos para proteger, por exemplo, animais de laboratório, não sejam claramente válidas num matadouro de agdo? Aliás, que nome sugestivo (e informativo sobre a nossa abordagem do assunto): MATADOURO. Com certeza, a crueldade não deve ser o único fator de diferenciação. Outro exemplo recente para consideração: no prazo de 1 ano a mídia noticiou a morte de 2 lactentes “esquecidos” dentro de carros por seus pais. Nos dois casos, os bebês foram deixados dentro de carros fechados, debaixo do sol e morreram com lesões graves ocasionadas pelo calor. Os bebês morreram “cozinhados”  vivos. Sei que parece cinismo comparar a crueldade dessas mortes entre si, mas não parece até pior do que o primeiro caso citado? Detalhe: a criança dilapidada despertou intensa comoção social, mas os bebês “cozidos” despertaram preplexidade, porém nem de longe a mesma emoção coletiva do primeiro caso. Claramente, no segundo caso, onde os pais foram “absolvidos” pelo público e pela justiça, a intensa crueldade das mortes não foi o fator determinante. Então, onde fica nosso limite?

A intencionalidade foi a diferença? No primeiro caso, após um assalto à mão armada, os bandidos saíram em disparada com o veículo roubado, após deixar na via pública os passageiros. No entanto, um menino de 6 anos, tentando se desvencilhar do cinto para sair do carro, predeu-se no cinto. Ao dispararem os bandidos em alta velocidade com o carro, arrastaram a criança, que morreu despedaçada na via pública. Horrível, não? Mas cozinhar bebês de meses de idade presos por cintos numa cadeira no banco traseiro de um carro fechado no sol, até morrerem com queimaduras de terceiro grau, é menos horrível? Quanto à intenção: os assaltantes tiveram inicialmente a intenção de dilapidar a criança? Provavelmente não. Eles tinham consciência do que estava acontecendo? Parece que sim, mas não ligaram. Para eles, escapar e salvar a própria vida era mais importante. Essa reação, de salvar a própria pele, apesar de demonstrar ser cruel, é muito comum nos seres humanos, bandidos ou não. Aquela romântica imagem de mães e pais sacrificando a própria vida para salvar seus filhos é uma exceção, na maioria dos casos de ameaça aguda de morte. Senão, por que os acompanhantes do menino dilapidado não arriscaram a própria vida para tirar PRIMEIRO o menino e só depois sair do carro? Na verdade, todos saíram primeiro sob ameaça dos bandidos e o menino atrapalhou-se ao sair sozinho, ficando preso no cinto. tentaram ajudá-lo, mas era tarde, os bandidos já estavam saindo com o carro. Eles erraram? De forma alguma, mas o que sentiram, a urgência de salvar-se, foi análogo ao que sentiram os bandidos, gostemos ou não. E, em relação aos bebês cozidos? Os pais (sempre os pais, nunca as mães) tiveram a intenção de matar? Claro que não. Tinham consciência do que estava acontecendo? Aparentemente não. MAS AÍ É QUE ESTÁ: como pode um pai esquecer-se do próprio filho bebê? Não temos aí um desvio da volição e talvez do caráter, se não tão intenso, semelhante ao desvio que permitiu aos bandidos ignorar o menino que eles arrastavam?

Ou seja, a diferença entre os casos não é óbvia. Não se trata do sofrimento, da crueldade, nem da intencionalidade. Aponto para a real diferença, aquela que nos atinge inconscientemente, aquela derivada de nosso julgamento heurístico, aquela soprada em nossos ouvidos pelo neandertal que habita em nós. Falo do PAPEL SOCIAL dos envolvidos. De um lado, bandidos socialmente excluídos, de comportamento incerto, de quem se espera desonestidade e ameaça a nós e nossos lares. De outro, pais de família, de profissão definida e papel social construtivo, úteis à sociedade, pais e maridos amorosos e, quem sabe, de quebra, até tementes a deus. No romance Duna, de Frank Herbert, uma fábula tecno-mística, existe a ADAB, a memória que se manifesta por si mesma. Ora, este foi um julgamento instantâneo, inconsciente, heurístico, feito por toda a sociedade e baseado em PAPÉIS SOCIAIS. A discussão principal diante do caso do menino dilapidado foi sobre violência e impunidade enquanto, no caso dos bebês “cozinhados”, a discussão girou em torno de estilo de vida. Recentemente, li a crônica de um jornalista afirmando que achava errado imputar a criminalidade ao meio e às condições sócio-econômicas, que ser bandido era sempre uma escolha, a despeito do que achavam os “esquerdistas” (eu não sabia que a ciência social era toda “esquerdista”). Bem, neste caso que que discutimos aqui parece-me que os pais dos bebês “cozinhados” contaram com o beneplácito de um “estilo de vida”. A justiça considerou que eles já haviam sido castigados pela perda dos filhos. Os bandidos, obviamente, não contaram com tal abrandamento de julgamento.

Estamos errados? Não creio que esta seja uma pergunta fácil de ser respondida. Talvez nem seja pergunta correta. Quem sabe não devêssemos nos perguntar: conceitos e julgamentos à parte, o que estamos fazendo na prática que comprovadamente terá um efeito na violência que nos perturba? A despeito do que pensam os jornalistas direitistas, distribuir uma profusão de armas nas ruas, nas mãos da polícia e de “gente de bem” não se correlaciona com redução de violência, ao contrário de uma real melhoria nos índices de educação, saúde, emprego e satisfação pessoal da população, verdadeiramente associados com sociedades menos violentas.

Todavia, não respondemos à pergunta inicial: quando matar torna-se socialmente intolerável? A resposta, talvez incômoda, porém mais adequada, seria: quando vai de encontro aos padrões sociais internalizados inconscientemente em nós. Ou seja, às vezes, consideramos natural matar, às vezes não. Ou seja: o velho neandertal ainda escolhe , no final, quem vive e quem morre. Na era do gelo, a família vivia, os inimigos morriam. É por isso que, apesar de tudo, ainda sou contra a pena de morte. O ser humano não está pronto para aplicá-la com justiça cega e imparcial em nenhuma sociedade existente.