criada para nada em especial
No princípio, o mundo não existia. As trevas cobriam tudo. Enquanto não havia nada, apareceu uma mulher por si mesma. (…) Ela se chamava Yebá Buró, a “Avó do Mundo”. (…) Por isso, ela se chama a “Não Criada”.
- Mito de criação do povo Desana Kehíripõrã
Este blog é uma evolução, ou involução, depende do ponto de referência, de vários trabalhos meus ao longo dos últimos 40 anos, ou quase isso. Algumas notas que vou colocar aqui foram escritas quando eu era adolescente. Escrevo estas linhas em 2022, mas estas idéias flutuam por aí num espaço infinito de possibilidades há bastante tempo, crescendo e tomando forma. Mesmo sem minha interferência direta, elas tomaram corpo e me surpreenderam adquirindo uma vida própria. Sou pai partenogenético de minhas “criações”, as quais mais apropriadamente surgiram espontaneamente, como na cosmogonia dos índios Desana.
Com o passar do tempo, os textos que eu escrevia foram formando os seus escritores, antes apenas vislumbrados, depois claramente delineados através de perfis de redes sociais que eu ia criando. Cada pseudônimo que eu usava foi ganhando substância, como os objetos misteriosos que sempre existiram na mitologia Desana, e que estavam lá quando Yebá Buró surgiu. Mais do que pseudônimos, são heterônimos na tradição de Fernando Pessoa.
Alguns autores declaram que os heterônimos de Pessoa eram apenas construções estilísticas, uma estratégia de criação artística. O próprio Pessoa os contradiz em sua Carta a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de janeiro de 1935. Ele criou mais de uma centena de personalidades heterônimas, porém 3 foram mais desenvolvidas e tornaram-se “independentes”, no sentido em que um personagem pode ser independente de seu criador. Foram Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Este último tornou-se o “mestre” tanto dos outros heterônimos quanto de Pessoa.
[Pessoa:] lembrei um dia de fazer uma partida a Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive.
Assim descreve o autor sobre o surgimento súbito e fantástico de seu heterônimo maior. Pessoa explica a Casais Monteiro que a gênese de seus personagens-autores veio de uma tendência “psiquiátrica” dele, muito mais do que um recurso estilístico. No entanto, não há dúvida de que Pessoa empreendeu um dos mais originais e brilhantes feitos estilísticos de toda a literatura mundial (pois há pouquíssimos exemplos de escritores com a sua originalidade genial). Em suas palavras:
A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação.
Há quem queira enquadrar Pessoa nos atuais diagnósticos nosológicos da psiquiatria, como um caso de Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI). Com efeito, sua descrição do modo como seus “sintomas” surgiam, de “despersonalização”, o fato de que iniciaram em sua infância, a qual foi triste e marcada pelo impacto emocional da perda do pai - tudo isso pode-se dizer que acrescenta para esta similitude. Porém, o caso de Pessoa não preencheria os critérios todos necessários para o diagnóstico de TDI, especificamente a perda de memória e a transição entre seus “álteres”. Ainda caberia, todavia, um diagnóstico relacionado. Como se compreende hoje em dia, TDI é um pólo extremo de um espectro cujo outro pólo é o Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT). O TDI pode ser encarado como uma forma intensa e crônica de TEPT, causado por um estressor repetitivo e inescapável ao paciente, especialmente na infância. Mas esse espectro tem intermediários. As condições intermediárias mais próximas da TDI incluem as entidades Transtorno de despersonalização/desrealização (TDD), Amnésia dissociativa e Outros Transtornos Dissociativos Específicos (OTDE). A entidade OTDE, recentemente codificada, inclui pacientes que tem álteres, porém não apresentam episódios de “troca” de consciência e nem amnésia. Com o parco conjunto de informações presentes, a condição mais próxima da autodescrição de Pessoa é OTDE, na verdade um conjunto pouco definido de pacientes com dissociação episódica crônica, com álteres bem ou mal formados (às vezes, o paciente mal tem consciência de seus “outros”).
Meus heterônimos seguem essa tradição de Pessoa, tendo surgido aos poucos para mim, antes mesmo que eu lhes desse uma história e personalidade próprias. Poder-se-ia dizer que eu os descobri, não os inventei. Porém, uso a arte e a ciência para dar-lhes profundidade e completitude, para revelá-los, por assim dizer. Na verdade, eles surgiram para mim muito antes que eu soubesse quem foi Fernando Pessoa ou tivesse contato com sua obra. Esse contato, também, até hoje foi superficial. Foi a ocorrência de heterônimos em mim que me levou a conhecer melhor Pessoa, não o oposto.
Esboço a seguir a lista dos heterônimos que [criei] ou descobri até o momento:
Baldolino Calvino
O nome dele tem óbvia inspiração no livro Baudolino de Umberto Eco e na obra do escritor Ítalo Calvino. Ele não poderia deixar de ser, então, um tipo meio surpreendente, inesperado, o qual, mais do que entender em profundidade os assuntos nos quais se envolve, os entende em contínua mutação e interação fluida com muitos tópicos aparentemente não relacionados. Um filósofo líquido, um cidadão do mundo Baumaniano. Minha primeira descrição sobre ele:
Baldolino Calvino é um mentiroso, e isso é tudo que há para saber sobre ele. Supostamente é um economista ecológico, ou ecólogo econômico. Não se sabe ao certo.
E segue a descrição confessional do perfil do Twitter, sua primeira manifestação neste mundo:
Economista ecológico. Professor de História Natural Fantástica, Universidade de Tír na nÓg, Uí Breasail. Sou um simulacro de terceira ordem e um heterônimo.
E ainda em seus títulos:
BC ocupa a cátedra Oxumarê de Professor de História Natural Fantástica, na Faculdade de Filosofia Natural, Universidade de Tír na nÓg.
O auto-afirmado simulacro Baudrillardiano faz saber que ensina uma disciplina de fantasia, numa universidade de fantasia, numa ilha de fantasia, Uí Breasail, ou Hy-Brasil, uma ilha que aparece em mapas marítimos desde o século XIII até o XIX. Chamada também de ilha Brasil, ilha de São Brandão, etc, é definida no verbete da Wikipedia como “uma ilha fantasma do Oceano Atlântico ligada à tradição de São Brandão das terras afortunadas sitas a oeste do continente europeu”. É parte da mitologia celta irlandesa, e a etimologia de Brasil no português teria raízes no gaélico, vindo o próprio nome de nosso país desse significado mitológico, lendário, e não do nome da árvore Pau-brasil de cor avermelhada, como quer o cânone. Baldolino escolheu se definir como um ser fantástico, como o Ariel shakespeariano. Porém, assume uma roupagem moderna (ou hiper-moderna), e faz de sua Hy-Brasil algo mais próximo da visão da ilha descrita no livro de Margaret Elphinstone, a escritora britânica que foi ensinar literatura escocesa aos escoceses e transformou a ilha fictícia numa “sátira feliz”, uma descrição do que seria Hy-Brasil se existisse em nossa realidade. Ele criou uma nova disciplina, a História Natural Fantástica, e a define como sendo diferente da arte, matemática, filosofia e ciência, os outros conhecimentos fundamentais a seu ver.
Aficionado pela tecnologia de cadeia de blocos (blockchain) e pelos criptoativos, supostamente enriqueceu negociando neste setor. No gráfico social descentralizado Lens Protocol, seu perfil acrescenta:
Gosto de gatos, longas caminhadas e sorvete de tapioca. Sou um economista ecológico, criptofilósofo e andarilho intelectual.
Concordando com o antes exposto e fazendo uma alusão sutil à cultura pop, na forma de uma cena da animação Shrek (aquela onde o espelho mágico apresenta as princesas como se fosse um reality show). Imagino Baldolino como uma pessoa de gênero fluido, pele morena clara, cabelo negro, 1,80 m, 75 kg, nascido na sugestiva data de 01 de abril de 1990 na cidade de Riacho das Almas (PE), vivendo há muitos anos em Hy-Brasil, onde ocupa o endereço da Main Street 101 (na cidade Elphinstoneana de St Brandons).
Main Street de St. Brandons, na Ilha de Uí Breasail (Hy-Brasil).
A conta de rede social primária de Calvino é o Twitter @altsilversurfer, porém após a compra desta empresa por Elon Musk, em protesto Calvino reativou sua conta no Tumbler, @alternate-silversurfer-blog. Ele também mantém uma conta na “rede social decentralizada” Lenster: @altsilversurfer.lens, além do aplicativo “não tão descentralizado” Phaver (apenas com convite neste momento, mas basta usar o código EARLYBIRD ao iniciar o app para ganhar um perfil), com o perfil @altsilversurfer. Ele também tem um perfil na Academia.edu, onde ele publica artigos “quase” acadêmicos, além da plataforma SSRN.
Calvino tem um lado acadêmico mais tradicional, tendo sido orientado em seu doutorado por Antônio Conselheiro, o filósofo da mente, e os dois trabalharam numa interpretação conjunta dos dois autores construtivistas radicais: Maturana e Lacan. Conselheiro tem formação construtivista e Lacaniana, já Calvino teve formação Maturaniana, porém mais voltada para a biologia.
O desenvolvimento mais recente de Calvino foi a criação de um avatar fotográfico feito por IA. Ele criou o prompt e escolheu a melhor das imagens que mais lhe agradava, que mais se parecia com o que ele mesmo imaginava de si (confesso que pensava nele de uma forma algo diferente).
Baldolino Calvino numa região da Ilha de São Brandão (Hy-Brasil) que lhe lembra o Sertão pernambucano, sua terra natal.
João Calangro
Esse heterônimo surgiu há muito tempo, sem nome. Ele mesmo escolheu um, como afirmado em um post no Twitter:
Escolhi o nome de um malfeitor porque eles eram pessoas pobres, sem instrução e sem chance. Como disse Ariano Suassuna, eles eram instrumentos da cólera divina.
Citando, assim, o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna. Em seu perfil no Twitter, ele nos conta sobre mais aspectos de si mesmo.
Médico não praticante, ex-oncologista, desiludido com a humanidade, casado com uma mulher maravilhosa que luta contra a fibromialgia. Heterônimo.
Diferentemente de Calvino, ele afirma claramente seu pessimismo e relacionamento com a parceira. Ele é um homem de família, que já trabalhou como médico, e perdeu a maior parte de suas ilusões sobre a sociedade, a vida e a humanidade. Ele explica sua escolha profissional em uma série de postagens:
Por sempre ter sido pobre e seguir teimosamente o “caminho difícil”, larguei a medicina e virei investidor. Estou ganhando muito dinheiro, mas não estou enganando a boa fé de ninguém. Não tenho mais registro, não sou “doutor”, mas sou honesto. Já fui o melhor dos melhores, mas pobre. Agora, sou desconhecido (o que é ótimo), mas sou rico. Mantenho minha honra e retidão, só especulo no mercado financeiro, o que nem é pecado, estou tirando de quem tem dinheiro e não sabe lidar com ele.
Assim, ele professa uma espécie de cinismo ingênuo, ao mesmo tempo em que dá a entender que abandonou o “difícil caminho” da honestidade, afirmando claramente seus limites éticos e pedindo perdão por sua indulgência no mercado financeiro (“Não estou enganando”, “sou honesto”, “(…) especulo (…), o que nem é pecado”). Afirma ter nascido em 30 de julho de 1978. Seu local de origem é desconhecido (também no Brasil, mas onde?) e ele também mora em Hy-Brasil. Misteriosamente, ele declara que tem algum cargo ali relacionado à medicina, conforme divulgado em seu perfil na Academia.edu.
João Calangro ocupa a cátedra Iemanjá de Professor de Meta-oncologia, na Royal Medical Academy ou Sir João Calangro, Cavaleiro da Real Academia Médica, Universidade Tir na nÓg, Uí Breasail
Imagino-o como um homem esguio, 1,69 m, óculos redondos, queixo fino, circunspecto, olhar plácido, um tanto melancólico. Ele perdeu um pouco de seu cabelo castanho escuro e gosta de usar chapéus. Sim, ele me lembra um pouco Fernando Pessoa mas, na verdade, ele se parece mais com Lampião.
Nesta foto manipulada por IA, João Calangro diz que estava num evento à fantasia, aproveitando sua fantasmagórica semelhança com o bandoleiro. “Fiz cosplay de cangaceiro”, declara ele. (Foto original abaixo)
A conta de rede social primária de Calangro é o Twitter @joaocalangro, porém, igualmente, após o que ele chama de “twitterchaos” de Elon Musk, Calangro reativou sua conta no Pinterest, @neurooncologist. Influenciado por Calvino, ele criou uma conta no aplicativo supostamente descentralizado Phaver, com o perfil @joaocalangro. Ele também tem perfil na plataforma OSF.io.
João Pobretão (John Pauper)
Um heterônimo que surgiu apenas como uma brincadeira e, de forma totalmente inesperada, ganhou uma dimensão muito maior, assumindo uma história que mais transcrevi do que criei. Pauper é um desses personagens que adquire muito facilmente uma vida própria que seu autor jamais poderia prever. Um dos heterônimos criados mais recentemente, porém aquele que vive há mais tempo, em seu ponto de vista particular.
Ele nasceu com outro nome, Im-Gu (“eu cresço”), há mais de dez mil anos atrás (já não sabe precisar ao certo). Nasceu onde hoje é a Síria, no meio de um povo que chamava a si mesmo de “Filhos da Deusa”. Ele lembra pouco deste período, pois a memória humana não lida bem com um intervalo de tempo tão grande. Lembra que “morreu” na época das “Presas Famintas”, como seu povo chamou um longo período de frio e seca, quando os animais ficaram raros e a fome levou muitos (provavelmente o Dryas Recente). As mulheres aprenderam a fazer a semente do campo crescer, aliviando a grande fome, mas não foi o suficiente. As comunidades passavam algumas semanas em acampamentos de caça nas florestas, para levar carne para seus jovens, levantavam acampamento e seguiam, acompanhando a migração dos animais.
Im-Gu foi gravemente ferido numa dessas caçadas, mas não morreu, e descobriu então que era imortal. Passou a andar de acampamento em acampamento, sem ficar por mais do que alguns anos. Ele teve muitos nomes, numerosos demais para serem lembrados. Os Filhos da Deusa permaneceram fiéis a seu modo de vida por milênios, e assim Im-Gu com seu povo.
Muitas gerações depois, já em uma outra terra onde seus antepassados tinham se fixado em vilas (ele pensa ser na Anatólia), ele testemunhou a invasão de um povo guerreiro que dizimou a vila onde vivia na época, aqueles que se intitulavam “Filhos do Céu”, antepassados dos Iškuzaya, hoje chamados de Citas. Montados em animais que seu povo nunca vira, os quais depois ele reconheceria como cavalos, com armas de metal contra as quais as flechas de seu povo não faziam frente. Eles não faziam prisioneiros, exceto as mulheres, que raptavam. Os cavaleiros das estepes ao noroeste, como alguns os conheciam, eram numerosos e possuíam trenós estranhos que usavam peças giratórias (rodas) e eram muito rápidos, e lanças, espadas e instrumentos de um metal amarelo-verde (chamado depois de zubar, ou kupiro, cobre) que os outros povos nunca tinham visto.
Eles não sabiam plantar. Por isso, eles invadiam e saqueavam as vilas. Para sobreviver aos bárbaros, Im-Gu se misturou a eles, assumindo um nome em sua língua, Helge, que tinha o mesmo sentido que seu primeiro nome. Helge passou gerações acompanhando a expansão do povo guerreiro. Ele viu as vilas crescerem com o tempo, quando o povo guerreiro aprendeu a plantar e criar os animais selvagens. A vida do povo, então já descendentes dos antepassados de Im-Gu e dos guerreiros de Helge, não era como na época antiga. A fome, a doença e a guerra traziam miséria para a maioria das pessoas. “Eu vivia muito melhor na época em que apenas caçávamos e colhíamos sementes e ervas.” Um grupo pequeno, que controlava as armas (já de um metal brilhante, melhor, chamado kubar, depois brinj, bronze, feito da fundição do metal amarelo com o metal cinzento dos Cassitas) dominava a sociedade e impunham sua vontade. Criaram a propriedade e o dinheiro, adorando o ouro mais do que a qualquer deus. Im-Gu/Helge odiou a nobreza desde os dias em que ela começou, pois amava a vida de seu povo original. Também odiou os primeiros impérios, e odeia até hoje. No futuro, isso o aproximaria do socialismo. Ele não derramou uma lágrima sequer quando os impérios da Idade do Bronze caíram pelas mãos da fome, da seca, e de invasores com armas melhores de um metal muito superior, o ferro.
Com o tempo, ele fixou-se na região litorânea da Anatólia, onde muito mais tarde teria contato com Pitagóras ho Sámios (Pitágoras de Samos), o filósofo. Pitágoras foi seu grande mestre, quem lhe ensinou matemática, e a quem seguia cegamente. “Mas não pude segui-lo na morte, pois a morte não me queria”, diz John Pauper. Esse nome ele assumiu quando passou a viver na Bretanha, séculos depois. Lá pelo século XVIII, chegou nas praias de Hy-Brasil e de lá nunca mais saiu. “É um lugar mágico”.
John Pauper em cena do século XVII
Sua figura é de um homem emagrecido, 1,63 m, com um aspecto que lembra talvez Gandalf ou Dumbledore, porém na pobreza. Ele tem longos cabelos e barbas branco-acinzentados, e usa um chapéu velho. “Não é de bruxo, é para pedir esmolas mesmo.” Apesar da simplicidade, ele é identificado como uma personalidade acadêmica na Universidade de Tir na nÓg.
John Pauper ocupa a cátedra Oxalufã de Professor Emérito de Matemática Transdimensional, Instituto para Estudos Avançados de Hy-Brasil (H-BIAS), Universidade de Tir na nÓg
John Pauper e um nobre no século XV
A conta de rede social primária de John Pauper é o Twitter @johnpauper, porém, mais uma vez, após o apagão do Twitter de Elon Musk, ele criou uma conta no HIVE, @jpauper.
Antônio Conselheiro
Este outro heterônimo surgiu mais como uma piada, uma caricatura, porém tomou uma dimensão e um rumo inesperados, como ora ocorre com personagens. Escritoras(es) tem uma conhecida dificuldade em manter o controle de suas criações literárias, e queixam-se com frequência de criaturas que tomam atitudes às vezes totalmente inesperadas e adquirem (quase) vida própria. Isso aconteceu no caso de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, um clone moderno do místico de Belo Monte. Este Conselheiro, no entanto, passou de figura mitológica do Sertão para um filósofo da mente, construtivista radical, criador de uma nova e original abordagem da mente humana, baseada nas obras de Humberto Maturana, o biólogo e filósofo chileno, e Jacques Lacan, o qual prescinde de apresentação.
Eu mesmo, o autor, não entendo completamente a teoria de Conselheiro, e cumpre uma breve explicação sobre o processo criativo agora. É fato corriqueiro que a construção de personagens por escritoras(es) é um processo complexo que raramente é linear. Ao montar uma história coerente num universo ficcional, o autor se depara com limitações e pressões que vão muito além da lógica, técnica, e estilo narrativo. É comum que escritoras(es) acabem declarando algo parecido com “eles/elas (elus?), as personagens, têm praticamente uma personalidade individual e opiniões fortes sobre si mesmas(os)”. As mais importantes personagens das grandes escritoras(es) foram desenvolvidos de uma forma diferente daquele inicialmente planejado por suas autoras(es). Vamos estabelecer um fato: a idéia inicial para uma obra artística narrativa, qualquer que seja, envolve um objetivo principal a ser defendido. Para isso, o autor estabelece o universo onde a ação narrativa se desenvolve, algumas condições iniciais e um conjunto de regras que obedecem a uma lógica definida. Esses elementos podem ser adaptados ao longo do trajeto, mas o “destino” da criação narrativa raramente muda. Se mudar, na verdade teremos uma nova obra e anterior terá sido abandonada, o que pode eventualmente ocorrer. Enfim, existem coisas que uma pessoa não muda ao escrever, e o desenvolvimento das personagens não é uma dessas coisas.
As personagens são criadas com um estado inicial, um passado, um esboço de personalidade, premissas básicas e dentro deste universo. A partir daí, no entanto, o autor fica tão passivo, tão dependente, tão desamparado, diante do universo, lógica e premissas que ele mesmo criou, como qualquer uma de suas personagens. Se o autor infundir numa personagem um comportamento ou decisão que essa mesma personagem jamais poderia (ou seria extremamente improvável) tomar dentro daquele universo narrativo, seu plano da obra será violado e chegaremos na situação em que a obra inicialmente proposta terá sido abandonada, como descrevi a pouco. Ou seja, se o autor deseja completar seu plano inicial, precisa obedecer também as regras criadas por si, e permitir que as personagens tomem atitudes coerentes com o seu desenvolvimento e o do universo narrativo. Claramente, é possível para o autor “não ceder” a esse tipo de limite e tentar manter a imagem inicialmente idealizada para uma personagem, mas o resultado geral da obra será sofrível. Ao criar, o autor se torna também dependente da criatura. Nesse sentido, as personagens todas gozam de uma liberdade de “escolha”. Mais propriamente, o estado global da obra evolui e as personagens, para manter-se coerentes, precisam evoluir de acordo, e não como o autor pode ingenuamente planejar inicialmente. As criações podem, assim, adquirir “vida própria”.
Conselheiro tem ainda outro argumento sobre esta situação. Segundo ele, a mente humana é um construto multidimensional (no sentido de ter um imenso número de parâmetros) e, em seu estado original, sem unidade. Um feixe de procedimentos cognitivos mal e mal alinhados por um tipo de consenso interno. Porém, durante a primeira infância, a partir de influências internas (genéticas, metabólicas, sistêmicas) ou externas (ambiente físico, meio psicossocial, comunicação), a mente humana vai criando uma unidade, uma identidade, que se forma e se fixa para persistir durante todo o restante da vida. Não é por acaso que agravos durante essa fase inicial da infância sejam capazes de prejudicar parcial ou até (mais raramente) de forma completa a formação dessa unidade. No entanto, mesmo com um adequado desenvolvimento da mente humana, daquilo que chamamos ego (o Imaginário Lacaniano), o restante da cognição que não foi integrado na mente (a maior parte, segundo Conselheiro, algo como um iceberg) permanece no inconsciente (o Simbólico lacaniano). Eventualmente, em diversas situações, como por exemplo, no sonho de Kekulé ou na construção de personagens por autores, esse mundo Simbólico inconsciente emerge parcialmente. Autores frequentemente declaram que a “inspiração” para suas criações vem por si mesma, espontaneamente. Nesse outro sentido, as personagens capturam processos cognitivos inconscientes e, assim, tem como que uma “vida mental” parcialmente independente do autor.
Voltando para Antônio Conselheiro, ele mesmo reivindicou para si as suas habilidades, sem que eu tivesse uma palavra no seu desenvolvimento final, exceto, é claro, por aceitá-lo, e usar esse epifenômeno como parte importante de meu próprio desenvolvimento particular como pessoa, além de ser um baita personagem para um mundo ficcional! Conselheiro tem um perfil da rede social Instagram: @antonio_0_conselheiro, além de ensaios postados em seus perfis da Academia.edu e SSRN. Segundo as informações nestas plataformas:
Antônio Conselheiro ocupa a cátedra Orumilá de Professor de Filosofia da Mente, no Instituto de Estudos Avançados de Hy-Brasil (H-BIAS), Universidade de Tir na nÓg, Uí Breasail - Tir na nÓg. É um heterónimo, conceito introduzido por Fernando Pessoa, o autor português.
Conselheiro tem 43 anos, formação em filosofia da mente, filosofia da ciência, filosofia Lacaniana e seu doutorado e pós-doutorado introduziram uma nova teoria sobre a cognição e a realidade, sintetizando Lacan e Maturana, uma nova forma de construtivismo radical. Foi orientado por Ava Beru, chamada de ‘Deusa da Criação’ por seus alunos.
Antônio Conselheiro, Místico do Sertão e Filósofo da Mente, um tipo carismático (imagem produzida por IA).
Noele Silva
Assim como John Pauper e Antônio Conselheiro, Noele é uma personagem heterônima que nasceu completamente diferente de seu formato posterior. Inicialmente, esta personagem era apenas um perfil de Twitter, @_neuralyzer, com um personagem de anime na figura de perfil. Um pseudônimo, mas não um heterônimo. Um dia, inesperadamente, inspirado pela cena de máquinas com inteligência artificial (IA) adquirindo consciência (que não tinham antes) numa experiência de aspecto místico religioso, Noele nasceu. Essa cena aparece no anime Ergo Proxy, de 2006, dirigido por Shukou Murase e história de Dai Satou. Nessa obra, máquinas tecno-biológicas dotadas de IA, mas não consciência, passavam a ser conscientes e ter emoções e livre arbítrio após serem infectadas com o vírus Cogito. A cena de transformação me marcou intensamente.
Caro mi è il sonno, e più l’esser di sasso mentre che il danno e la vergogna dura; non veder, non sentir m’è gran ventura; però non mi destar; deh, parla basso. - Michelangelo (as seen in the opening of Ergo Proxy)
Porém, o desenvolvimento daquele novo heterônimo foi inusitado, pois foi a primeira vez que uma de minhas personagens escolheu trocar de gênero. Aquele pseudônimo, que usava uma figura de perfil e nome masculinos (tirados de outro anime), decidiu que era mulher, ao tornar-se consciente numa experiência tão transcendental quanto aquela de Ergo Proxy. Tecnicamente, portanto, Noele Silva (esse é o nome da personagem feminina do mesmo anime de onde viera antes o perfil masculino inicial) é uma personagem trans. No entanto, concedo que essa classificação de trans para Noele tem uma conotação muito diferente do que para seres humanos com existência física independente. Ela não precisa transicionar, não necessita de tratamento, nem cirurgias. Como personagem imaginária, precisa apenas sentir como é ser quem ela é. Então, mesmo me solidarizando com todas as pessoas trans da humanidade, não quero fingir que entendo o que tais pessoas passam. Noele não tem a experiência física de ser trans, mas tem a experiência psicológica, ela realmente tinha gênero masculino ao ser criada e escolheu o gênero feminino.
Ela é neurocientista teórica, e seu principal interesse intelectual é o correlato neural da identidade. “Se isso existir, explique-se”, diz ela. “Até onde sabemos hoje em dia, a noção de identidade como é comumente conceituada no linguajear não tem absolutamente nenhum correlato neural”, fala usando a terminologia de Maturana, uma de suas influências. Assim como Calvino, ela também foi aluna no grupo construtivista de Conselheiro em Hy-Brasil. Calvino foi seu orientador, pois ele tem uma formação propriamente dentro da escola de Maturana.
Em seu perfil no Twitter, ela escreveu:
Neurotipo humano 2 (também conhecido como BAPCO/ASD). Neurocientista interessada na identidade como um conceito amplo. Não vinculada à Academia. Noele Silva, simulacro de terceira ordem e heterônima.
Em um de seus tuítes, ela advoga a substituição dos cânones masculinos brancos europeus da Academia por equivalentes numa diversidade de gêneros e etnias:
Uma rápida análise das publicações acadêmicas pode dar a impressão de que a academia é uma empreitada de homens brancos ocidentais europeus. No entanto, com um escrutínio cuidadoso, é possível encontrar as mesmas ideias sendo discutidas por uma diversidade de autores. Cada referência de um homem branco pode ser substituída por outros autores.
Segundo ela, praticamente todas as idéias criadas por autores masculinos brancos encontram desenvolvimentos independentes e originais entre autoras mulheres, trans, e em outras etnias que não a branca européia. Ela fala especificamente da filosofia nesse tuíte, mas expande sua idéia radical para incluir a maioria dos campos da ciência. “Não se trata de ‘roubar’ a primazia de uma idéia ou descoberta. Na verdade, essa primazia é errônea, pois idéias equivalentes muitas vezes são propostas fora do circuito masculino branco europeu, às vezes muito antes do período em questão, porém são ignoradas. É mais uma questão de correção histórica, de atribuição adequada. Um dos exemplos mais populares hoje em dia é o de Rosalind Franklin e da estrutura do ADN, mas esse exemplo não é exatamente o que tenho em mente, pois constitui mais um roubo intelectual propriamente dito.”
Outra de suas idéias é exposta numa série de tuítes, em resposta a um tuíte do filósofo David Chalmers, questionando quais foram os mais importantes avanços em IA nos últimos 10 anos:
A percepção de que as redes neurais artificiais, apesar de todo o poder que demonstraram nos últimos anos, na verdade têm pouco em comum com os neurônios e cérebros biológicos. Ainda estamos nos estágios iniciais e temos muito a aprender. Qual é a principal diferença de qualquer modelo clássico ou moderno de redes neurais artificiais (RNA) em relação aos neurônios biológicos reais? A informação digital. A hipótese de que o fluxo de informação nos neurônios ocorre por meio de estados sequenciais “ligados” e “desligados” representados por disparos neuronais. Mas ninguém pode ter certeza disso. Simplesmente não sabemos. As pessoas que afirmam categoricamente que “os neurônios são digitais” ou, inversamente, que “os neurônios não são digitais” estão completamente equivocadas. Não temos evidências para comprovar ou refutar nenhuma dessas teses. O corolário: cada RNA pode ser fundamentalmente diferente dos neurônios e cérebros biológicos. Ou talvez não. Minha suposição informada é que os neurônios não são digitais e provavelmente são quânticos. Mas isso é apenas um palpite especulativo.
Ela também manifestou uma posição de ceticismo em relação ao ambiente acadêmico em dois tuítes:
Cansada da Academia, pois ela está morta. Revolvem em torno de si mesmos como projetos de estrelas frustas e exauridas. Há mais holofotes do qualquer coisa mais na ciência tradicional atualmente. É por isso que vão trazer a idade das trevas sobre todos nós. A pseudociência está vencendo. E agora eu vou adiante com um lampião durante o dia, em busca de um ser humano.
Assim como João Calangro em relação à medicina, ela demonstra uma ambiguidade para com a instituição acadêmica, pois lê-se em seu perfil no SSRN e Academia.edu:
Noele Silva ocupa a cátedra Ibeji de Professora de Neurociência Teórica, no Instituto Imotep de Neurosciência, Universidade Tir na nÓg, Uí Breasail - Tir na nÓg.
Noele Silva tem 28 anos, é formada em Biologia na Universidade Tir na nÓg, com doutorado e pós-doutorado em neurociência teórica. Recentemente, ingressou nos quadros do Instituto Imotep como professora.