Meu amigo Silver Surfer me convidou para escrever uma postagem em seu blog perdido nos confins da rede. Por que resolvi aceitar? Parafraseando Sabine Hossenfelder, “para manter minha sanidade”. Possivelmente, precisarei escrever muitas postagens mais, se tiver oportunidade, para conseguir isso.
Começo relatando que um colega profissional entrou em contato para me fazer uma proposta. Ele trabalha com uma técnica de reconhecimento de padrões usada no diagnóstico médico de câncer (se você pensou em ‘patologia’, pode ter acertado). Em sua área, ele utiliza cada vez mais marcadores de biologia molecular para auxiliar no diagnóstico, o que tem ajudado a transformar uma prática muitas vezes subjetiva num modelo mais objetivo e facilmente reprodutível. Mesmo assim, em suas próprias palavras, “a variação intra e inter-observador é muito grande”. Diagnósticos específicos estão associados com padrões de marcadores específicos, e isso é verificado por evidência testada cientificamente. Então, existe um “pacote” de marcadores usado para cada entidade diagnóstica, com maior ou menor sensibilidade ou especifidade para o diagnóstico. Uma das preocupações num país e numa região como aquela onde vivemos é a falta de recursos para realizar todos os exames disponíveis para aumentar a certeza de um diagnóstico. Dessa forma, é necessário trabalhar com a relação custo-benefício dos procedimentos e escolher um conjunto mínimo de marcadores capaz de se correlacionar com uma capacidade diagnóstica aceitável. Em outras palavras: trabalha-se não na situação ideal, mas na situação possível. Ás vezes, não é possível dar certos diagnósticos com certeza, mas nem sempre isso é clinicamente relevante.
Um exemplo para ilustrar: na revisão de 2016 da classificação de tumores do sistema nervoso central da Organização Mundial da Saúde, o grupo de Tumores embrionários inclui uma série de diagnósticos que necessita de um ou mais marcadores moleculares para serem classificados com certeza. A entidade tumor embrionário com rosetas em multicamadas (ETMR) tem duas variantes: aquela portadora de amplificações do cluster de genes C19MC, que codifica miRNA; e aquela que não tem tais alterações moleculares. É óbvio que este(s) marcador(es) molecular(es) específico(s) é necessário para diferenciar as duas variantes. No nosso serviço, todavia, marcadores para essa alteração molecular não estão disponíveis. Dessa forma, os pacientes com histologia e/ou topografia tumoral (é um tumor tipicamente de linha média, mais comumente no III ventrículo) compatíveis acabam tendo o diagnóstico de Tumor embrionário sem outra especificação (SOE), com uma nota indicando a possibilidade de ser ETMR. No entanto, isso não tem relevância clínica, pois todos os tumores embrionários do sistema nervoso central que não sejam meduloblastomas ou tumores teratóides-rabdóides atípicos são tratados da mesma forma. Ou seja, um ETMR ou um tumor embrionário SOE recebem o mesmo tratamento e têm prognśotico semelhante (dentro de certos limites). Dessa forma, investir nesse marcador específico torna-se de prioridade secundária num cenário de recursos limitados.
A proposta: ele me informou que tem alguns marcadores que “sobram” de kits subutilizados e que, próximo do vencimento (ou talvez pouco após) pudesse utilizar para marcar alguns espécimes. Citou 3 marcadores não relacionados entre si e confessou não saber a frequência de sua ocorrência em determinados diagnósticos. E, finalmente, me perguntou se não haveria como “fazer alguma coisa” para “aproveitar” esse material. Com fazer alguma coisa ele quer dizer pegar um conjunto de amostras (cuja relevância clínica eu poderia selecionar) para averiguar a presença destes marcadores e, talvez, abstrair alguma conclusão relevante (acho que essa última parte seria minha responsabilidade). Existe uma série de problemas bem óbvios (pelo menos para mim) nesta proposta, e vale a pena examiná-las individualmente:
Desperdício de material dispendioso na prática oncológica:
Isso não é assunto novo, mas tem tido certo impacto recentemente, com possíveis implicações éticas [1,2]. Aqui em nosso país, as regras são diversas, mas da mesma forma estimulam o desperdício de recursos. Os kits de exames moleculares referidos no caso são adquiridos para um número mínimo de casos (usualmente, da ordem de uma ou mais centenas) e têm uma validade limitada após abertos para utilização. Dessa forma, se não houver demanda suficiente em um determinado serviço diagnóstico, acaba-se perdendo boa parte do kit, o que encarece os procedimentos realizados, além do óbvio desperdício. Isso também ocorre com medicamentos, mas vamos nos ater ao caso dos insumos para exames diagnósticos moleculares, que são de alto custo.
A solução ideal e lógica seria concentrar os espécimes em locais de referência, para que a subutilização dos reagentes fosse mínima. Infelizmente, uma gama de obstáculos existe para isso. Neste caso especificamente, o serviço que realiza os exames é uma empresa contratada pelo serviço público no qual trabalho. Empresas têm um incentivo para limitar a cooperação: a competição. Embora a redução de custos associada à terceirização dos serviços para unidades centralizadas acabe sobrepujando a competição, esta ainda estimula as empresas a ofertar diretamente um serviço, ao invés de contratar um terceiro para fazê-lo. Como o valor repassado para as empresas é suficiente para dar conta de um certo grau de desperdício, este acaba “sendo pago”. Uma política que explicitamente reduzisse o pagamento de recursos associado com desperdício poderia forçar empresas menores a terceirizar os serviços menos frequentes para outras que centralizassem o atendimento de regiões maiores. Isso já ocorre em algumas situações, nas quais é mais econômico enviar o espécime para outro centro do que realizar a análise in loco.
Contratos públicos em nosso país, via de regra, estimulam uma política de desperdício, acentuando a dificuldade de oferecer serviços mais completos devido à limitação de recursos. Vários motivos concorrem para isso: pouca flexibilidade dos contratos, reduzida transparência, ocorrência de corrupção em vários níveis, ou simples despreparo técnico dos envolvidos. Assim, o fato de que reagentes dispendiosos rotineiramente sobram e vão para o lixo é um problema sério e sua utilização para alguma pesquisa científica não parece ser a melhor solução.
Por que fazer trabalhos científicos:
Um blog que divulga um interessante modelo de caderno aberto de pesquisa voltado para a neuro-oncologia traz uma postagem sobre por que fazer pesquisas clínicas. Com bom humor, reúne “razões erradas” para fazer pesquisa clínica. A proposta que me foi feita pelo colega se enquadra bem no quarto item: “Eu reúno essa enorme quantidade de dados. Deve haver algo que possa sair disso!”
Toda pesquisa científica clínica vem (ou deveria vir) de uma situação na qual precisamos resolver um problema e ainda não sabemos como. Como curar uma determinada doença? Entre dois medicamentos eficazes para uma doença, qual é melhor? Qual a melhor maneira de confirmar o diagnóstico de um determinada doença? Existem diferenças na incidência de uma doença entre grupos étnicos, sexos, níveis de educação, perfil econômico, etc? Tenha um problema, transforme-o numa pergunta objetiva e quase sempre haverá uma forma de descobrir a resposta para ele através de um desenho experimental clínico. No entanto, essa não é a principal motivação para fazer pesquisa clínica hoje em dia. A maioria dos profissionais que acaba se interessando por pesquisa clínica (se pudermos chamar assim), pelo menos em nosso país (mas suspeito que também por aí afora) quer não responder uma pergunta, mas ganhar um título em seu currículo. Em sua maioria, alunos de pós-graduação que buscam “vitaminar” seu currículo para cumprir as normas de seu programa de pós-graduação ou melhorar suas chances de conseguir um cargo acadêmico. Em alguns casos, a pura e simples vaidade é a única motivação.
Assim, não é surpresa que um motivo tão exdrúxulo quanto “sobrou um reagente, vamos fazer algo com ele” torne-se perfeitamente possível. Mesmo assim, se houvesse um racional para uma pesquisa, aguardando recursos para sua realização e os reagentes disponíveis dessa forma pudessem suprir pelo menos parcialmente um recurso para uma iniciativa dessas, isso tornaria uma idéia discutível em uma boa oportunidade. Claramente, no entanto, não é o caso da proposta que me foi feita. Não há qualquer racional por trás dela. Na verdade, o colega quer justamente que eu encontre um racional, numa inversão da metodologia que pode levar à vieses graves. Não preciso dizer que de mim não haverá muita ressonância a isto.
A tragédia da pesquisa clínica em nosso país:
Nos últimos 2 anos, o atual governo cometeu o maior corte de recursos para Ciência e Tecnologia da história. Sem falar nos cortes repetidos na educação. Some-se a isso o panorama atual de investimentos já reduzidos em C&T e educação e o acesso deficitário da população a educação básica e superior de qualidade. Nosso povo tem níveis de educação aquém do que se esperaria de uma nação que passa, nesse momento, pelo estágio de predomínio das faixas etárias mais jovens na pirâmide etária. Historicamente, esta é a etapa onde a força de trabalho tem maior potencial e onde o investimento em educação reverte melhores resultados futuros. Ou seja, estamos perdendo uma janela de oportunidade histórica em nosso país que deixará sequelas para as gerações vindouras.
Do ponto de vista da pesquisa clínica em nosso país, ela é praticamente inexistente. Não apenas isso, mas existe uma cultura disseminada de que ela é secundária. Há algum tempo atrás, tive oportunidade de presenciar uma frase disparada por uma colega durante uma reunião da minha especialidade em meu serviço: “não me importa saber biologia molecular, apenas me importa como usá-la na prática”. Dessa forma, sedimenta-se um futuro no qual o papel principal de nosso país será o de consumidor de tecnologia, em todas as áreas, incluindo a clínica, perdendo-se a capacidade de produzirmos tecnologia. São os tristes trópicos. Entrementes, sempre haverão alunos de pós-graduação querendo realizar algum “trabalho” com “sobras” de recursos dispendiosos desperdiçados em algum lugar.
Referências:
- Goldstein DA, Hirsch A. A Policy That Encourages Wastage of Expensive Medications—The JW Modifier. JAMA Oncol. 2018;4(2):155–156. doi:10.1001/jamaoncol.2017.3997
- Zapata JA, Lai AR, Moriates C. Is Excessive Resource Utilization an Adverse Event?. JAMA. 2017;317(8):849–850. doi:10.1001/jama.2017.0698