Um conto do AmorVírus
22 set., 2023
Francisco

Um objeto atravessa o frio sideral, meio iluminado pelo já distante sol que está abandonando.

“Solução de Fluxo. Transmissão da NCC 441 NOVGOROD, transporte comercial, deixando a área de Ceti-Achebar. Relatório urgente para o Comando do Consórcio em Jusante, faixa aberta. Vai falar o comandante, Capitão Bashevi.

A quem possa alcançar esta mensagem, às estações deste quadrante e à Central da Frota, queiram gravar e retransmitir nosso relatório até segunda ordem, como convém a um código 5 de segurança.”

Atrás do homem alto que ditava para o rádio de pé junto ao console do operador, os relés e tripulantes trabalhavam nas manobras de aceleração, debaixo do ruído surdo de aparelhos. O barco avançava insensível rumo a seu destino, obedecendo ordens ecoadas nos cristais de memória do conjunto de navegação.

“Há algumas horas atrás estávamos entrando na gravisfera de Achebar quando recebemos um sinal automático. Vinha de um cargueiro que localizamos à deriva em órbita hiperbólica a 0.2 unidades de distância do sol. Juntamente com o pedido robô de ajuda, recebemos estranhas mensagens, aparentemente de um dos tripulantes. A nave foi alcançada por uma lançadeira e identificada como a LEONORETA, regular da KCT, servindo entre Altañera e Baudum, e desaparecida desde sua partida de Porto Belle há cinco dias. Parecia tratar-se de um caso rotineiro de resgate e rodamos a mensagem padrão para o Controle de Achebar I. A seguir, ordenei um grupo de abordagem para avaliar a situação e trazer a bordo quaisquer tripulantes em necessidade de ajuda médica. Os eventuais feridos poderiam ser levados para a estação central.

O tenente-engenheiro Egon e a doutora Clitemnestra desceram num casulo auxiliar. Entraram na Leonoreta através de uma das entradas de carga, procederam a um exame bacteriológico de resultado negativo e invadiram o sistema de corredores da nave. Os dois separaram-se, mantendo contato ininterrupto por rádio, e vasculharam primeiro os módulos de carga. A única irregularidade foi um dos containers de esponjas belgas, a carga da Leonoreta, aberto, semiesvaziado, e contendo as roupas de dois tripulantes. Clitemnestra subiu para o deck dos alojamentos. O interior estava com uma temperatura de 20 graus negativos, e a aparência das paredes e móveis indicava que ela descera ainda mais. Ela conseguiu forçar a escotilha colada pelo frio de cinco dos quartos de beliches. No primeiro haviam três camas desarrumadas com roupas jogadas (ou os pedaços congelados que ela reconheceu como tanto). Logo no banheiro, ela encontrou os primeiros corpos, dentro de uma banheira. Era um casal, nu, que fora apanhado de surpresa enquanto faziam… ah… enquanto estavam em intercurso. Mais tarde verificou-se que alguém desligara o Sistema de Suporte de Vida e mexera no homeostato daquela seção. Ainda foram encontrados mais oito mortos, todos vítimas do mesmo acidente. Observações feitas: todos estavam em pares, casais, alguns vestidos, outros não, a maioria abraçados, dois beijando-se, um dos casais também em intercurso. Clitemnestra ficou tão abalada com o que encontrou que deixou de proceder ao resto da averiguação de rotina. Enquanto isso, o tenente Egon checava o módulo de mantimentos, expedimentos e cozinha, dois decks abaixo. Não encontrou ninguém lá, mas uma confusão de rações e alimentos esparramados no chão e nas paredes. Havia caixas de cereais, tubos de molho e proteína, sacos de pãezinhos, e em especial muitas bombas de chocolate e sonhos. Algumas das trilhas e montinhos de farinha pareciam formar desenhos e mensagens, como “corações”, “setas”, os nomes de alguns tripulantes e outros símbolos menos claros. Apesar de Egon não ter dado grande importância a estes achados, temos motivos para crer que eles são significativos.

Quando a doutora entrou em contato com o oficial e relatou o que vira, os dois resolveram encontrar-se e continuar juntos a revista. O ponto de encontro foi a escotilha da sala de recreação. Chegando lá, os dois sentiram vibrações no corredor, mas nada distinguiram devido ao isolamento de seu traje fechado. Ligando a recepção externa, Egon distinguiu os zumbidos surdos de som ritmado. Após algum tempo, ele conseguiu distinguir a letra e melodia da música “Dream a little Dream of Me” com Frank Sinatra, uma canção antiga. Quando finalmente conseguiram abrir a porta, trancada por dentro, fizeram as mais incomuns de todas as observações até então. Dentro da sala o ambiente era homeostático, o Suporte funcionava. Lá estava a maior parte do restante da tripulação. Estavam vivos e pareciam bem, embora não se dessem conta da gravidade do que se passava. Na verdade estavam dando uma festa, ou algo assim, esvaziando as provisões de confetes, serpentinas e material de confraternização e consumindo os estoques clandestinos de álcool e marijuana. Algumas pessoas rodearam os astronautas e conversaram com eles de forma orientada e razoável, pelo menos até o momento em que tentaram persuadi-los a tirar as roupas. A maioria dos presentes, porém, mal notou a chegada de Egon e da doutora. Eles formavam casais em atitudes apaixonadas, aqui e ali alguém criava uma distração barulhenta para chamar a atenção do par e um ou outro casal recolhia-se aos recessos escuros para ficarem mais íntimos. Clitemnestra chegou a identificar o doutor Stangerloev, viajando na Leonoreta para passar férias em Chambon 32. Ele falou educadamente com a doutora, mas desculpou-se, não quis entrar em detalhes sobre os mortos no deck inferior e escapuliu acompanhado de uma jovem oficial. Todos os outros não reconheciam achar-se em perigo, embora coordenassem as idéias e agissem de forma amistosa. A descrição do tenente Egon é adequada: “Parecem um grupo de adolescentes.”

A essa altura a doutora estava muito tensa, e os dois resolveram sair. O tempo que passaram na recreação foi curto mas o suficiente para cobrir seus trajes de papelotes, tiras de plástico, refrigerante e marcas de batom. Assustados, eles refugiaram-se na enfermaria, no mesmo pavimento. Lá, encontraram a única pessoa sóbria em toda aquela confusão. Ele identificou-se como Magius, um operador de vôo de Isla Bonita, e contou que a Leonoreta partira normalmente de Porto Belle, sem nenhum incidente. Um dia depois, em pleno vácuo A, as pessoas passaram a se comportar de forma estranha, o próprio comandante dera ordens absurdas e em pouco tempo ninguém mais se entendia. Os primeiros sintomas foram sensações diferentes, ilusões e mudanças emocionais. Pessoas calmas ficaram muito irritadas, outros entraram em depressão, alguns ficaram eufóricos, e de repente o antes rígido imediato tornou-se distraído e pensativo. Apenas algumas horas depois, uma estranha idiotização apaixonada tomou progressivamente a nave, e os casais começaram a formar-se. Magius estava um pouco atordoado e não soube informar como a Leonoreta alcançou o sistema Achebar. Posteriormente verificou-se um detalhe: este Magius fora embarcado na Leonoreta em catatonia, juntamente com outro paciente, ambos com diagnóstico de paralisia cerebral. Os dois haviam sofrido um acidente grave há duas semanas e estavam sendo levados para um sanatório em Chambon.

Clitemnestra e Egon buscaram alcançar a ponte de comando. A Leonoreta é uma nave da classe BAVARIA, com a ponte localizada no centro geométrico da concha que contém o ambiente sustentado. Assim, todas as seções têm um corredor principal ou um elevador grande dando diretamente na sala de reuniões, pegada ao comando. Rapidamente os exploradores encontraram o elevador de sua seção e subiram. Enquanto percorriam os corredores, os dois ainda encontraram outros tripulantes, parecendo perdidos ou em transe. Um deles estava alucinado, repetindo febrilmente poemas de amor e separação. Chamou a atenção por estar só. Finalmente, entraram no convés de comando da nave, fechando as escotilhas atrás de si. Como sua provisão de oxigênio estava esgotada (a desordem os fizera esquecer-se de olhar os medidores), eles não tiveram outra escolha a não ser abrir os trajes e entrar na atmosfera da nave. Uma vez os exames bacteriológicos negativos, todavia, eles não tiveram receio. Com efeito, o ar estava bom, apesar de um perfume de magnólia em todo lugar.

A sala de reuniões estava vazia, mas várias telas achavam-se acesas e alguns arquivos abertos. O exame destes arquivos foi altamente esclarecedor. As anotações do médico de bordo, dr. Iago, davam conta de meia dúzia de pacientes internados na enfermaria com alucinações ou crises agudas de depressão, o que levou-o a pensar, após alguns exames, numa encefalite infecciosa. Apesar de seus esforços em isolar os doentes, a moléstia progredia sem nenhum limite ou padrão, e nenhum agente pôde ser identificado. Os equipamentos da nave não eram adequados à pesquisa virológica avançada, e o médico postulou a teoria de que fosse um viróide ultrarrecursivo, ou um retrovírus estocástico. De qualquer forma, seus dados confirmavam a hipótese de infecção, com um possível período de incubação de cerca de duas horas e transmissão desconhecida. Algumas horas depois do acometimento de quase metade da tripulação, os pacientes começaram a se recuperar rapidamente e sem explicação. Foi quando começaram os estranhos… amores. A partir daí, as notas são contraditórias e começam a se misturar com poemas, declarações e rabiscos de nomes de mulheres.

Dentro da ponte reinava um grande silêncio. O ambiente estava escuro e só os equipamentos automáticos funcionavam. Verificou-se que alguém colocara para funcionar uma rotina do navegador que levara a nave em segurança para Achebar. No console do radioperador encontraram o tripulante que mandara a estranha mensagem a qual recebemos: um poema intitulado “Amor em Leonoreta.” O homem, de seus vinte e cinco anos, estava mal, quase inconsciente e bastante desidratado. Quando os dois se aproximaram dele, estava largado sobre os monitores, mas moveu-se assim que os pressentiu. Parecia extremamente fraco. Não houve tempo de socorrê-lo, pois logo depois de sussurrar “perigo de amor em sua vida”, ele expirou. Os astronautas ainda ficaram quase duas horas na Leonoreta antes de saltarem de volta com o casulo. Todo o tempo estivemos preocupados quanto à possibilidade de estarem contaminados, mas nenhum deles apresentou sinais de doença ou distúrbio. O tracionamento foi normal, mas durante a meia hora que transcorreu perdemos o contato com a cabine. Tentamos repetidamente reatar, mas só ouvimos risos, sem contato visual. Quando a cápsula chegou, abrimos a escotilha à força e os encontramos, os dois, enternecidos num beijo demorado. Não se importaram conosco e foram levados docilmente para um alojamento.

Assim, a situação é esta: estamos certos de que um agente infeccioso apossou-se de maneira misteriosa da Leonoreta, e que ele provoca uma espécie de “letargo cogitans”, um entorpecimento das funções cerebrais, como um tipo de droga, e um efeito adicional suis generis: uma paixão efervescente e incrivelmente forte, chegando às vezes à loucura. Neste momento, os astronautas afetados estão sob quarentena, mas eles tocaram os técnicos da atracação e respiraram no sistema principal de ar circulante. Assim como não conseguimos detectá-lo, provavelmente nossa descontaminação não pode destruir o agente. Devemos estar infectados. Enviamos um aviso aos que encontrarem a Leonoreta ou nossa nave: não se aproximem. Ligamos nosso farol para sinalizarmos a posição. Solicitamos apoio médico- científico especializado à Jusante. É só. Bashevi desliga.”

O comandante assinou o penpad da intendência e caminhou sem nada dizer até seu assento. Parou um momento, como se pensasse, e virou-se , talvez lembrando-se de algo. Dirigiu-se ao imediato.
– Como eles estão?

– Eles apenas ficam lá, senhor, parados. Não fazem nada. – Uma engenheira virou-se. Haviam lágrimas em seus olhos

– São tão lindos, não são? – ela disse.

Alguém riu, outra pessoa suspirou. No fundo da sala, ouviu-se um soluço contido e entrecortado. Bashevi sentiu-se subitamente fraco e teve que apoiar-se no espaldar de sua poltrona. Os olhos escureceram e a consciência fugiu-lhe por um segundo.

– Escutem, – ele falou – Não sentiram uma brisa?

E, sentindo-se invadido por uma grande tranqüilidade, uma paz divina de espírito, apontou para a tela de proa:

– Vejam quantas estrelas!


AMOR

Psicovírus do grupo amorvírus

Rede eletrorreativa de elementos metalóides

A partícula patogênica identificada pela primeira vez numa colônia de Algol II foi designada como vírus por suas características cristalinas e reprodução intracelular. Estudos modernos comprovaram que não se trata de um vírus/viróide base carbono, mas uma microentidade pseudomaterial capaz de infectar seres de naturezas díspares. Embora as teorias divirjam, aceita-se que o amorvírus tem origem em outra dimensão e chegou ao nosso universo em busca de fluxos ativos de informação. Tal entidade hipotética, acognitiva, especializou-se em parasitar emoções (apesar de assim classificado, não interfere com o metabolismo celular, não provocando degeneração ou morte).

AMOR, como foi chamado o vírus que provocou a epidemia da espaçonave Leonoreta (mais tarde Joyride, mais tarde Escuna do Destino) teve seu tropismo emocional ativado por um evento fortuito. Determinou-se que a entrada do vírus no tecido nodal ocorreu através dos elementos minerais de esponjas belgas, uma das cargas da Leonoreta. Coincidentemente, um casal de tripulantes da nave, não agüentando a enorme distância entre eles (trinta metros) e atendendo a uma fantasia erótica, usaram o conteúdo de um container das macias esponjas belgas para um encontro. A proximidade entre o embrião do psicovírus e o ardente casal pode ter determinado a preferência emotiva do patógeno.

AMOR, transmitido principalmente por secreções orgânicas (as mais favoráveis ao frágil vírus são o esperma e a saliva), logo contaminou a Leonoreta. Seus efeitos, que valeram seu nome, são a indução de hipersexualidade e facilitação de encontros amorosos, além de forte necessidade de troca de carinho. Interessantemente, AMOR reprime encontros homossexuais enquanto superestimula os heterossexuais (o recém-descoberto psicovírus VIA II parece ter o efeito inverso). AMOR, por outro lado, provoca a liberação total da libido e a troca desenfreada de casais (mas inibe fortemente relações entre mais de 2 pessoas, ao contrário do amorvírus SU3). As pessoas infectadas com AMOR desenvolvem condições psicológicas e físicas perfeitas, sem o menor sinal de stress ou preocupações. Algumas pessoas, porém, podem passar por breves períodos de esgotamento fisiológico, depois de séries de encontros ardentes. Pesquisa-se, atualmente, o suposto retardo do envelhecimento provocado por AMOR. Os inconvenientes da infecção são principalmente: irresponsabilidade, ousadia, desrespeito (síndrome da adolescência recuperada); ocorrência (um tanto rara) de fixação na fase fálica, inveja peniana ou reação cruzada com sadomasoquismo (as famosas “bad dicks”).

AMOR foi restrito por um embargo de saúde e passou a ser utilizado como uma espécie de “droga” perfeita, o afrodisíaco final. Milhares de pessoas com condições de pagar pelo serviço mudaram-se para a nave do prazer, Joyride (antes Leonoreta, depois Escuna do Destino).


Depoimento:

Eu cresci numa família de religião PanAnatólica, que assegura o celibato pré-marital através de um punhado de psicotáticas e implantes repressores colocados na infância. Entre os 16 e os 26 anos sofri crises de hiperestresse, com pensamentos obsessivos, suicidas ou, pior, homicidas, além de fadiga crônica, perda de raciocínio e momentos de depressão. Fui internado logo após o “casamento” e os médicos me desenganaram, dizendo que jamais poderia sentir prazer. Hoje, depois de infectado pelo AMORVIRUS™ , sou um novo homem, um trabalhador honesto, feliz com sua companheira, como oficial de patrulha ecológica no planeta Serpia.

  • Oedipus Primigestu

AMORVIRUS™ é marca registrada da EROSFUTURA INC., Baldeivarq, Cinturão O, Setor J.

As sensações referidas por um indivíduo submetido ao tratamento transfectivo com AMORVIRUS™ não necessariamente serão reproduzidas em todos os pacientes.

Preço de transbordo e transfecção individual autorizada depende de tarifas locais de cada setor, planeta, ou estado nacional.

Texto originalmente escrito muitos anos atrás.