Epistemologia da objetividade
12 jan., 2018
Antônio Conselheiro

As nossas outras postagens foram sobre tecnologia, e estavam de acordo com o impulso inicial de criar um novo canal de comunicação aqui nas fímbrias da rede mundial, onde possivelmente ninguém jamais nos ouvirá (lerá). Tanto faz, o intuito principal deste canal, fora o de não ter intuito algum, foi simplesmente de jogar estas idéias ao vento e deixá-las ao sabor da maré do fluxo da rede de informações. A estatística pura e simples nos diz que a chance de alguém em particular dar de cara aleatoriamente com estas linhas e lê-las é ínfima, especialmente na ausência de uma divulgação sistemática em redes sociais, como é a rotina modernamente. Então, o ato puro de escrever e a (pseudo)exposição de fazer isso num canal livre e público são os fetiches que nos motivam.

Esta postagem varia do tema até então, não sendo sobre a tecnologia que empregamos na feitura do blog, ou em outras tecnologias as quais nos suscitam interesse. Esta é a introdução da minha tese sobre filosofia da ciência, conhecida por epistemologia. É uma tese pelo motivo mais próprio, mas não mais utilizado: é a apresentação da minha teoria em especial sobre a filosofia da ciência no geral, de uma área específica em especial. Cogitei longo tempo sobre fazer um doutorado na minha área primária de formação, e algum tempo (bem menos, confesso) em outras áreas, afins ou não. Desisti de todas as possibilidades por vários motivos, o principal sendo provavelmente a possibilidade de não me ater a prazos. Prazos são extremamente incômodos e chatos mas, acima de tudo, tolhem a criatividade alheia por não permitir desvios que, sem dúvida, consomem um tempo desproporcionalmente grande em relação à sua baixa produtividade, porém constituem a única possibilidade real de criar algo realmente novo e não somente um passeio guiado pela produção intelectual humana, algo como a Dysneylândia da filosofia.

Não que qualquer que seja o esforço empreendido terá a garantia de ser criativo ou vingar como uma iniciativa original na epistemologia. Novamente, a estatística me diz que o mais provável é que este esforço não seja mais do que algo isolado e sem nenhum significado para o panorama geral, local ou não. Mais uma vez, isso não me incomoda. Mais transtorno seria ter que me atrelar aos arreios acadêmicos a fim de criar o que quer que fosse e, pior ainda, a perspectiva de me tornar um jumento puxador de charrete da filosofia e nada criar de meu, mesmo que inútil. Peço perdão de antemão por ser assim grosseiro com o status quo da academia de uma forma anônima, sem assumir a autoria. Isso parece covardia, e bem o é, sem desculpas que eu possa usar para disfarçar a infração. Vivo numa democracia (aparente) e não sofro pressões sociais e políticas maiores que a média da população sem rosto. No entanto, arriscaria mais do que minha pele, também a de outros, e dessa forma, vilmente, me escondo sob um nom de plume.

Dito isto (como agora é moda, imitando desavergonhadamente os americanos), declaro que esta postagem é o equivalente ao preâmbulo, ou apresentação, da minha tese. Ela terá um aspecto formal sem muito fugir ao tradicional, com uma introdução, objetivo, discussão, etc. Para início, vou apresentar logo toda a premissa a ser defendida, sem circunlóquios:

  • O método científico é um construto essencialmente individual do agente do conhecimento, e o conhecimento possível é uma construção também individual acerca de uma visão de mundo, aparentemente objetiva, igualmente individual, mas que é capaz de interagir com construtos coletivos que existem como uma parte desta construção individual e que jamais podem alcançar uma objetividade transcendente.
  • O conhecimento científico pode ter estas características:
    • Integração lógica: obedece a um esqueleto de idéias prévias que podemos chamar de lógica.
    • Falseabilidade sistemática: ocorre dentro do sistema onde o conhecimento foi gerado, mas não há garantia de nenhuma permanência desta característica fora deste sistema.
    • Dependência do panorama: todas as operações lógicas de manipulação do conhecimento, por mais “objetivas” que pareçam, dependem da lógica do sistema onde o conhecimento está inserido, e mais, dependem de como o indivíduo se posiciona e quais as suas motivações dentro deste sistema.
  • A analogia que me vêm à mente é a de um peixe no aquário: o que conhecemos é o nosso mundo particular e apenas temos contato “indireto” com “o mundo lá fora” e nem mesmo sua realidade pode ser certa para nós, quanto mais suas características.

A minha tese é diretamente influenciada pelo trabalho de Humberto Maturana, sobre a Biologia do Conhecimento [1]. Seu trabalho é independente de correntes tradicionais anteriores da filosofia e inspirado em resultados de estudos clássicos de neurofisiologia. O trabalho citado como o original de suas idéias parece ser uma comunicação interna do laboratório onde ele trabalhava. Ele foi um dos co-autores do famoso trabalho What the frog’s eye tells the frog’s brain, um dos mais citados de toda a história do Science Citation Index (2300+ citações segundo o Google Acadêmico) e que tornou-se a mais conhecida obra de seu autor principal, o neurofisiologista Jerome Lettvin, com quem Maturana trabalhou. Seu trabalho inicial, apesar de aventurar-se pela epistemologia, cita fontes científicas da neurofisiologia e não declara influências de outros autores da filosofia.

Apesar disso, o trabalho de Maturana tem sido associado ao construtivismo, ou construcionismo, uma corrente filosófica da epistemologia, em especial ao construtivismo radical de Ernst von Glasersfeld. A semelhança de suas idéias com os conceitos de vários outros autores já foi apontada, entre os mais influentes, Jacob von Uexküll, Heinz von Foerster e Gordon Pask, expoentes da semiótica e cibernética. As idéias de Maturana influenciaram outros autores como Alfredo B. Ruiz, Jane Cull, William P. Hall, Peter M. Hejl, Paul Pangaro, Nelson Monteiro Vaz, Luiz Antonio Botelho Andrade, Ximena Yáñez Dávila, Miriam Graciano, e vários outros [2].

Dessa forma, o corpus da obra de Maturana e suas idéias, embora não estejam firmemente ancoradas em conceitos da linha de pensamento da filosofia, constitui uma referência importante da epistemologia, e pode ser considerada uma escola em si, comumente chamada de abordagem da Biologia do Conhecimento, inscrevendo-se no âmbito da teoria epistemológica do construtivismo radical e tendo conexões amplas com várias ramificações do pensamento moderno, como a cibernética, economia, sociologia, psicologia, educação, entre muitas outras [2].

Maturana trabalhou com seu aluno Francisco Varela na criação do conceito de autopoiese [3]. Autopoiese é definida como a propriedade de um sistema vivo de construir e determinar a si mesmo, independente do meio ambiente, embora interagindo com este. O conceito tem sido amplamente usado, especialmente depois de sua apropriação pelo sociólogo Niklas Luhmann, pelo filósofo Felix Guattari e por outros estudiosos das ciências sociais e humanas. Interessantemente, Maturana e Varela desaprovaram inicialmente a expansão da utilização do conceito de autopoiese para além das biologia. Curiosamente, nos dias atuais o conceito sobrevive principalmente nas ciências humanas, uma vez que foi amplamente criticado nas ciências biológicas e classificado como uma mera justificativa de um sistema filosófico solipsista [4].

P. Luisi atribui a falta de aceitação inicial e a longo prazo do conceito de autopoiese pelas ciências biológicas a vários fatores, resumidamente no fato de que a conceituação dos autores prescinde de pontos de contato com o paradigma de “mundo de ARN/ADN” que tem dominado a biologia e disciplinas afins nos últimos 50 ou mais anos [5]. Segundo ele, o pano de fundo conceitual da Teoria da Autopoiese é o de uma teoria da informação nos seres vivos (bio-lógica), aproximando-se, então, mesmo inadvertidamente, da cibernética. Varela, o autor principal do trabalho original sobre autopoiese, teria sido influenciado grandemente pela “Biologie et connaissance” de Piaget e pelo contato pessoal com Heinz von Foerster [5]. O manuscrito original, escrito em 1971, foi rejeitado por várias revistas da área e finalmente publicado em 1974 [3]. Apesar de ter chegado a ser usado em obras populares de biólogos famosos como Lynn Margulis, o conceito nunca passou de aceitação marginal, sendo considerado trivial ou pouco científico por muitos [6]. Nos últimos 15 anos, todavia, um interesse renovado tem ocorrido devido a possíveis aplicações do conceito de autopoiese na Biologia de Sistemas e Sistemas Complexos [5,6].

A minha visão é a de que o paradigma de “mundo de ARN/ADN”, que também constitui um paradigma de Darwinismo molecular, está chegando ao fim de seu ciclo de expectativa (hype cycle), com o reconhecimento de que o mapeamento puro e simples do conjunto completo do genoma de várias espécies abriu mais questões do que respondeu e do crescimento em importância de campos de pesquisa pós-genômicos, como a epigenômica e a proteômica [7]. Além disso, o aumento de interesse em campos como biologia sintética e exobiologia renova a discussão sobre a definição de organismo vivo. A definição simplista atual, baseada na replicação molecular, está encontrando uma nova oportunidade de revisão, na qual o conceito de autopoiese pode ser encaixado e encontrar aceitação mais ampla.

O meu objetivo, no entanto, não inclui uma crítica mais profunda ao conceito de autopoiese, nem do ponto de vista biológico, nem epistemológico, mas sim a exploração do relacionamento do modelo de biologia do conhecimento de Maturana com as tradições da epistemologia. Para tanto, farei um corte longitudinal através da história da epistemologia, tentando entrever onde se enraízam as idéias propostas por Maturana. Dessa forma, poderei analisar este modelo e, com ele, propor uma teoria epistemológica com as características que enumerei.

Gráfico por Pedro Beltrão

  1. Biology of Cognition. Humberto R. Maturana. Biological Computer Laboratory Research Report BCL 9.0. Urbana IL: University of Illinois, 1970. As Reprinted in: Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living. Dordecht: D. Reidel Publishing Co., 1980, pp. 5–58.
  2. Bunnell P. & Riegler A. (2011) Maturana across the disciplines. Constructivist Foundations 6(3): 287–292. http://constructivist.info/6/3/287
  3. Varela, F, Maturana H, Uribe R (1974) Autopoiesis: the organization of living systems, its characterization and a model. BioSystems 5:187–195
  4. Fanaya, Patrícia M. S. Fonseca. Autopiese, semiose e tradução: vias para a subjetividade nas redes digitais. 2014. 152 f. Tese (Doutorado em Comunicação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.
  5. Luisi PL. Autopoiesis: a review and a reappraisal. Naturwissenschaften. 2003 Feb;90(2):49-59.
  6. Razeto-Barry P. Autopoiesis 40 years later. A review and a reformulation. Orig Life Evol Biosph. 2012 Dec;42(6):543-67.
  7. Guttinger, Stephan and Dupré, John, “Genomics and Postgenomics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/genomics/.