Marco Aurélio (Imperador Romano)
Meditações
Nota de B.C.: tal e qual publicado na versão citada, os direitos autorais não são meus e não me importa, não ganho um centavo ao disponibilizar aqui neste sítio desconhecido da rede de computadores. Acrescento algumas notas de própria lavra, e mais não direi.
Versão portuguesa baseada na tradução inglesa do original, com o título
MEDITATIONS,
de autoria de MAXWELL STANIFORTH Edição da Penguin Books
Tradução e Tratamento em Computador
Luís A. P. Varela Pinto Processado em computador (ambiente Macintosh) com recurso às seguintes aplicações: Processamento de texto: Microsoft Word 98
Composição e paginação: Adobe PageMaker 6.5
Esta versão electrónica, foi executada com o Adobe Acrobat 4 em Janeiro de 2002
Espinho, Portugal
«Enquanto os homens continuarem a ser atraídos pelas lágrimas e triunfos da bondade humana, não faltarão leitores a Marco Aurélio. Melancólico, compassivo e desencantado, o último dos Estóicos ainda envergonha as nossas fraquezas e silencia a nossa insatisfação.»
Maxwell Staniforth na Introdução
Introdução
As Meditações de Marco Aurélio eram uma leitura muito na moda há duas gerações. Era o tempo em que o catálogo de qualquer bom editor incluía sempre uma elegante colecção de bolso dos clássicos; e, de entre estas, poucas haveria em que não aparecessem as Meditações. A voga já passou, mas talvez explique a razão por que o livro ainda é conhecido de nome por tanta gente, muito embora o conhecimento do seu conteúdo seja mais raro do que foi outrora. De facto, quando uma pessoa escolhe este livro, pode muito bem perguntar-se, «De que é que tratará? Que assuntos irei encontrar lá dentro?» Devo, por isso, e desde já, prevenir o leitor de que não pode esperar encontrar nele qualquer tema continuado ou conexo. Trata-se apenas do diário ou “livro de apontamentos” onde Marco Aurélio, de tempos a tempos, registava qualquer coisa que lhe parecesse merecer a pena guardar. Ora regista um pensamento sugerido por qualquer acontecimento recente ou encontro pessoal; ora medita sobre os mistérios da vida e da morte do homem; ora recorda uma máxima prática para o auto-aperfeiçoamento, ora transcreve das suas leituras do dia um pensamento de que gostou particularmente. Todos estes assuntos, e uma grande variedade de outros, são registados à medida que ocorreram ao escritor. O leitor pode iniciar a leitura do livro ou interrompê-la em qualquer ponto à sua escolha, e ler tantas ou tão poucas entradas quanto lhe apeteça. Em resumo, Marco deu-nos um excelente livro para ter na mesa de cabeceira.
Os bibliotecários catalogam geralmente as Meditações, e sem dúvida bem, como “Filosofia”; mas isto pode induzir o leitor em erro, a menos que compreenda o lugar que a filosofia ocupava na antiguidade. Daquilo que ele conhece dos escritos dos representantes do século vinte deste ramo do saber, é pouco provável que conclua que o seu objectivo principal e final é a obtenção da virtude pessoal. Isso, imagina ele, é do foro da religião, não da filosofia. Mas na Antiguidade Clássica as coisas eram diferentes. A moralidade, a vida sã, as relações do homem com os deuses — tudo isto era do foro do filósofo e não do do sacerdote. A religião romana, no tempo do Império, não tinha nada a ver com os problemas morais. A sua função era simplesmente a da execução dos rituais que assegurassem a protecção dos deuses por parte do Estado, ou evitassem os efeitos do seu descontentamento. Era um sistema formal de cerimónias públicas realizadas por funcionários do Estado, e não dava resposta às dúvidas e dificuldades da alma humana. Contudo, então, como agora, o homem sentia- se perplexo perante as grandes questões que são preocupação de todos nós. Qual é a composição deste universo que nos rodeia, e como é que ele apareceu? Teria sido fruto de um acaso cego, ou da sábia Providência? Se os deuses existem, será que eles se interessam pelas coisas dos mortais? Qual é a natureza do homem, e qual o seu dever aqui, e o seu destino no além-túmulo? Não eram os sacerdotes, mas os filósofos, que se reclamavam da competência para dar resposta a estas questões. É verdade que as suas respostas não eram unânimes; havia sistemas filosóficos rivais, e cada um oferecia a sua própria solução (como, aliás, as diferentes religiões do mundo ainda fazem); mas todos concordavam que só à filosofia pertencia o direito exclusivo de se pronunciar com autoridade nos campos da metafísica, da teologia e da ética. Ela era considerada competente para explicar a história da criação, definir os poderes invisíveis por detrás da ordem do mundo, interpretar a natureza e o sentido da existência humana, prescrever as regras para uma vida sã, e revelar o futuro além-túmulo. Assim, a filosofia ocupava o lugar que, nos nossos dias, é ocupado pela religião, como instrutora e guia das almas em cada estádio das suas peregrinações terrenas. Esta pretensão justifica-se especialmente no caso do Estoicismo, que era marcado por um carácter mais religioso do que qualquer outro sistema da Antiguidade. Como o historiador Lecky observa, «O Estoicismo tornou-se a religião das classes instruídas. Ele fornecia os princípios da virtude, dava cor à mais nobre literatura da época, e guiava todos os desenvolvimentos do fervor moral».*
O que isto significa é que um leitor que queira fazer uma abordagem correcta do pensamento de Marco Aurélio deve levar em linha de conta que as frequentes alusões do imperador à “filosofia” têm sempre o tipo de implicações que nós hoje associamos à palavra religião. Porque filosofia, para o homem que escreveu estas Meditações, significava tudo o que uma religião pode significar. Não era a procura de verdades abstractas, era uma regra para a vida. Em certo sentido, este livro é um verdadeiro manual de devoção pessoal, como A Imitação de Cristo de Thomas à Kempis — com o qual tem sido frequentemente comparado, e que, de facto, é a sua contrapartida cristã.
A Filosofia Estóica
O Estoicismo, o sistema filosófico em que Marco acreditava, foi, na sua origem, um produto do pensamento do Médio Oriente. Tinha sido fundado uns trezentos anos antes de Cristo por Zenão, oriundo de Citium (hoje Larnaka) em Chipre, e recebeu o seu nome da “Stoa” ou colonata, em Atenas, onde ele costumava dissertar. O seu principal discípulo foi Cleanthes, que por sua vez foi continuado por Chrysipo; e os sucessivos trabalhos destes três homens, que depois foram venerados como os “pais fundadores“ do Estoicismo, resultaram na formação de um esquema de doutrina que abarcava «todas as coisas divinas e humanas». As três palavras-chave do credo de Zenão eram materialismo, monismo e mutação. Ou seja, ele considerava que tudo no universo — mesmo o tempo, mesmo o pensamento — tem uma qualquer espécie de substância corpórea (materialismo); que, em última análise, tudo se pode resumir a um simples princípio unificador (monismo); e que tudo está em perpétuo processo de mudança e a transformar-se em qualquer coisa diferente daquilo que antes era (mutação). Estes três dogmas foram os alicerces sobre os quais Zenão construiu toda a estrutura. A sua intransigente insistência nestes princípios levou-o por vezes a expor ideias perfeitamente indefensáveis; mas, nas mãos dos seus seguidores, as mais rígidas asserções do fundador foram modificadas e suavizadas de maneira a torná-las aceitáveis para os pensadores de espírito mais realista.
Quando o Estoicismo passou do Oriente para o Ocidente e foi introduzido no mundo romano, assumiu um aspecto diferente. Foram os elementos morais dos ensinamentos de Zenão que aqui despertaram mais atenção, e o seu valor prático foi prontamente apreciado. Um código que era humano, racional e moderado, um código que insistia num procedimento justo e virtuoso, na autodisciplina, numa força moral inabalável e numa completa libertação das tempestades da paixão adequava-se admiravelmente ao carácter romano. E consequentemente a reputação e influência do Estoicismo aumentou invariavelmente ao longo dos séculos que assistiram ao declínio da república e ao nascimento do principado; e por altura da ascensão de Marco Aurélio ao trono, tinha já atingido o ponto mais alto da sua supremacia. As suas concepções e a sua terminologia eram agora familiares aos homens e mulheres instruídos de todas as cidades importantes do Império.
Os Estóicos definiam a filosofia como «luta pela sabedoria»; e “sabedoria“, por sua vez, era definida como «conhecimento das coisas divinas e humanas». Dividiam este conhecimento em três ramos: a Lógica, a Física e a Ética.* Uma vez que o primeiro requisito para a procura da verdade é um pensamento claro e rigoroso, que, por sua vez, depende de um uso preciso das palavras e um vocabulário de termos técnicos, o estudo inicial era a Lógica. Depois vinha a investigação dos fenómenos naturais e das leis da natureza. E esta estendia-se até à interpretação metafísica do universo; pois, no esquema estóico, a Física incluía o estudo completo do Ser na sua tripla manifestação: o próprio homem, o universo criado à sua volta, e Deus. Por fim, colocado no lugar mais elevado e importante do sistema, vinha a Ética. Pois a verdadeira função da filosofia, o ponto para o qual convergiam todas as questões e ao qual estavam subordinados todos os ramos do conhecimento, era a própria conduta do homem, definida numa palavra, “virtude“. Como diz Diogenes Laertius, «eles comparam a filosofia a uma criatura vivente; os ossos e músculos correspondem à Lógica, a carne à Ética, e a alma à Física. Comparam-na também a um campo produtivo, do qual a Lógica é a vedação circundante, a Ética, a colheita que ela encerra, e a Física, o solo».† Convém resumir brevemente os seus ensinamentos sobre estes três pontos.
(a) A Lógica. No sector da Lógica, tudo o que o leitor de Marco Aurélio precisa de saber é a teoria do conhecimento dos Estóicos e os meios de atingir esse conhecimento. No seu sistema, o conhecimento começa com impressões, que são produzidas pelo impacto das coisas ou qualidades sobre os sentidos. Depois fica para o poder do espírito o julgamento daquilo que os sentidos reportam: aceitá-lo como representação verdadeira da realidade objectiva, ou rejeitá-lo como falso. (A importância decisiva desta fase é repetidamente realçada por Marco). Algumas impressões, como é evidente, desencadeiam uma aceitação imediata e espontânea — como, por exemplo, a noção elementar de que o bem é benéfico e o mal prejudicial — mas noutros casos a aceitação só vem depois de ponderada reflexão; e pode variar entre uma aprovação hesitante, tão fraca e vacilante que apenas constitui uma mera “opinião”, e uma certeza categórica que só é produzida por uma chamada “impressão arrebatadora”. É uma impressão tão forte que, no dizer de um escritor, «como que agarra o sujeito pelos cabelos e lhe arranca a aceitação». Contudo, mesmo uma impressão deste tipo pode ser, de facto, imperfeita ou enganadora; e consequentemente a sua aceitação, por muito segura que seja, pode ser errónea. Deve, portanto, ser, em seguida, submetida ao escrutínio da razão, único poder soberano que pode emitir o passaporte para a convicção. Por fim, esta convicção pessoal tem de ser verificada por comparação com a experiência dos tempos e sabedorias passados, e confirmada pelo veredicto geral da humanidade; e torna-se então conhecimento. Ao explicar estes quatro estádios, Zenão costumava ilustrar as impressões com os dedos da mão estendidos, a aceitação com a mão fechada, a convicção com o punho cerrado, e o conhecimento com o punho firmemente agarrado pela outra mão.
(b) A Física. Os físicos estóicos ensinavam que a fonte original do Ser em todas as suas formas é uma certa substância omnipresente em todo o universo, que pode ser mais bem descrita como Espírito. Contudo, como eles eram materialistas consumados, consideravam este Espírito como consistindo de uma matéria real e concreta, embora de uma espécie o mais fina e imperceptível que se possa imaginar. Numa analogia com o mais subtil e vivo dos elementos conhecidos, e que também alimenta a vida e o crescimento, conceberam a sua natureza essencial como a do Fogo; mas um fogo tão rarefeito e etéreo que a palavra “calor” talvez esteja mais próxima para a descrever do que qualquer coisa que possa sugerir uma ideia de chama real. Este Espírito-Fogo, que possuía consciência, objectivo e vontade, era simultaneamente o criador e a matéria do universo; tomava forma em inúmeras manifestações diferentes, dando assim às coisas a sua substância e forma, e produzindo a partir de si próprio o mundo visível e tudo o que dentro dele se encontra. De acordo com os variados contextos em que reflecte sobre isto, Marco dá-lhe muitos nomes: quando fala da sua acção sobre o universo como um todo, pode chamar-lhe Deus, Zeus, Natureza, Providência, Destino, Necessidade, ou Lei; como um dos elementos materiais da natureza, é Fogo, ou Ar, ou Força; em relação à constituição do próprio homem, torna-se Alma, Razão, Espírito, Sopro, ou (na linguagem técnica da psicologia Estóica) “a Faculdade-Mestra”. É importante lembrar que todas estas palavras são meros termos para designar o mesmo Espírito-Fogo criador nos seus variados aspectos.
O Estoicismo é, portanto, um credo panteísta: isto é, considera que Deus está em toda a criação, mas não tem existência fora dela. E como tal, está em directa oposição aos ensinamentos rivais do Epicurismo. Epicuro, ao desenvolver as ideias de Demócrito, defendia que os únicos constituintes do universo são átomos e espaço vazio. Os átomos, em número infinito, estão em movimento contínuo e em alta velocidade no vácuo, e as suas colisões fortuitas produzem certas combinações que fazem o mundo tal como ele é em cada momento. Uma vez que este colidir incessante de átomo contra átomo no vórtice vai fazer nascer eternamente novas combinações e dispersões, a vida do universo continua a perpetuar-se infatigavelmente. É verdade que entre as infinitamente numerosas combinações possíveis, algumas terão necessariamente de parecer como se fossem o resultado de um desígnio; mas na realidade tal coisa, o desígnio, não existe, e tudo se deve ao acaso. O próprio Marco, em mais do que uma passagem das Meditações, considera as implicações desta teoria alternativa. «Haverá uma Providência sábia, ou apenas um amontoado desordenado de átomos?» pergunta ele; mas apenas para concluir que em qualquer dos casos as questões morais com as quais ele se preocupa sairiam incólumes. Pelo que a ele próprio respeita, a sua convicção sobre a direcção providencial do mundo não vacila.
Para explicar o processo de criação, os Estóicos confiavam na teoria da tensão. A partir do facto de que a maioria dos corpos se expandem quando aquecidos, conclui-se claramente que o calor exerce uma pressão. Por consequência, o Espírito-Fogo, no seu estado primitivo de intenso calor e correspondente alta pressão, começa logo a expandir-se; e isto traz consigo um abrandamento proporcional da tensão. E daqui resulta que algum do fogo divino arrefece, se torna visível e se transforma no elemento, mais humilde, do terrestre fogo; e este, por sua vez, à medida que a tensão continua a baixar, condensa-se parcialmente em ar; e algumas porções de ar, por sua vez, solidificam, tornando- se água e terra. Nesta fase, entra em campo um movimento de sentido contrário; o calor vital contido nestes quatro elementos começa a afirmar a sua energia criadora e a materializar-se nas inúmeras formas e feitios que compõem o universo. Fisicamente, estas diferenciam-se de acordo com as proporções variáveis de fogo, ar, terra e água que contêm; noutros aspectos, a sua natureza depende do grau de tensão do fogo que os produz. Assim, num certo grau, esta força tornar-se-á nas formas orgânicas da vida vegetal; num grau mais elevado, nos animais ou “almas sem razão”; e depois disso, nas “almas racionais” características do homem. Dentro destas categorias podem produzir-se tantas formas do Ser quantos os diferentes graus de tensão. Na tensão máxima, o Espírito-Fogo adquire os atributos de uma Alma-Mundo, com a mesma relação com o universo que a alma individual tem com o próprio homem. A longo prazo, porém, virá um tempo em que esta energia em constante crescimento atinge um pico de intensidade que a torna devoradora da sua própria criação: uma após outra, as diferentes formas e substâncias dissolvem-se de novo nos seus elementos originais, a água evapora-se em ar, o ar transforma-se em chamas, e finalmente o universo desaparece numa grande conflagração a que nada sobrevive, excepto o primitivo Espírito-Fogo. Após o que, todo o processo recomeça; os sucessivos actos de criação repetem-se, e o padrão histórico desenrola-se como anteriormente. E tudo isto se repete em infindáveis ciclos cósmicos alternados de criação e destruição; e como as leis eternas são imutáveis, depois de cada conflagração, tudo o que aconteceu nos ciclos anteriores tem de reproduzir-se uma vez mais até ao mais pequeno pormenor.
Quanto ao próprio homem, ele é um microcosmos que reflecte fielmente em si próprio o organismo mais vasto do universo. O seu corpo físico é formado a partir dos quatro elementos, e aquilo que o cria, que nele habita e que o controla é uma partícula do Espírito-Fogo omnipresente. Assim como este ígneo Poder no seu estado mais elevado e mais puro actua como alma do mundo, também aqui, residindo no corpo numa forma pouco menos etérea, ele desempenha o mesmo papel para o homem, criando e dirigindo a sua vida, os seus sentidos, os seus pensamentos e as suas emoções. É alimentado pelo sangue, e tem o seu assento no coração, o principal centro do sangue. (Daí que Marco se refira por duas vezes à alma como «uma exalação do sangue».)
Na hora aprazada, a Natureza desfaz os elementos materiais que compuseram o corpo, de modo a usá-los para outros fins; e isto é aquilo que conhecemos como morte. Quanto àquilo que acontece à ”ígnea partícula”, os Estóicos, como os Cristãos, não são unânimes. Todos concordam que mais tarde ou mais cedo ela terá de ser reabsorvida pelo Espírito-Fogo original, mas havia diferenças de opinião quanto à altura em que isso acontece. A doutrina mais antiga, a que Marco adere, era que, depois da dissolução do corpo, a alma continuava a viver nas regiões superiores do ar, e só era dissolvida de novo no Fogo-Mundo na conflagração final. Eram estes os ensinamentos de Cleanthes; Chrysipo, por outro lado, era de opinião que só as almas dos bons e dos sábios preservavam a sua identidade pessoal até ao fim do mundo, enquanto que aos maus e aos ignorantes era concedido apenas um curto período de sobrevivência antes da sua reabsorção. Outros pensadores consideravam que em todos os casos esta reabsorção se seguia imediatamente à morte; e ainda outros acreditavam num estado purgatorial no qual a alma sofria um processo de purificação física e moral como prelúdio da sua reunião com a substância-mundo.
(c) A Ética. Os Estóicos ensinavam que o fim principal do homem, e o seu mais elevado bem, é a felicidade. Na sua visão, a felicidade era alcançada «vivendo de acordo com a Natureza». Esta famosa frase é muito facilmente mal interpretada pelo leitor moderno. Não significa viver uma vida simples, ou a vida do homem natural; e muito menos viver da maneira que muito bem queremos. Para apreender o seu significado, temos de nos lembrar que a “Natureza” é uma das designações dos Estóicos para o fogo divino que, além de criar todas as coisas, também as molda para os seus próprios fins. Assim, ela incarna a ideia que hoje nós exprimimos pela palavra “evolução”: o poeta americano que escreveu «Alguns chamam-lhe Evolução e outros chamam-lhe Deus» ficou muito perto da maneira de pensar dos Estóicos. Ela era a força que guiava e dirigia todos os tipos de crescimento ou desenvolvimento em direcção à perfeição final; e porque ela era também uma força viva, intencional e inteligente, os próprios Estóicos também, por vezes, lhe chamavam Deus. «Viver de acordo com a Natureza», portanto, não era uma máxima muito diferente da obrigação do Novo Testamento «Sede vós os seguidores de Deus», e implicava um ideal igualmente sublime e uma disciplina igualmente espinhosa.
Se quisermos uma definição mais precisa desta “Vida Natural”, Marco diz que ela consiste, para cada criatura, numa estrita conformidade com o princípio essencial da constituição dessa mesma criatura. No caso do homem, este princípio essencial é a sua razão, que é parte da Razão universal. Desde que, portanto, ele siga esta lei racional do seu ser, aproxima-se da felicidade; se se afasta dela, não a alcançará. A Vida Natural é, de facto, a vida controlada pela razão; e tal vida é descrita, em resumo, como “virtude”. É o significado de virtude que explica o dogma estóico que diz que «a virtude é o único bem, e a felicidade consiste exclusivamente na virtude».
A razão diz-nos claramente que algumas coisas estão no nosso poder e outras não. Por exemplo, a saúde física, a riqueza, os amigos, a morte, e outras deste tipo, estão fora do nosso controle; portanto, não podem ser nem ajudas nem obstáculos à Vida Natural. São “coisas neutras”. Mas a nossa própria vontade, os nossos juízos, o nosso poder de aceitar o que é moralmente correcto ou rejeitar o contrário - tudo isto está no nosso próprio poder. Daí que nada exterior a nós nos pode, por si só, afectar; só quando interiormente o aceitamos ou recusamos é que ele nos pode beneficiar ou prejudicar. O prazer, em si próprio, não é um bem, nem a dor, por si só, um mal; tornam-se uma ou outra coisa quando nós assim as julgamos. É este o significado da insistência de Marco em que «a opinião é tudo». E também explica a presteza do sábio, que tantas vezes encontramos realçada nas suas páginas, em «aceitar sem ressentimento tudo que lhe possa acontecer»; um preceito que é claramente um dos esteios da sua vida pessoal. É este o princípio que está por detrás da famosa “apatia”, ou “impassividade”, do sábio estóico ideal. Este, como ensinavam os filósofos, experimentará todas as sensações e emoções que são comuns ao homem, mas, porque se recusa a vê-las como males, não será afectado por elas. Considerando-as como coisas exteriores e portanto neutras, ele fica seguro e incólume. Consequentemente, como os Estóicos afirmavam (para grande divertimento do poeta Epicurista Horácio), só o sábio é verdadeiro rei, rico, apesar da sua pobreza, feliz, apesar do seu sofrimento físico, livre, mesmo se escravo, sereno e auto-suficiente em todas as vicissitudes. Se as circunstâncias alguma vez se mostrarem excessivas para este desprendimento, ele não hesitará em deixar voluntariamente a vida; porque a vida, simplesmente, está também entre as coisas que são neutras. Tanto Zenão como Cleanthes morreram pelas próprias mãos, e nós vamos encontrar o próprio Marco mais do que uma vez entregue ao pensamento de que, em certas condições, fica melhor ao filósofo deixar a vida do que permanecer nela.
Tão inequívoco como o dever do homem para consigo próprio, é o seu dever para com os outros. Uma vez que todos os homens são manifestações do Espírito-Fogo uno e criador, a doutrina da fraternidade universal tinha um papel primordial no sistema estóico. O instinto racional e social é uma coisa inerente à constituição do homem. A bondade para com o seu semelhante é pois sua obrigação de todos os tempos; tem de aprender a ser tolerante para com as suas faltas, descontar a sua ignorância, perdoar os seus erros e ajudá-lo nas suas necessidades. Para Marco, esta nem sempre era das tarefas mais fáceis; a própria frequência com que ele recorda a si próprio que a boa vizinhança é uma parte importante da Vida Natural sugere que, na prática, ela, por vezes, constituía uma pressão sobre a sua capacidade de benevolência. Contudo, reconhece inteiramente que o homem é um ser social, feito para agir socialmente. Aceita o axioma estóico de que todo o universo é uma sociedade organizada; uma comunidade cívica na qual o divino e o humano residem juntos numa cidadania comum. (Anteriormente, os Cínicos tinham-na descrito como a cosmo-polis: a cidade que acompanha todo o cosmos em extensão.) Nas suas próprias palavras, «o mundo é como se fosse uma só cidade»; e assim como, para os atenienses, Atenas era a “querida cidade de Cecrops”, para o filósofo, o universo é “a querida cidade de Deus”».
Marco Aurélio António
Marco Annio Vero, o futuro imperador de Roma, nasceu em 26 de Abril de 121 a. D. durante o reinado do Imperador Adriano. O pai, Annio Vero, era um nobre romano, e o avô, com o mesmo nome, tinha sido Prefeito da Cidade e, por três vezes, Cônsul. Ambos os pais morreram ainda novos e, depois da morte do pai, Marco foi adoptado pelo avô, de quem ele fala com caloroso afecto e respeito. Os anos da infância foram felizes, e de estudo; uma série de tutores dos mais competentes tomaram conta da sua educação e treinaram-no nas doutrinas da filosofia estóica; e embora a sua saúde não fosse nunca muito robusta, gostava de montar a cavalo, caçar, lutar, e de jogos de ar livre. Quando tinha dezassete anos, o Imperador Adriano morreu e sucedeu-lhe Aurélio António (vulgarmente conhecido como António Pio), cuja mulher era uma tia de Marco chamada Faustina. Não tendo filhos varões, António adoptou o jovem sobrinho de sua mulher, mudou-lhe o nome para Marco Aurélio António, nomeou-o seu sucessor e prometeu-o em casamento à sua filha Faustina. O grau de felicidade que Marco encontrou neste casamento é, e continuará por ventura a ser, um enigma. Os cronistas contemporâneos deliciam-se a relatar pormenorizadamente histórias da despudorada licenciosidade da mulher, e afirmam que ela era tratada com uma indulgência censurável por um marido de longe bom demais para ela. Contudo, as provas de tudo isto são duvidosas; e o certo é que, quando ela morreu, trinta anos mais tarde, Marco sofreu com a sua perda. Ela dera-lhe cinco filhos que ele amava apaixonadamente; mas a morte roubou-lhe sucessivamente todos eles, à excepção do inútil Cómodo, que viveu o suficiente para suceder ao pai.
Dos dezessete aos quarenta anos, como companheiro próximo e colega de António, Marco entregou-se à aprendizagem das artes de governo e à preparação para os seus futuros deveres de imperador. Nesses anos a majestosa imensidão da pax romana, mantida pela administração imperial, estendeu-se a toda a Europa Ocidental e do Sul, ao Norte de África, à Ásia Menor, à Arménia e à Síria. Mas muito do fardo da governação deste vasto domínio centrava-se na pessoa do próprio imperador; e quando António morreu, em 161, caiu sobre Marco uma enorme e pesada responsabilidade. Contrariando os desejos do Senado, levou consigo para o trono, como colega, Lúcio Vero, o outro filho adoptivo de António; e, pela primeira vez, Roma assistiu ao espectáculo de dois imperadores. Quase simultaneamente, os longos anos de serenidade imperial chegaram ao fim. Uma peste espalhou-se desastrosamente por todo o mundo ocidental. Inundações destruíram grandes quantidades de cereal em Roma, obrigando Marco a vender as jóias reais para aliviar o sofrimento dos seus súbditos famintos. A juntar à ansiedade da peste e da fome, ele encontrou-se a braços com sinais de guerra. A paz foi quebrada pelo fragor das armas; nas fronteiras orientais, bandos de ferozes homens tribais do Marcomanni (“homens das marcas”), Quadi, e Sarmati invadiram a raia numa série de tentativas determinadas de penetrar nas defesas do Império. Perante esta ameaça, Marco deixou Roma em 167 para assumir pessoalmente o comando das suas legiões depauperadas no Danúbio. Em 169 Vero morreu, e durante a maior parte dos treze anos seguintes Marco ficou só no seu posto. Durante um curto intervalo foi chamado à Ásia, onde o comandante das tropas, Avídeo Cássio, se revoltou e se fez proclamar imperador. Mas Cássio foi assassinado por dois dos seus oficiais; e, como é característico de Marco, quando aqueles lhe trouxeram, a cabeça decepada, ele recuou e recusou recebê-los. Ordenou que todos os papéis de Cássio fossem queimados por ler, e tratou os rebeldes com clemência. Durante esta expedição ao Oriente, a sua mulher Faustina, que o acompanhara, morreu; e Marco voltou para o Danúbio para retomar a tarefa de suster a maré invasora da barbárie. Aí, por entre os pântanos enevoados e as ilhas fumegantes daquela melancólica região, ele buscava consolo para as suas horas de solidão e exílio na redacção das suas Meditações. Anos de trabalho árduo e conflito tinham-lhe exaurido o espírito; estava cansado da vida, e, nas suas próprias palavras, «à espera da saída para o retiro». Quando, por fim, uma doença infecciosa o atacou, ele ainda se arrastou alguns dias, vindo a morrer em 17 de Março de 180, com cinquenta e nove anos de idade e dezanove de reinado. «Não chorai por mim,» foram as suas últimas palavras, «pensem antes na pestilência e na morte de tantos outros».
Sugerir que Marco não era um verdadeiro estóico parece paradoxal. Contudo as suas meditações revelam um tipo de carácter que dificilmente agradaria a Zenão ou a Chrysipo. Os humores variando entre a esperança e a depressão, o sensível retraimento perante companheiros desagradáveis ou a vista de sangue, a ânsia reprimida, mas evidente, por simpatia e afecto — tudo isto não eram sinais de um carácter moldado à antiga maneira estóica. A verdade é que Marco representa uma fase transitória de pensamento. Em lugar da velha afirmação de auto-suficiência, há uma timidez e uma predisposição para reconhecer os próprios fracassos; em vez da estóica virtude do orgulho, ele parece antecipar a virtude cristã da humildade. Por isso, ainda mais simpatizamos com as suas repetidas lutas pelo autodomínio e pelos seus esforços por orientar todos os impulsos naturais e emoções para o implacável serviço do dever. Sem dúvida que esta constante preocupação em se aperfeiçoar, esta insistência em aperfeiçoar máximas e lugares-comuns morais, produziram uma impressão desagradável em alguns leitores; e houve mesmo detractores que chamaram a Marco impostor e pedante. Penso que tal juízo mostra falta de entendimento da natureza do temperamento religioso; porque quando um homem toma a sua religião seriamente, o auto-exame consciencioso e a aspiração à virtude têm obrigatoriamente de constituir uma muito grande parte de todas as suas peregrinações interiores e meditações. Aliás, os escritos de um S. Paulo ou de um Thomas à Kempis mostram tantos conselhos, exortações à santidade e citações de autoridades canónicas como as que encontramos em Marco; contudo, ninguém teve a audácia de acusar os seus autores de insinceridade — apesar mesmo das suas confessadas intenções de escrever para a edificação de uma larga faixa de leitores. Quando, por outro lado, escutamos as secretas conversas íntimas do imperador-filósofo com a sua própria alma, e nos lembramos de que ele nunca se dirige a qualquer ouvinte humano a não ser ele próprio, creio que o nosso instinto nos diz que estamos na presença de um homem simples, humilde e absolutamente sincero. Um pequeno facto, mas significativo, em que até agora, e tanto quanto eu sei, nenhum dos seus editores reparou, parece revelar a sua genuína bondade. Quando ele tem a oportunidade de se referir a pessoas em termos de louvor, nunca deixa de registar os seus nomes. Mas quando, como por vezes acontece, ele se permite um comentário desfavorável, um véu de secretismo cobre o transgressor, e nós ficamos apenas com um indício da sua identidade que nos é fornecido por um nada revelador “ele” ou “eles”.* Este caridoso hábito — que podia talvez ser recomendado a alguns dos que hoje escrevem as suas memórias — merece particular atenção em alguém cuja sensibilidade deve ter sofrido quase diariamente afrontas das maneiras e da sociedade de então.
«Guiai-me, Zeus e Destino», diz a prece de Epicteto, «para onde quer que eu seja mandado. Obedecerei sem hesitar; mesmo que venha a tornar-me cobarde ou me retraia, sempre terei de ir». Estas palavras exprimem adequadamente a atitude de Marco perante a vida. Se ele observa obliquamente que se trata «mais de luta do que de dança», a sua firmeza não vacila; e a peculiar doçura e delicadeza do seu carácter exerceu uma atracção que estes laivos de pessimismo não diminuem. «Santo e sábio por natureza, imperador e guerreiro por profissão», ele contempla, da solitária altura em que se encontra, as dores da mortalidade com olhos que estão desiludidos, porém serenos. «E portanto,» citando a homenagem de Mathew Arnold, «ele continua o amigo especial e o consolador das almas escrupulosas e difíceis, mas de coração puro e empenhadas na elevação, especialmente naquelas idades em que caminham à vista, e não por fé, mas em que ainda não têm uma visão aberta: a essas almas, talvez ele não possa dar tudo aquilo por que elas anseiam, mas dá-lhes muito, e o que ele lhes dá podem eles receber». E sobre aquela sua estátua equestre que se ergue na Piazza Compidoglio, em Roma, escreveu Henry James que «na capital da Cristandade, o retrato mais sugestivo da consciência cristã é a de um imperador pagão».
Enquanto os homens continuarem a ser atraídos pelas lágrimas e triunfos da bondade humana, não faltarão leitores a Marco Aurélio. Melancólico, compassivo e desencantado, o último dos Estóicos ainda envergonha as nossas fraquezas e silencia a nossa insatisfação.
Estoicismo e Cristianismo
Em conclusão, o leitor pode com algum proveito ser levado a pensar que a teologia da Igreja Cristã tem uma grande dívida para com o Estoicismo. No evangelho original de Cristo predominavam os elementos morais e espirituais, e o elemento intelectual estava-lhes perfeitamente subordinado. Mas quando a mensagem se espalhou para além dos confins da Palestina, e as suas implicações foram assimiladas pelos pensadores de outras terras, fez-se sentir a necessidade de concepções mais exactas da verdade. Tornou-se evidente que a nova fé tinha de levantar uma multiplicidade de questões nos campos da cosmogonia, da metafísica, da psicologia e da ética; e para todas elas a Igreja tinha de descobrir um qualquer sistema coerente de respostas. Felizmente, muita da matéria necessária para a tarefa estava ali à mão. O solo já tinha sido explorado pelas escolas da filosofia pagã, e as suas descobertas constituíram o corpo de conhecimento científico contemporâneo aceite. Muitos dos homens que integraram a comunidade cristã durante o segundo século tinham sido educados nestas doutrinas desde a juventude; a sua maioria, nos princípios do Estoicismo, uma vez que este sistema, mais do que qualquer outro, atraía o tipo de espírito naturalmente religioso. Para eles se viraram, pois, os homens da igreja na procura de ajuda para a construção da estrutura da sua teologia. Isto não implica uma apropriação acrítica e por atacado das ideias pagãs. Muito pelo contrário, quando uma teoria filosófica parecia sugerir as linhas ao longo das quais o pensamento cristão podia procurar a sua própria solução de um problema, era adoptada como hipótese de trabalho e testada nas suas possibilidades; após o que, numa forma adequadamente modificada, podia encontrar o seu lugar na nova religião. Nas palavras do Dr. Prestige, «era a ideia que era afeiçoada para servir à fé cristã, e não a fé que era afeiçoada para nela poder caber a concepção importada».*
Por exemplo, o autor do quarto evangelho declara que Cristo é a Logos. Esta expressão (que significa “razão” ou “palavra”) fora já durante muito tempo um dos principais termos do Estoicismo, escolhido originalmente com o objectivo de explicar como a divindade entrou em relação com o universo. De acordo com os filósofos, a Razão divina dera existência ao mundo por meio de inúmeras partículas de si própria que habitaram e deram forma a toda a criação. Esta versão da origem do universo, já profundamente arreigada na geração sua contemporânea, foi aceite, em princípio, pelo evangelista. Ele afirma, contudo, que o meio pelo qual Deus se manifestou na criação e manutenção do mundo não é uma Logos múltipla, mas sim una e pessoal, gerada de si próprio. «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram criadas por ele, e sem ele não existia nada do que foi feito».†
Assim recebe a metafísica estóica o baptismo cristão.
Outro conceito estóico que inspirou a Igreja foi o do “Espírito divino”. Ao querer dar um significado mais explícito ao “fogo criador” de Zenão, Cleanthes fora o primeiro a descobrir o termo pneuma, ou “espírito” para o descrever. Como o fogo, este “espírito” inteligente foi imaginado como uma ténue substância semelhante à corrente de ar ou sopro, mas possuindo essencialmente a qualidade do calor; era imanente no universo, como Deus, e no homem, como alma e princípio criador de vida. É evidente que isto não está muito longe do “Espírito Santo” da teologia cristã, o “Senhor e Criador da vida”, manifestado visivelmente como línguas de fogo no Pentecostes e desde então sempre associado — no espírito cristão bem como no estóico — às ideias de fogo vital e calor benéfico.
Também na doutrina da Trindade, a concepção eclesiástica do Pai, Verbo e Espírito encontra o seu gérmen nos diferentes nomes Estóicos para a Divina Unidade. Assim, Séneca, ao escrever sobre o supremo Poder que molda o universo, afirma, «A este Poder chamamos nós umas vezes Deus Todo Poderoso, outras vezes, Sabedoria incorpórea, ou Espírito santo, ou ainda Destino». A Igreja apenas teve de rejeitar o último destes termos para chegar à sua própria definição aceitável da Natureza Divina; enquanto que a posterior afirmação de que «estes três são Um só», que o espírito moderno considera paradoxal, era um perfeito lugar-comum para aqueles mais familiarizados com as noções estóicas.
Outros exemplos de ideias cristãs que já tinham sido ensacadas pelos Estóicos são a convicção de que os homens são «filhos de Deus»† e partilham da sua natureza, e a consequente crença de que devemos considerar todos os homens como nossos irmãos e não perder nenhuma oportunidade de fazer bem ao nosso semelhante. Um dos últimos escritores do Novo Testamento também avalizou com a autoridade cristã a crença estóica na conflagração final do universo.* Também uma notável contribuição estóica para a Igreja, e que teve uma influência duradoura, foi a prática do ascetismo. Os cristãos que desejavam seguir os conselhos da perfeição tomaram o sábio estóico e o seu modo de vida como exemplo formal. As vestes grosseiras, o cabelo e barba descuidados foram adoptados como distintivos da aspiração à santidade. Assim como o professor estóico costumava deixar a sociedade e meditar em solidão, os seus imitadores cristãos não só seguiram o seu exemplo como se apropriaram da sua terminologia. No vocabulário estóico, aquele que se recolhia num retiro era um ”anacoreta”; aquele que praticava a autodisciplina era um “asceta”, aqueles que viviam separados dos seus semelhantes eram “monacais” e o lugar do seu recolhimento era um “mosteiro”. Cada uma destas expressões manteve o seu lugar e significado na linguagem da Igreja até hoje.
Contudo, talvez o melhor testemunho da maneira como as ideias estóicas penetraram no pensamento cristão se encontre num tratado que se tornou a base da filosofia moral medieval, Os Deveres, de Santo Ambrósio de Milão. Aqui, os conceitos bíblicos da rectidão e da santidade são quase totalmente substituídos por doutrinas anteriores da ortodoxia estóica. A voz é a de um bispo cristão, mas os preceitos são de Zenão. Não é a santidade, mas a felicidade que aparece como ideal de vida; e a vida feliz é uma vida de acordo com a natureza. Tal vida alcança-se pela virtude, porque a virtude é «o mais elevado bem»; e a virtude é uma vez mais decomposta nos seus elementos pagãos de justiça, prudência, temperança e força moral. E o mais notável de tudo isto é que se declara a vida feliz e virtuosa como completamente realizável durante a nossa estada aqui na terra; e a esperança de uma futura bem-aventurança torna-se um motivo não primordial, mas secundário.
Perante estas e outras afirmações semelhantes de um prelado e doutor da Igreja, quem será capaz de negar o direito do Estoicismo de ser chamado, nas palavras de um escritor do nosso tempo, «uma raiz do Cristianismo»?
O HINO DE CLEANTHES
ALTÍSSIMA GLÓRIA DA COMPANHIA DOS CÉUS, SENHOR DE VARIADO NOME ETERNO E PERPÉTUO SEJA O TEU PODER!
ABENÇOADO SEJAS, Ó GRANDE ARQUITECTO DA CRIAÇÃO, QUE ORDENAS TODAS AS COISAS SEGUNDO AS TUAS LEIS!
EVOCAR O TEU NOME É PRÓPRIO E JUSTO PARA O MORTAL, POIS SOMOS NASCIDOS DE TI; SIM, E A NÓS, SÓ A NÓS DE ENTRE TUDO O QUE VIVE E SE MOVE SOBRE A TERRA, É CONCEDIDA A VOZ E A PALAVRA.
CANTAR-TE-EI, POIS, LOUVORES, AGORA! GLORIFICAREI, POIS, AGORA E PARA SEMPRE, O TEU PODER!
Nota do tradutor da versão inglesa
Temos que admitir que esta obra começa logo por uma tradução errada. O título grego no topo do livro de Marco não significa de modo nenhum “Meditações”; o significado das suas duas palavras é simplesmente “Para Si Mesmo”. Não sei quem foi o primeiro responsável por parafraseá-las como “Meditações”, mas a sua prolongada utilização habituou o público leitor a este título de preferência a qualquer outro, e portanto pareceria pedantismo substituí-lo a pretexto de uma maior precisão literal.
As mais antigas traduções inglesas de Marco Aurélio foram feitas por Meric Casaubon (1634) e Jeremy Collier (1701). O estilo de Casaubon, além de arcaico, é pesado e confuso; a versão de Collier afasta-se tanto do original que é pouco mais do que uma paráfrase. De nenhuma destas obras se pode dizer que tenha tido grande sucesso. A primeira pessoa a atrair para Marco Aurélio uma larga audiência foi o erudito do século dezanove George Long. A sua tradução foi publicada em 1862; é admiravelmente correcta, tão literal como as traduções escolares, e, quanto a mim, pelo menos perfeitamente ilegível. Contudo, depressa se tornou um “must” para a geração de meados da época vitoriana, desde grandes e eminentes personalidades como o Deão de Canterbury e Mathew Arnold, até às inúmeras pessoas menos importantes; e durante os quarenta anos seguintes o número de edições e reedições em diferentes estilos e tamanhos deve ter sido de legiões. Talvez isto não seja surpreendente, porque não é necessária muita imaginação para retratar o próprio Marco como uma figura de uma pessoa vitoriana admirada; a dignidade grave, os sentimentos de aperfeiçoamento, a séria piedade das Meditações estavam no mais completo acordo com o gosto daquela época.
Em 1898 apareceu uma tradução que muitos críticos desde então classificaram como a mais viva, erudita e idiomática de todas as versões inglesas, e eu gosto de recordar que esta foi obra do meu velho reitor G. H. Rendall. (Uma vez que Marco nos ensina a lembrar com gratidão os mestres da nossa juventude, é um dever religioso registar aqui a minha dívida para com G. H. Rendall, que foi o primeiro a apresentar-nos, na escola, as Meditações, que ele amava, e de que me deu uma cópia que ainda conservo.) Outra boa tradução foi publicada por John Jackson em 1906, e lê-se bastante bem — à parte a sua constrangida “linguagem literária” — mas, quanto a mim, fica desfigurada pela pouco simpática opinião sobre o próprio Marco na nota introdutória de C. Bigg. A versão muito precisa de C. R. Haines (1915) na série Loeb, embora indispensável aos estudantes que queiram uma tradução exacta do grego, dificilmente se poderá ler com prazer.*
Excelentes nas suas diferentes formas, estas traduções têm prevalecido por muito tempo sobre um grande número de rivais de menor importância. Mas já passou quase meio século desde que a última delas apareceu, e aos olhos dos mais novos elas têm vindo a parecer um pouco anquilosadas. Seria pena se isto impedisse uma nova geração de descobrir por si própria a sabedoria humana e o gentil encanto de Marco Aurélio; e foi portanto nesta modesta esperança de fazer alguma coisa para evitar tal infelicidade que a presente versão foi feita. Devo acrescentar que não há aqui qualquer tentativa de reproduzir o curioso estilo do original. Eu tenho a ideia de que escrever em grego não teria sido muito fácil para o romano Marco; as suas expressões são frequentemente obscuras, e ele usa construções desajeitadas e pouco usuais. Ao mesmo tempo, a sua linguagem tem dignidade, e o seu vocabulário é o de um homem instruído. É necessário qualquer coisa como o inglês límpido e belo de John Henry Newman (entre o qual e Marco há manifestas afinidades) para fazer justiça às qualidades espirituais das Meditações. Eu não podia esperar conseguir isto, e assim nada mais procurei fazer do que uma versão simples e honesta para o leitor que não sabe grego.
Os meus melhores agradecimentos são devidos ao amigo Henry Neill pela sua amabilidade em ler o manuscrito e fazer muitas sugestões valiosas para o seu aperfeiçoamento. Também estou muito grato ao generoso encorajamento e conselho do Dr. E. V. Rieu, e o grau da minha dívida para com sua assistente para o corpo editorial, Mrs. Betty Radice, pela sua ajuda e conselho na preparação do livro para a imprensa, só pode ser medido por aqueles que já tiveram o benefício do seu interesse solidário e da sua grande erudição.
MAXWELL STANIFORTH
Sixpenny Handley, 1962
Marco Aurélio
Meditações
LIVRO 1
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A cortesia e a serenidade, aprendi-as eu, primeiro, com o meu avô.
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A virilidade sem alardes, aprendi-a com aquilo que ouvi dizer e recordo do meu pai .
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A minha mãe deu-me um exemplo de piedade e generosidade, de como evitar a crueldade — não só nos actos, mas também em pensamento — e de uma simplicidade de vida completamente diferente daquilo que é habitual nos ricos.
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Ao meu bisavô fiquei a dever o conselho de que dispensasse a educação da escola e, em vez disso, tivesse bons mestres em casa — e de que me capacitasse de que não se devem regatear quaisquer despesas para este fim.
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Foi o meu tutor que me dissuadiu de apoiar o Verde ou o Azul (1) , nas corridas, ou o Leve ou o Pesado (2) , na arena; e me incentivou a não recear o trabalho, a ser comedido nos meus desejos, a tratar das minhas próprias necessidades, a meter-me na minha vida, e a nunca dar ouvidos à má-língua.
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Graças a Diogneto (3) aprendi a não me deixar absorver por actividades triviais; a ser céptico em relação a feiticeiros e milagreiros com as suas histórias de encantamentos, exorcismos e quejandos; a evitar as lutas de galos e outras distracções semelhantes; a não ficar ofendido com a franqueza; a familiarizar-me com a filosofia, começando por Bacchio e passando depois para Tandasis e Marciano; a redigir composições, logo em pequeno; a ser entusiasta do uso do leito de tábuas e pele, bem como de outros rigores da disciplina grega.
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De Rústico (4) obtive a noção de que o meu carácter precisava de treino e cuidados, e que não me devia deixar perder no entusiasmo sofista de compor tratados especulativos, homilias edificantes, ou representações imaginárias de O Asceta ou de O Altruísta. Também me ensinou a evitar a retórica, a poesia, e as presunções verbais, os amaneiramentos no vestuário em casa, e outros lapsos de gosto deste género, e a imitar o estilo epistolar simples utilizado na sua própria carta a minha mãe, escrita em Sinuessa. Se alguém, depois de se zangar comigo num momento de mau humor, mostrasse sinais de querer fazer as pazes, devia mostrar-me logo disposto a ir ao encontro dos seus desejos. Também devia ser rigoroso nas minhas leituras, não me contentando com as meras ideias gerais do seu significado; e não me deixar convencer facilmente por pessoas de palavra fácil. Por ele, vim também a conhecer as Dissertações de Epicteto, das quais ele me deu uma cópia da sua biblioteca.
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Apolónio (5) convenceu-me da necessidade de tomar decisões por mim mesmo, em vez de depender dos acasos da sorte, e nunca, nem por um momento, perder de vista a razão. Também me instruiu no sentido de encarar os espasmos de uma dor aguda, a perda de um filho e o tédio de uma doença crónica sempre com a mesma inalterável compostura. Ele próprio era um exemplo vivo de que nem mesmo a energia mais impetuosa é incompatível com a capacidade de descansar. As suas exposições eram sempre um modelo de clareza; contudo, era claramente alguém para quem a experiência prática e aptidão para ensinar filosofia eram os talentos menos importantes. Foi ele, além disso, que me ensinou a aceitar os pretensos favores dos amigos sem me rebaixar ou dar a impressão de insensível indiferença.
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As minhas dívidas para com Sexto (6) incluem a bondade, a maneira como dirigir o pessoal da casa com autoridade paternal, o verdadeiro significado da Vida Natural, uma dignidade natural, uma intuitiva preocupação pelos interesses dos amigos, e uma paciência bem disposta com os amadores e os visionários. A disponibilidade da sua delicadeza para com toda a gente emprestava à sua convivência um encanto superior a qualquer lisonja, e, contudo, ao mesmo tempo, impunha o completo respeito de todos os presentes. Também a maneira como ele precisava e sistematizava as regras essenciais da vida era tão ampla quanto metódica. Nunca mostrando sinais de zanga ou qualquer emoção, ele era, ao mesmo tempo, imperturbável e cheio de bondosa afeição. Quando manifestava a sua concordância, fazia-o sempre calma e abertamente, e nunca fazia alarde do seu saber enciclopédico.
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Foi o crítico Alexandre (7) que me pôs em guarda contra a crítica supérflua. Não devemos corrigir bruscamente as pessoas pelos seus erros gramaticais, provincialismos, ou má pronúncia; é melhor sugerir a expressão correcta, apresentando-a nós próprios delicadamente, por exemplo, numa nossa resposta a uma pergunta, ou na concordância com as suas opiniões, ou numa conversa amigável sobre o próprio tema (não sobre a dicção), ou por qualquer outro tipo de advertência.
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Ao meu conselheiro Fronto (8) devo a percepção de que a maldade, a astúcia e a má-fé acompanham o poder absoluto; e que as nossas famílias patrícias tendem, na sua maior parte, a carecer de sentimentos de humanidade.
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O platonista Alexandre (9) acautelou-me contra o uso frequente das palavras «Estou muito ocupado» na expressão oral ou na correspondência, excepto em casos de absoluta necessidade; dizendo que ninguém deve furtar-se às obrigações sociais devidas, com a desculpa de afazeres urgentes.
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O estóico Catulo, (10) aconselhou-me a nunca menosprezar a censura de um amigo, mesmo quando pouco razoável, mas em vez disso, fazer o possível por voltar a agradar-lhe; a falar pronta e abertamente em louvor dos meus instrutores, como se lê nas memórias de Domítio e Athenodoto; e a cultivar um genuíno afecto pelos meus filhos.
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Com meu irmão Severo (11) aprendi a amar os meus familiares, a amar a verdade e a justiça. Por ele tomei conhecimento de Thraseia, Catão, Helvidio, Dião e Bruto, e familiarizei-me com a ideia de uma comunidade baseada na igualdade e liberdade de expressão para todos, e de uma monarquia preocupada sobretudo em garantir a liberdade dos seus súbditos. Ele revelou- me a necessidade de uma avaliação desapaixonada da filosofia, do hábito das boas acções, da generosidade, de um temperamento cordial, e da confiança no afecto dos meus amigos. Recordo, também, a sua franqueza para com aqueles que mereciam a sua repreensão, e a maneira como ele não deixava dúvidas aos amigos sobre aquilo de que gostava ou que detestava, dizendo-lho claramente.
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Máximo (12) foi o meu modelo de autocontrole, firmeza de intenções e de boa disposição em situações de falta de saúde e de outros infortúnios. O seu carácter era uma mistura admirável de dignidade e encanto, e todos os deveres inerentes à sua condição eram cumpridos sem alardes. Deixava em toda a gente a convicção de que acreditava no que dizia e agia da maneira que lhe parecia a correcta. Não conhecia o espanto ou a timidez; nunca mostrava pressa, nunca adiava; nunca se sentia perdido. Não se entregava ao desânimo nem a uma alegria forçada, nem sentia raiva ou inveja de qualquer poder acima dele. A bondade, a simpatia e a sinceridade, todas contribuíam para deixar a impressão de uma rectidão que lhe era mais inata do que cultivada. Nunca se superiorizava a ninguém, e contudo ninguém se atrevia a desafiar a sua superioridade. Era, além disso, possuidor de um agradável sentido de humor.
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As qualidades que eu admirava no meu pai (13) eram a sua brandura, a sua firme recusa em se desviar de qualquer decisão a que tinha chegado, a sua completa indiferença às falsas honrarias; o seu esforço, a sua perseverança e vontade de ouvir atentamente qualquer projecto para o bem comum; a sua invariável insistência em que as recompensas devem depender do mérito; o seu hábil sentido de oportunidade para puxar ou soltar as rédeas; e os esforços que fazia para suprimir a pederastia. Ele tinha consciência de que a vida social tem as suas exigências: os seus amigos não tinham qualquer obrigação de se sentarem à sua mesa ou de o acompanhar nas suas viagens oficiais, e quando eles eram disso impedidos por outros compromissos, isso não lhe fazia qualquer diferença. Todas as questões que lhe eram submetidas em conselho eram examinadas meticulosa e pacientemente; nunca ficava satisfeito em despachá-las apenas com uma primeira impressão apressada. As suas amizades eram duradouras; não eram caprichosas nem extravagantes. Estava sempre à altura das circunstâncias; alegre, mas com uma visão de alcance suficiente para mandar discretamente cumprir os seus planos até ao mais pequeno pormenor. Estava sempre atento às necessidades do império, conservando prudentemente os seus recursos e suportando as críticas daí resultantes. Não era supersticioso frente aos deuses; e frente aos seus concidadãos nunca se rebaixava para alcançar popularidade nem namorava as massas, mas prosseguia o seu caminho calma e firmemente, desprezando tudo o que lhe soasse a ostentação ou moda. Aceitava sem complacência ou compunção os bens materiais que a sorte pusera à sua disposição; quando estavam à mão aproveitava-os, e quando não estavam, não sentia qualquer mágoa. Não lhe podiam ser apontados quaisquer vestígios dos sofismas dos casuístas, do atrevimento do adulador, ou do escrúpulo exagerado do pedante; todos os homens lhe reconheciam uma personalidade madura e acabada que era insensível à lisonja e perfeitamente capaz de se orientar a si próprio e aos outros. Além disso, tinha grande respeito por todos os filósofos genuínos; e embora abstendo-se de criticar os outros, preferia passar sem a sua orientação. Na convivência era afável e atencioso, mas sem exageros. Os cuidados que dispensava ao corpo eram razoáveis; não havia nele qualquer ansiosa preocupação de prolongar a existência, ou em embelezar a sua aparência, contudo estava muito longe de ser descuidado em relação a esta, e de facto cuidava tão bem de si próprio que raramente precisava de cuidados médicos ou de medicamentos. Não se notava nele o mais pequeno vestígio de inveja no seu pronto reconhecimento de qualidades notáveis, quer em discursos públicos, quer nos domínios da lei, da ética ou qualquer outro, e esforçava-se por dar a cada pessoa a oportunidade de conquistar reputação no seu próprio campo. Embora todas as suas acções fossem guiadas pelo respeito pelo precedente constitucional, nunca abandonava o seu caminho para buscar o reconhecimento público disso. Também não gostava da agitação e da mudança e tinha uma arreigada preferência sempre pelos mesmos lugares e sempre pelas mesmas actividades. Depois de uma das suas enxaquecas, voltava logo aos seus deveres sem perda de tempo, com novo vigor e completo domínio das suas capacidades. Os seus documentos secretos e confidenciais não eram muitos, e os raros temas neles tratados referiam-se exclusivamente a assuntos do estado. Revelava bom senso e comedimento na exibição de espectáculos, na construção de edifícios públicos, na distribuição de subsídios, etc., tendo sempre mais em vista a necessidade dessas medidas do que o aplauso que elas provocavam. Os seus banhos não eram a horas inconvenientes; não tinha a obsessão de construir; não era nada esquisito em relação à sua alimentação, nem ao corte e às cores das suas vestes, nem à apresentação daqueles que o rodeavam. As suas roupas eram-lhe enviadas da sua casa de campo em Lorium, e a maior parte das sua coisas eram de Lanuvium. A famosa maneira como ele tratou um inspector em Tusculum era típica do seu comportamento, pois a falta de cortesia, bem como a brusquidão ou a jactância, eram estranhas à sua natureza; nunca ficava encalorado, como diz o povo, ao ponto de transpirar; era seu hábito analisar e pesar todos os incidentes, devagar, calma, metódica, decisiva e consistentemente. Aquilo que se diz de Sócrates, não é menos aplicável a ele: que tinha a capacidade de se permitir ou negar a si próprio indulgências que a maioria das pessoas são incapazes de recusar por fraqueza, ou de apreciar, pelos seus excessos. Ser assim tão forte para, à sua vontade, se conter ou ceder revela uma alma perfeita e indómita — como Máximo também demonstrou no seu leito de doente.
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Aos deuses devo os meus bons avós, os meus bons pais, uma boa irmã, e os professores, camaradas, parentes e amigos, todos bons, quase sem excepção; e ainda o facto de nunca ter tido qualquer zanga com eles, apesar de um temperamento que podia bem ter precipitado qualquer coisa desse tipo, se as circunstâncias não se tivessem providencialmente combinado para nunca me pôr à prova. A eles também devo o facto de a minha educação ter deixado, desde cedo, de estar a cargo da amante do meu avô e assim a minha inocência ter sido preservada; e também o facto de nunca ter sentido qualquer ânsia de me tornar adulto e me ter contentado com um lento desenvolvimento. Agradeço também ao céu que, sendo o meu pai o Imperador, eu tivesse ficado imune a todas as pompas, e me fizessem compreender que a vida na corte pode ser vivida sem escoltas reais, mantos reais, luminárias, estátuas e outros esplendores exteriores desse tipo, mas que o nosso modo de vida pode ser reduzido quase ao nível do cidadão comum, sem perder o prestígio e autoridade necessários quando as questões de estado requerem liderança. Os deuses deram-me também um irmão (14) cujas qualidades naturais eram um desafio à minha própria autodisciplina, ao mesmo tempo que a sua afeição atenciosa me aquecia o coração; e filhos que não eram intelectualmente nada diminuídos, nem fisicamente deformados. Foram os deuses que limitaram a minha competência na retórica, na poesia e noutros estudos que me podiam ter tomado o tempo se eu tivesse encontrado menos dificuldade em progredir. Eles cuidaram de que eu, na primeira oportunidade, tivesse elevado os meus tutores à categoria que eu pensava que eles mereciam, em vez de adiar a questão com expectativas de futuras promoções, a pretexto da sua juventude. Aos deuses devo o conhecimento de Apolónio, Rústico e Máximo. A eles também devo a minha percepção vívida e recorrente da verdadeira espiritualidade da Vida Natural; na verdade, pela sua parte, os favores, ajudas e inspirações que recebi deixam sem desculpa o facto de eu não ter conseguido alcançar esta Vida Natural; e se eu estou ainda longe do objectivo, só eu próprio sou responsável por não ter tomado atenção aos sinais — melhor, às orientações virtuais — que recebi de cima. Aos deuses deve ser atribuído o facto de a minha constituição ter sobrevivido tanto tempo a este tipo de vida; de nunca me ter envolvido com uma Benedicta, nem com uma Theodota, e também de ter saído incólume de outras relações subsequentes; e embora Rústico e eu tivéssemos frequentemente as nossas diferenças, nunca levei as coisas ao ponto de ter de me arrepender; e de os últimos anos de vida da minha mãe, antes da sua morte prematura, terem sido passados comigo. E mais, de em certas ocasiões, quando eu pensava ajudar alguém na sua pobreza ou desgraça, nunca me terem dito que eu não tinha os meios necessários; como também de eu próprio nunca ter estado em situação de pedir a alguém semelhante ajuda. E devo agradecer ao céu pela mulher que tenho, tão submissa, tão adorável, e tão despretensiosa; por ter sempre tutores competentes para os meus filhos; e pelos remédios que me eram prescritos em sonhos — especialmente nos casos dos escarros de sangue e das vertigens, como aconteceu em Caieta e Chrysa. Finalmente, o facto de, dada a minha inclinação para a filosofia, não ter ainda assim caído nas mãos de um qualquer sofista ou ter passado todo o meu tempo agarrado aos livros e às regras da lógica ou amarrado ao estudo das ciências naturais. Por todas estas coisas boas «o homem precisa da ajuda do Céu e do Destino». (15) Entre os Quadi, no Rio Gran.
LIVRO 2
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Começa cada dia por dizer a ti próprio: Hoje vou deparar com a intromissão, a ingratidão, a insolência, a deslealdade, a má-vontade e o egoísmo — todos devidos à ignorância por parte do ofensor sobre o que é o bem e o mal. Mas, pela minha parte, já há muito percebi a natureza do bem e a sua nobreza, a natureza do mal e a sua mesquinhez, e também a natureza do próprio culpado, que é meu irmão (não no sentido físico, mas como meu semelhante, igualmente dotado de razão e de uma parcela do divino); portanto nenhuma destas coisas me ofende, porque ninguém pode envolver-me naquilo que é degradante. Nem eu posso ficar zangado com o meu irmão ou entrar em conflito com ele; porque ele e eu nascemos para trabalhar juntos, como, de um homem, as duas mãos, os dois pés, as duas pálpebras ou os dentes de cima e de baixo. Criar dificuldades uns aos outros é contra as leis da Natureza — e o que é a irritação, ou a aversão, senão uma forma de criar dificuldades aos outros?
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Um pouco de matéria, um pouco de respiração e uma Razão para tudo dirigir — isto sou eu. (Esquece os teus livros; deixa de suspirar por eles; não faziam parte do teu equipamento.) Como alguém já à beira da morte, não penses na primeira — no seu sangue viscoso, nos seus ossos, na sua teia de nervos e veias e artérias. E a respiração, o que é? Uma lufada de ar; e nem sequer o mesmo ar, mas, antes, sempre diferente a cada inspiração e expiração. Mas a terceira, a Razão, a mestra — é nela que te deves concentrar. Agora que o teu cabelo já está grisalho, não deixes mais que ela tenha um papel de escrava, que se contorça, qual marioneta, a cada acesso de interesse pessoal; e deixa de te exasperares com o destino, resmungando com o hoje e queixando-te do amanhã.
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Toda a organização divina está impregnada da Providência. Mesmo os caprichos do acaso têm o seu lugar no esquema da Natureza, isto é, no intricado tecido das disposições da Providência. A Providência é a fonte donde fluem todas as coisas; e a ela aliada, está a Necessidade, e o bem-estar do universo. Tu próprio és parte do universo; e para qualquer das partes da natureza, aquilo que lhe é atribuído pelo Mundo-Natureza, ou a ajuda a existir, é bom. Além disso, o que mantém todo o mundo em existência é a Mudança: não meramente a mudança dos elementos básicos, mas também a mudança das formações maiores que elas compõem. Contenta-te com estes pensamentos, e considera- os sempre como princípios. Esquece a tua sede de livros, para que, quando o teu fim chegar não resmungues, mas o encares com boa vontade e verdadeira gratidão aos deuses.
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Pensa nos teus muitos anos de adiamento; como os deuses repetidamente te proporcionaram mais períodos de graça que não aproveitaste. Está na altura de te dares conta da natureza do universo a que pertences, e da daquele poder controlador de que és filho; e de compreenderes que o teu tempo tem um limite. Usa-o, portanto, para avançares no teu esclarecimento, senão ele vai-se e nunca mais voltará a estar de novo em teu poder.
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Decide com firmeza, a todas as horas, como romano e como homem, fazer tudo aquilo que te chegar às mãos com dignidade, e com humanidade, independência e justiça. Liberta o espírito de todas as outras considerações. Isto podes tu fazer se abordares cada acção como se fosse a última, pondo de lado o pensamento indócil, o recuo emocional das ordens da razão, o desejo de causar uma boa impressão, a admiração por ti próprio, a insatisfação pelo que te calhou em sorte. Vê o pouco que um homem precisa de dominar para que os seus dias fluam calma e devotadamente: ele apenas tem de observar estes poucos conselhos, e os deuses nada mais lhe pedirão.
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Ó alma minha, que mal, que mal vós estais a fazer a vós própria; e muito em breve vós já não tereis mais tempo para fazerdes justiça a vós própria. O homem não tem senão uma vida; e a vossa está já próxima do fim, contudo, continuais a não ter olhos para a vossa própria honra e estais a hipotecar a vossa felicidade às almas de outros homens. (16)
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A tua atenção é desviada para preocupações exteriores? Então, concede-te um espaço de sossego dentro do qual possas aumentar o conhecimento do bem e aprender a refrear a tua inquietação. Defende-te também de outro tipo de erro: a loucura daqueles que passam os seus dias com muita ocupação mas carecem de um qualquer objectivo em que concentrem todo o seu esforço, melhor, todo o seu pensamento.
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Dificilmente encontrarás um homem a quem a indiferença pelas actividades de outra alma traga infelicidade; mas para aqueles que não prestam atenção aos movimentos da sua própria, a infelicidade é certamente a recompensa.
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Tendo sempre em mente aquilo que o Mundo-Natureza é, e aquilo que a minha própria natureza é, e o que uma é em relação à outra — uma fracção tão pequena de um Todo tão vasto — lembra-te de que ninguém pode impedir-te de concertar cada palavra e cada acção com a Natureza de que és parte.
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Quando Theophrasto compara os pecados — tanto quanto comummente se reconhece que são comparáveis — ele afirma a verdade filosófica de que os pecados do desejo são mais censuráveis do que os pecados da paixão. Porque na paixão, o afastamento da razão parece trazer consigo, pelo menos, um certo desconforto e uma impressão meio sentida de constrangimento; enquanto que os pecados do desejo, entre os quais predomina o prazer, revelam um carácter mais auto-indulgente e mais feminino. Tanto a experiência como a filosofia apoiam a alegação de que um pecado que dá prazer merece uma censura mais grave do que aquele que faz sofrer. Num caso, o prevaricador é como um homem amarrado a uma perda de controle involuntária; no outro, a ânsia de satisfazer o seu desejo leva-o a fazer o mal de sua própria vontade.
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Em tudo o que fizeres, disseres ou pensares, lembra-te de que está sempre na tua mão o poder de te retirares da vida. Se os deuses existem, não tens nada a temer em te despedires da humanidade, pois eles não deixarão que te aconteça qualquer mal. Mas se não há deuses, ou se eles não se metem nos assuntos dos mortais, o que é a vida para mim, num mundo desprovido de deuses ou desprovido da Providência? Os deuses, contudo, existem, e preocupam-se com o mundo dos homens. Deram-nos o poder suficiente para não cairmos em qualquer dos males absolutos; e se houvesse verdadeiro mal nas outras experiências da vida, eles teriam providenciado nesse sentido também, para que estivesse na mão de todos os homens evitá-lo. Mas quando uma coisa não piora o próprio homem, como pode ela piorar a vida que ele vive? O Mundo-Natureza não pode ter sido tão ignorante a ponto de descurar um risco deste tipo, ou, dele conhecedor, não ser capaz de inventar uma salvaguarda ou um remédio. Nem a falta de poder, nem a falta de competência poderiam ter levado a Natureza a cair no erro de permitir que o bem e o mal visitassem indiscriminadamente o justo e o pecador. Contudo, viver e morrer, fama e descrédito, dor e prazer, riqueza e pobreza, e por aí adiante, são quotas- partes que cabem igualmente aos homens bons e maus. Coisas como estas não elevam nem aviltam; e portanto não são nem boas nem más.
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Os nossos poderes mentais deviam permitir-nos perceber a rapidez com que todas as coisas se desvanecem; os corpos no mundo do espaço, e as lembranças no mundo do tempo. Devíamos também observar todos os objectos da percepção — particularmente aqueles que nos enchem de prazer ou nos afligem com sofrimento, ou são clamorosamente impelidos até nós pela voz da vaidade — a sua vulgaridade e baixeza, como são sórdidos, e como se desvanecem e morrem rapidamente. Devíamos distinguir o verdadeiro merecimento daqueles cuja palavra e opinião conferem reputação. Devíamos apreender, também, a natureza da morte; e que basta contemplá-la fixamente e dissecar as fantasias a ela mentalmente associadas, para acabarmos por pensar nela como nada mais do que um processo natural (e só as crianças se assustam com um processo natural) — ou melhor, como qualquer coisa mais do que um processo natural, uma contribuição positiva para o bem-estar da natureza. Também podemos aprender como o homem tem contacto com Deus, e com que parte de si próprio esse contacto se mantém, e como essa parte se comporta depois da sua remoção daqui.
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Nada mais triste do que fazer o circuito de toda a criação, «esquadrinhando as profundezas da terra», como diz o poeta, e espreitando curiosamente os segredos das almas dos outros, sem por uma vez compreendermos que agarrar firmemente o espírito divino que neles reside e servi-lo lealmente é tudo aquilo de que precisamos. Tal serviço implica o mantê-lo livre da paixão, e da falta de objectivos, e da insatisfação com a obra dos deuses ou dos homens; porque a primeira merece o nosso respeito pela sua excelência; a segunda, a nossa boa- vontade, em nome da fraternidade, e por vezes também, a nossa piedade, por causa da ignorância dos homens a respeito do bem e do mal — uma fraqueza tão mutiladora como a incapacidade de distinguir o preto do branco.
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Mesmo que vivesses três mil anos, ou até trinta mil, lembra-te que a única vida que um homem pode perder é aquela que está a viver no momento; e mais, que ele não pode ter qualquer outra vida a não ser aquela que ele perde. Isto significa que uma vida mais longa ou mais curta vão dar ao mesmo. Porque o minuto que passa é o bem igual de todos os homens, mas o que já passou não é nosso. A nossa perda, portanto, limita-se àquele momento fugaz, uma vez que ninguém pode perder o que já passou, nem o que está ainda para vir — porque como é que ele pode ser despojado daquilo que não tem? Assim, duas coisas temos de ter em atenção. Primeiro, que todos os ciclos da criação, desde o princípio do tempo, têm o mesmo padrão recorrente, de modo que não importa que o mesmo espectáculo se observe durante cem anos ou durante duzentos, ou para sempre. Segundo, que quando aqueles de nós que vivem mais, e os que vivem menos, morrem, as suas perdas são perfeitamente iguais. Porque a única coisa de que o homem pode ser despojado é o presente, uma vez que isso é tudo o que ele possui, e ninguém pode perder o que não é seu.
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Há óbvias objecções à afirmação do cínico Mónimo de que «as coisas são determinadas pelo que vemos nelas»; mas o valor do seu aforismo é igualmente óbvio, se aceitarmos a sua substância até ao ponto de considerarmos que ela contém uma verdade.
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Para uma alma humana, o maior dos males auto- infligidos é tornar-se (podendo) uma espécie de tumor ou abcesso no universo; porque contender com as circunstâncias é sempre uma rebelião contra a Natureza — e a Natureza inclui a natureza de cada parte individual. Outro mal é rejeitar um semelhante ou opor-se-lhe com más intenções, como os homens fazem quando estão zangados. Um terceiro, render-se ao prazer ou à dor. Um quarto, dissimular e mostrar insinceridade ou falsidade em palavras ou em actos. Um quinto, a alma não dirigir os seus actos e esforços para um objectivo determinado, e gastar as suas energias sem qualquer fim e sem o devido pensamento; porque mesmo a mais insignificante das nossas actividades deve ter um fim em vista — e para criaturas dotadas de razão, o fim é a conformidade com a razão e a lei da Cidade e Comunidade originais.
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Na vida de um homem, o seu tempo é apenas um momento, o seu ser um fluxo incessante, os sentidos uma vela mortiça, o corpo uma presa dos vermes, a alma um turbilhão inquieto, o destino, negro, e a fama, duvidosa. Em resumo, tudo o que é do corpo, é como água corrente, tudo o que é da alma, como sonhos e vapores; a vida, uma guerra, uma curta estadia numa terra estranha; e depois da fama, o esquecimento. Onde, pois, poderá o homem encontrar o poder de guiar e salvaguardar os seus passos? Numa e só numa coisa apenas: a Filosofia. Ser filósofo é manter o espírito divino puro e incólume dentro de si, para que ele transcenda todo o prazer e toda a dor, não empreenda nada sem um objectivo, ou com falsidade ou dissimulação, não fique na dependência das acções ou inacções dos outros, aceite todas e cada uma das prescrições como vindas da mesma Fonte donde ele próprio veio — e final e principalmente, para que espere a morte com dignidade, como nada mais do que a simples dissolução dos elementos de que todo o organismo vivo é composto. Se esses próprios elementos não se danificam com a incessante formação e re-formação, porquê olhar com desconfiança a transformação e dissolução do todo? Trata-se apenas do curso da Natureza; e no curso da Natureza não se encontra mal nenhum.
LIVRO 3
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A consumição diária da vida, acompanhada da permanente redução do remanescente, não é a única coisa que temos de ter em consideração. Porque, mesmo que os anos de um homem se prolonguem, temos ainda assim de levar em linha de conta que é duvidoso que o seu espírito continue a manter a sua capacidade para a compreensão da actividade ou para o esforço contemplativo necessário à apreensão das coisas divinas e humanas. O começo da senilidade pode não envolver qualquer perda dos poderes de respiração ou alimentação, ou das sensações, impulsos, etc., contudo, a capacidade de usar plenamente as suas faculdades, de avaliar correctamente as exigências do dever, de coordenar todos os problemas que se lhe levantam, de ajuizar se chegou a altura de pôr fim aos seus dias na terra, ou de tomar qualquer outra das decisões que requerem o exercício de um intelecto experimentado, já está em declínio. Devemos, pois, apressar-nos, não simplesmente porque a cada hora nos aproximamos mais da morte, mas porque mesmo antes disso o nosso poder de percepção e compreensão começa a deteriorar-se. Outra coisa em que devemos reparar é no encanto e na fascinação que há mesmo nas casualidades dos processos da Natureza. Quando um pão, por exemplo, está no forno, começa a ficar com fendas aqui e ali; e estes defeitos, não intencionais, na cozedura, têm um carácter próprio, e aguçam o apetite. Os figos, também, quando maduros, abrem-se em fendas. Quando as azeitonas estão para cair, a própria iminência do declínio acrescenta a sua beleza ao fruto. Assim, também a cabeça caída de um pé de milho, a pele enrugada de um leão assanhado, o pingo de espuma caindo das mandíbulas de um urso selvagem, e muitas mais coisas deste tipo, não são nada belas se vistas em si próprias; contudo, como consequências de um outro processo da Natureza, elas dão a sua contribuição para o seu encanto e atracção. era oriundo da ilha de Cos e o mais famoso médico da Antiguidade. Os seus numerosos tratados constituíram os fundamentos de toda a ciência médica do mundo clássico. Parece não haver razão para pôr em dúvida a sua autoria do “Juramento Hipocrático”; e também lhe é atribuída a autoria do ditado, «A vida é curta, a arte longa.»)
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Assim, a um homem de suficientemente profunda sensibilidade e capacidade de penetração intelectual nas obras do universo, quase tudo, mesmo que mais não seja do que um mero subproduto de qualquer outra coisa, parece acrescentar o seu galardão de prazer adicional. Um homem assim olhará as fauces escarninhas de um leão real com a mesma admiração com que olharia a sua representação plástica feita por um artista ou por um escultor; e o olhar de discernimento deixá-lo-á ver do mesmo modo o encanto maduro dos homens e mulheres de idade e a frescura sedutora da juventude. Coisas deste tipo não atraem toda a gente; só quem cultivou uma intimidade real com a Natureza e as suas obras fica impressionado com elas.
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Hipócrates (17) curou os males de muita gente, mas ele próprio adoeceu e morreu. Os Caldeus previram a morte de muita gente, mas o destino apanhou-os também a eles. Alexandre, Pompeu e Júlio César devastaram e voltaram a devastar cidades inteiras e abateram batalhões de cavalaria e infantaria em combate, mas também a sua hora chegou. Heráclito (18) especulava interminavelmente sobre a destruição do mundo pelo fogo, mas no fim foi a água que lhe saturou o corpo e morreu num emplastro de excrementos. Demócrito (19) foi destruído por insectos; Sócrates por insectos de outro tipo (20) . E a moral de tudo isto? Esta. Embarca-se, faz-se a viagem, chega-se ao porto: desembarca- se, então. Noutra vida? Há deuses por toda a parte, mesmo no além. Na insensibilidade final? Então ficaremos fora do alcance da dor e do prazer, e já não escravos desta embarcação terrena, tão incomensuravelmente mais mesquinha do que o seu ministro assistente. Porque um é espírito e divindade; e o outro, apenas barro e corrupção.
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Não desperdices o que resta da tua vida a especular sobre os teus vizinhos, a não ser que tenhas em vista qualquer benefício mútuo. Interrogares-te sobre o que fulano está a fazer e porquê, ou sobre o que ele está a dizer ou a pensar ou a planear — numa palavra, sobre qualquer coisa que te desvie da fidelidade ao soberano governador dentro de ti — significa uma perda de oportunidade para outra tarefa qualquer. Repara então que o fluir dos teus pensamentos está liberto de fantasias ociosas ou casuais, particularmente daquelas de natureza indiscreta ou maldizente. Um homem devia habituar-se de tal maneira a este modo de pensar que, subitamente perguntado, «Em que estás a pensar neste momento?» pudesse responder honestamente e sem hesitação, provando assim que todos os seus pensamentos eram simples e bondosos como convém a um ser social, sem o gosto pelos prazeres de imaginações sensuais, ciúmes, invejas, suspeitas ou quaisquer outros sentimentos que o fariam corar ao reconhecê-los em si próprio. Um homem assim, determinado aqui e agora a aspirar às alturas, é, de facto, um pastor e ministro dos deuses; porque está a usar plenamente aquele poder interior que pode manter um homem limpo de prazeres, à prova da dor, indiferente ao insulto e impermeável ao mal. É um concorrente ao maior dos concursos, a luta contra o domínio da paixão; fica completamente impregnado de rectidão, recebendo com sincera alegria o que quer que seja que lhe caiba em sorte e raramente se perguntando sobre o que os outros possam dizer, fazer ou pensar, excepto quando o interesse público o exija. Limita as suas actividades àquilo que lhe diz respeito, deixando a sua atenção presa ao seu particular fio da teia universal, procurando fazer com que as suas acções sejam honradas, e na convicção de que tudo o que lhe possa acontecer tem de ser para o melhor — porque o seu próprio destino está, ele próprio, sob orientação superior. Não esquece a relação fraterna de todos os seres racionais, nem que a preocupação por todos os homens é própria da humanidade: e sabe que não são as opiniões do mundo que deve seguir, mas apenas as dos homens cuja vida está confessadamente de acordo com a Natureza. Quanto aos outros, cuja vida não está assim organizada, ele lembra constantemente o carácter que eles mostram diariamente, dia e noite, em casa, e cá fora, e o tipo de sociedade que eles frequentam; e a aprovação de tais homens, que nem sequer se sentem bem consigo próprios, não tem, para ele, qualquer valor.
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Que haja nas tuas acções solicitude, sem deixares, porém, de ter em atenção o interesse comum; ponderação, mas sem indecisão; e que nos teus sentimentos não haja excesso pretensioso de refinamento. Evita a loquacidade, evita a solicitude excessiva. O deus que há dentro de ti deve presidir sobre um ser que seja viril e maduro, homem de estado, romano e soberano; um homem que não ceda terreno, qual soldado à espera do sinal de retirada do campo de batalha da vida, pronto a dar as boas vindas ao seu alívio; um homem cuja reputação não necessite de ser afirmada por si próprio, nem avalizada pelos outros. Eis o segredo da alegria, de não depender da ajuda de fora, e de não precisar de implorar a ninguém o favor da tranquilidade. Temos de nos pôr de pé por nós próprios, e não ser postos de pé.
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Se a vida mortal te puder oferecer alguma coisa melhor do que a justiça e a verdade, o autodomínio e a coragem — isto é, paz de espírito na evidente conformidade das tuas acções com as leis da razão, e paz de espírito nas provações de um destino que não controlas — se, digamos, conseguires discernir um ideal mais elevado, nesse caso, aproveita-o com toda a tua alma e alegra-te com o prémio que encontraste. Mas se nada te parece melhor do que a divindade que mora dentro de ti, que orienta cada impulso, que pesa cada impressão, que abjura (nas palavras de Sócrates) as tentações da carne, e que confessa fidelidade aos deuses e compaixão pela humanidade; se, em comparação, achares tudo o resto mesquinho e sem valor, então não abras em ti espaço a quaisquer outras causas. Porque se alguma vez hesitares e te desviares, já não serás capaz de oferecer lealdade firme ao ideal que escolheste para ti próprio. Nenhumas ambições de outra natureza diferente podem disputar o título à bondade que pertence à razão e ao dever cívico; nem o aplauso do mundo, nem o poder, nem a riqueza, nem a alegria do prazer. À primeira vista, parece não haver incompatibilidade nestas coisas, mas logo elas levam a melhor e desequilibram o homem. Dir-te-ia, então, que escolhesses simples e espontaneamente o mais elevado e aderisses a ele. «Mas o melhor para mim é o mais elevado», dizes tu? Se é o melhor para ti como ser racional, segura-o bem; mas se o é meramente como animal, então di-lo abertamente e mantém o teu ponto de vista com a correspondente humildade — assegura-te apenas de que ponderaste bem o assunto.
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Não prezes as vantagens advindas de qualquer coisa que envolva quebra da fé, perda do respeito por ti próprio, ódio, suspeita, ou maldição dos outros, insinceridade, ou desejo de qualquer coisa que tenha de estar dissimulado ou escondido. Uma pessoa cuja principal atenção vai para o seu próprio espírito e para a divindade que há dentro de si, bem como para servir a sua excelência, não toma atitudes afectadas, não se queixa, e não suspira pela solidão nem tão pouco por uma multidão. E o melhor de tudo é que a sua vida ficará livre de contínuas buscas e esquivas. Não se preocupa se a alma dentro do seu corpo mortal será sua por muitos ou poucos anos; se neste preciso momento for a altura de partir, avançará tão prontamente como para desempenhar qualquer outra acção que possa ser realizada de maneira digna e tranquila. Não tem outra preocupação na vida que não seja a de manter o espírito fora de caminhos incompatíveis com os de um ser social e inteligente.
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Num espírito disciplinado e purificado não há sinal de corrupção, mancha por limpar, nem ferida supurante. Nunca o destino poderá arrancar a tal homem a vida por realizar, como se fosse um actor a deixar o palco no meio da representação, antes da peça acabada. Não há nele nada de servil, nem tão pouco de vaidoso; nem se encosta aos outros, nem se isola deles; e não fica responsável por ninguém, mas também não culpado de evasão.
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Respeita o teu poder de formar uma opinião. Só assim o timoneiro dentro de ti evita formar opiniões que estejam em desacordo com a natureza e com a constituição de um ser racional. A partir dela podes esperar obter a circunspecção, boas relações com os teus semelhantes, e conformidade com a vontade de Deus.
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Renunciando a tudo o resto, apega-te às poucas verdades seguintes. Lembra-te que o homem vive só no presente, neste momento fugaz: todo o resto da vida é ou passado e já ido, ou ainda não revelado. Esta vida mortal é uma pequena coisa, vivida num cantinho da terra; e pequena também é a mais duradoura fama — dependente, como é, de uma sucessão de pequenos homens de curta duração, desconhecedores das suas próprias pessoas, e muito mais ainda de uma outra já há muito morta e enterrada.
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A estas máximas acrescenta ainda uma outra. Quando um objecto se apresenta à tua percepção, arranja uma definição mental para ela, ou pelo menos traça-lhe um perfil, para lhe discernires o carácter essencial, para nela penetrares para além dos seus atributos separados e obteres uma visão distinta da nudez do seu todo, e para identificares tanto o próprio objecto como os elementos de que é formado e em que de novo se dissolverá. Não há nada que mais dilate o espírito do que esta capacidade de examinar metódica e rigorosamente cada uma das experiências da vida, com vista a determinar a sua classificação, os fins que serve, o seu valor para o universo, e o seu valor para os homens, como membros da Cidade suprema em que todas as outras cidades são como pessoas de casa. Vejamos, por exemplo, aquilo que está a produzir uma impressão sobre mim neste momento. O que é? De que é formado? Quanto tempo está destinado a viver? Que reacção moral espera de mim; docilidade, força moral, franqueza, boa-fé, sinceridade, autoconfiança, ou alguma outra qualidade? Em todos os casos, aprende a dizer: Isto vem de Deus; ou, Isto é uma das disposições do Destino, um fio da complexa teia, uma conjunção de casualidades; ou ainda, Isto é obra de um homem da mesma cepa, criação e irmandade que eu, mas que não sabe aquilo que a Natureza exige dele. Eu próprio, contudo, não posso alegar tal ignorância e portanto, de acordo com a lei natural da fraternidade, tenho de tratá-lo justa e amigavelmente — embora ao mesmo tempo, se uma questão de bem ou mal não estiver envolvida, deva apontar as minhas lanças ao merecimento do caso.
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Se cumprires a tarefa que tens diante de ti aderindo sempre ao rigor da razão com zelo e energia, mas também com humanidade, desprezando todos os fins menores e mantendo pura e vertical a divindade dentro de ti, como se mesmo agora fosses enfrentar o seu chamamento — se te ativeres firmemente a isto, sem te deteres para nada, nem te esquivares de nada, procurando apenas em cada acção que passa a conformidade com a natureza e em cada palavra e afirmação a verdade intrépida, então a vida sã será tua. E neste caminho ninguém tem o poder de te deter.
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Assim como os cirurgiões têm sempre à mão as lancetas e bisturis para as súbitas urgências da sua arte, também tu deves ter os teus princípios sempre prontos para a compreensão das coisas, tanto as humanas como as divinas, nunca esquecendo, mesmo na mais trivial das acções, como as duas estão tão intimamente ligadas. Porque nada de humano pode ser feito com acerto sem referência ao divino, e reciprocamente.
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Não te enganes mais; já não lerás mais estas notas, nem os anais dos passados romanos e gregos, nem aquela selecção de escritos que guardaste para a tua velhice. Continua com vigor até ao fim; afasta esperanças vãs; e se te interessas pelo teu eu, zela pela tua própria segurança enquanto ainda podes.
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Eles não sabem tudo o que palavras como “roubar”, “semear”, “adquirir”, “estar em paz”, “zelar pelos nossos deveres” significam; isto requer uma visão diferente da dos olhos.
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Corpo, alma e mente: o corpo para a sensação, a alma para fonte da acção, a mente para os princípios. Contudo, a capacidade de sentir também a tem o boi no estábulo; não há besta selvagem, homossexual, Nero ou Phalaris (21) que não obedeça aos impulsos do instinto; e mesmo os homens que negam os deuses, ou traem o seu país, ou cometem todo o tipo de vilanias por detrás de portas fechadas, têm mentes para os guiar no claro caminho do dever. Vendo então que tudo o resto é herança comum de tais espécies, a única singularidade do homem bom reside na sua aceitação de bom grado de todas as experiências que o Destino lhe teceu, na sua recusa em manchar a divindade que se senta no seu peito, ou perturbá-la com impressões desordenadas, e na sua decisão em mantê-la em serenidade e digna obediência a Deus, não admitindo qualquer deslealdade para com a verdade, nas palavras, e para com a justiça, nos actos. Mesmo que todo o mundo desconfie dele por viver numa felicidade simples e auto-respeitadora, não se ofende com nada, e continua a pisar, sem vacilar, a estrada em direcção ao fim da vida, onde o dever o manda chegar em pureza e em paz, sem relutância em partir, em harmonia perfeita e voluntária com o rateio do destino.
LIVRO 4
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Se o poder interior que nos rege for fiel à Natureza, ajustar-se-á sempre prontamente às possibilidades e oportunidades oferecidas pelas circunstâncias. Não exige material predeterminado; na perseguição dos seus objectivos está pronto para o compromisso; os obstáculos ao seu progresso são simplesmente convertidos em matéria para seu próprio uso. É como uma fogueira a dominar um monte de lixo, que se tivesse reduzido a um débil brilho; mas a chama ardente depressa assimila a matéria, consome-a e dá ainda mais vida à fogueira.
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Não tomes nenhuma iniciativa ao acaso, ou sem teres em atenção os princípios que regem a sua própria execução.
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Os homens procuram a solidão no deserto, na praia ou nas montanhas — um sonho que tu próprio tanto tens acarinhado. Mas tais fantasias são totalmente impróprias de um filósofo, uma vez que em qualquer altura que queiras podes recolher-te dentro de ti próprio. Não há para o homem refúgio algum mais silencioso e mais tranquilo do que a própria alma; sobretudo para quem possua, em si mesmo, recursos que apenas precisa de contemplar para assegurar uma paz de espírito imediata — paz que é apenas outro nome para um espírito bem organizado. Aproveita, pois, este retiro com frequência e renova-te continuamente. Traça para a tua vida regras sumárias, mas que abranjam o fundamental; o retorno a elas bastará para remover todas as aflições e te reenviar sem desgaste para os deveres a que tens de voltar. Afinal, o que é que te aflige? Os vícios da humanidade? Lembra-te da doutrina que diz que todos os seres racionais são criados uns para os outros; que a tolerância é parte da justiça; e que os homens não são malfeitores intencionais. Pensa na miríade de inimizades, suspeitas, animosidades e conflitos que se extinguiram juntamente com o pó e as cinzas dos homens que os experimentaram; e não te aflijas mais. Ou é a parte que te coube em sorte no universo que te agasta? Recorda uma vez mais o dilema, «se não uma sábia Providência, então um simples amontoado de átomos», e pensa na profusão de indícios de que este mundo é como que uma cidade. São os males do corpo que te afligem? Pensa que o espírito só tem que destacar-se e apreender os seus próprios poderes, para não mais se envolver com os movimentos da respiração, sejam eles suaves ou ásperos. Em resumo, recorda tudo aquilo que aprendeste e com que concordaste a respeito da dor e do prazer. Ou é a ilusão da celebridade que te perturba? Não percas de vista a rápida investida do esquecimento e os abismos de eternidade que nos esperam e nos precedem; repara como são ocos os ecos do aplauso, como são inconstantes e sem discernimento os juízos dos pretensos admiradores, e que insignificante é a arena da fama humana. Porque a terra inteira é apenas um ponto, e a nossa própria morada, um minúsculo canto nela; e quantos lá há que te vão louvar, e que tipo de homens são eles? Não te esqueças, pois, de te retirares para o pequeno campo do teu eu. Sobretudo, nunca lutes nem te afadigues; sê, antes, dono de ti próprio, e encara a vida como homem, como ser humano, como cidadão e como mortal. Entre as verdades em que seria bom que pensasses estão estas duas: primeiro, que as coisas nunca podem atingir a alma, mas apenas ficar inertes fora dela, de modo que o desassossego só pode resultar de fantasias interiores; e segundo, que todos os objectos visíveis mudam num instante e deixam de existir. Pensa nas inúmeras mudanças em que tu próprio tomaste parte. Todo o universo é mudança, e a própria vida não é senão aquilo que tu acreditas que é (22).
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Se o poder do pensamento é universal no género humano, também a posse da razão o é, fazendo de nós criaturas racionais. Donde, portanto, que esta razão, com os seus «tu deves fazer isto» ou «tu não deves fazer aquilo» não é para nós menos universal. Há, assim, uma lei-mundo; o que, por sua vez, significa que somos todos concidadãos e partilhamos uma cidadania comum, e que o mundo é uma só cidade. Há alguma outra cidadania comum que possa ser reclamada por toda a humanidade? E é deste mundo-estado que o espírito, a razão e a lei, eles mesmos, derivam. Senão, de que mais? Assim como a parte terrena de mim tem a sua origem na terra, a parte aquosa num elemento diferente, e a respiração numa e as partes quentes e ardentes noutra das fontes de si mesmas, situadas algures (porque nada vem do nada nem pode regressar ao nada), assim também deve haver uma origem para o espírito.
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A morte, como o nascimento, é um dos segredos da Natureza; os mesmos elementos que se combinaram, dispersam-se então. Nada nela tem de causar pena. Para seres dotados de espírito, ela não é anormal, nem de forma nenhuma incoerente com o plano da sua criação.
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Que os homens de um certo tipo se comportem como o fazem, é inevitável. Desejar que as coisas sejam de outra maneira é como desejar que a figueira não produza o seu sumo. Em qualquer caso, lembra-te de que dentro de muito pouco tempo, tanto tu, como ele, estarão mortos, e os vossos próprios nomes rapidamente esquecidos.
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Afasta de ti a ideia do «Fui ofendido», e com ela irá o sentimento. Rejeita o teu sentido de ofensa, e essa ofensa desaparece.
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Aquilo que não corrompe o próprio homem não pode corromper-lhe a vida, nem provocar-lhe qualquer dano quer exterior, quer interiormente.
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As leis da conveniência do colectivo exigiram que isto acontecesse.
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O que quer que aconteça, acontece de forma correcta. Observa com muita atenção e verás que isto é verdade. Na sucessão de acontecimentos não há só uma mera sequência, mas uma ordenação que é justa e correcta, como a da mão daquele que entrega a todos o que lhe é devido. Mantém, pois, a tua atenção, como de princípio, e deixa que a bondade acompanhe cada uma das tuas acções — bondade, quero dizer, no sentido exacto da palavra. Em todas as tuas actividades, presta atenção a isto.
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Não copies as opiniões dos arrogantes, nem deixes que eles te ditem as tuas próprias, e olha as coisas à luz da verdade.
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Para dois pontos deves tu estar sempre pronto: primeiro, para fazer exclusivamente aquilo que a razão, nossa rainha e legisladora, sugerir para o bem-estar comum; e segundo, para reconsiderar uma decisão, se alguém presente te corrigir e te convencer de um erro de julgamento. Mas tal convicção deve proceder da certeza de que isso servirá a justiça ou o bem comum ou qualquer outro interesse do género. Deve ser esta a única coisa a considerar; não a probabilidade do prazer ou da popularidade.
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Tu és dotado de razão? «Sou.» Então por que não usá-la? Se a razão fizer o seu papel, que mais podes pedir?
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Como parte que és, és inseparável do Todo. Vais-te dissipar naquilo que te deu vida; ou melhor, vais-te transmutar uma vez mais na Razão criadora do universo.
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Muitos grãos de incenso caem no mesmo altar: uns mais cedo, outros mais tarde — não importa.
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Basta-te regressar aos ensinamentos do teu credo, e à veneração da razão, e numa semana aqueles que agora te colocam no grupo das bestas e dos macacos irão chamar-te um deus.
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Não vivas como se tivesses mil anos à tua frente. O destino está ali ao virar da esquina; torna-te bom enquanto a vida e o poder ainda te pertencem.
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Quem ignora o que o vizinho está a dizer ou a fazer ou a pensar, e apenas cuida de que os seus próprios actos sejam justos e piedosos, ganha enormemente em tempo e em paz. Um homem bom não anda à procura dos defeitos dos outros, antes prossegue vigorosamente em direcção ao seu objectivo.
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O homem cujo coração palpita pela fama depois da morte não pensa que todos aqueles que se lembrarem dele em breve estarão também mortos, e que, com o correr do tempo, geração após geração, até ao fim, depois de sucessivamente cintilar e se sumir, a centelha final da memória se extingue. Mais, mesmo supondo que aqueles que te recordam nunca morreriam, e nem as suas memórias, mesmo assim, o que é que isso representa para ti? Na sepultura, nada, evidentemente; e mesmo em vida, para que serve o louvor — senão talvez para facilitar qualquer propósito menor? Estarás, pois, seguramente, a proceder à rejeição daquilo que a Natureza te deu hoje, se todo o teu espírito estiver voltado para aquilo que os homens irão dizer de ti amanhã.
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Tudo o que, de um qualquer modo, é belo, recebe a sua beleza de si próprio, e não precisa de nada para além de si próprio. O elogio não entra nisso, porque nada fica melhor ou pior em resultado do elogio. Isto aplica-se mesmo às formas mais mundanas da beleza: objectos naturais, por exemplo, ou obras de arte. De que mais precisa a verdadeira beleza? De nada, certamente; tal como a lei, ou a verdade, ou a bondade, ou a modéstia. Alguma destas fica mais bela com o louvor, ou mais feia com a crítica? Será que a esmeralda perde a sua beleza por falta de admiração? Ou o ouro, ou o marfim, ou a púrpura? Ou uma lira, ou uma adaga, ou um botão de rosa, ou um jovem?
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Se as almas sobrevivem depois da morte, como é que o ar lá em cima arranjou espaço para elas desde o princípio dos tempos? Pergunta, também, como é que a terra arranjou espaço para todos os corpos enterrados desde tempos imemoriais. Aí, após um curto intervalo, a transformação e a corrupção abrem espaço para outros corpos. Da mesma maneira, as almas transferidas para o ar sobrevivem algum tempo antes de sofrerem uma transformação e uma disseminação e são então transmutadas em fogo e levadas de novo para o interior do princípio criador do universo; e assim se cria espaço para receber outras. Esta será a resposta de qualquer crente na sobrevivência das almas. Além disso, temos de contar não só com o número de corpos humanos enterrados desta maneira, mas também com o de todas as criaturas que são devoradas diariamente por nós próprios e pelos outros animais. Quantas e quantas não são, por assim dizer, enterradas nos corpos daqueles a que servem de alimento! E uma vez mais, pela sua dissolução no sangue e depois, pela sua transmutação em ar ou fogo, todo o espaço necessário fica disponível. Como é que descobrimos a verdade de tudo isto? Fazendo a distinção entre matéria e causa.
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Nunca te deixes arrebatar pela emoção: se um instinto se agita, cuida primeiro de saber se ele vai ao encontro das exigências da justiça; quando uma impressão toma forma, certifica-te primeiro da sua exactidão.
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Ó mundo, estou em sintonia com cada uma das notas da vossa grande harmonia! Para mim nunca é cedo nem tarde se para vós for a tempo. Ó Natureza, tudo o que as vossas estações produzem é fruta para mim. De vós vêm, e em vós e para vós são todas as coisas. «Querida Cidade de Deus!» Não choremos, mesmo quando o poeta exclama «Querida Cidade de Cecrops!» (23)
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«Se quiserdes conhecer a satisfação, sede parco nos actos», disse o sábio. Melhor ainda, limita-te àqueles que são essenciais, e àqueles que a razão exige de um ser social. Isto traz a satisfação que resulta de fazer apenas algumas coisas e fazê-las bem. A maior parte das coisas que dizemos e fazemos não são necessárias, e a sua omissão pouparia tempo e aborrecimentos. Portanto, um homem deve perguntar-se a cada passo, «Será esta uma das coisas supérfluas?» Mais ainda, não apenas os actos inúteis, mas mesmo as impressões inúteis devem ser suprimidas; porque assim não resultarão numa acção desnecessária.
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Faz a ti próprio um teste à tua capacidade de viver uma vida de homem bom; uma vida de pessoa satisfeita com a parte que lhe coube no universo, que apenas procura ser justa nas suas acções e caridosa nas suas maneiras.
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Viste aquilo? (24) — agora, repara. O teu papel é ser sereno, simples. Alguém está a proceder mal? O mal fica com ele. Aconteceu-te alguma coisa? Está bem; pois foi o teu quinhão do todo universal que te foi cometido quando começou o tempo; um fio urdido na tua teia particular, como tudo o mais que acontece. Numa palavra, a vida é curta; portanto, tira bom proveito da hora que passa, obedecendo à razão e procedendo com justiça. Não vergues, mas sê comedido.
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Ou um universo que é todo ele ordem, ou então uma balbúrdia atirada ao acaso, mas formando um universo. Mas, poderá subsistir alguma ordem em ti próprio e ao mesmo tempo a desordem no Todo mais amplo? E isso quando existe unidade de sentimentos entre todas as partes da natureza, apesar das suas divergências e dispersão?
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Um coração negro! (25) Um coração efeminado, obstinado; o coração de uma besta, de um animal selvagem; infantil, estúpido e falso; o coração de um vigarista, o coração de um tirano.
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Se aquele que não sabe o que está no universo é uma pessoa estranha ao universo, não o é menos aquele que não sabe o que lá se passa. Uma tal pessoa é um exilado, um auto-banido do regime da razão; um cego com os olhos do entendimento escurecidos; um pobre dependente dos outros, sem recursos próprios para a sua subsistência. É uma excrescência no mundo quando se dissocia e divorcia das leis na nossa natureza comum ao recusar aquilo que lhe coube em sorte (e que afinal é um produto da mesmíssima Natureza que te produziu a ti); é um membro decepado da comunidade, quando separa a própria alma da alma única de todas as coisas racionais, deixando-a à deriva.
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Um filósofo anda sem camisa (26) ; outro sem livros; um terceiro, meio- despido, diz, «Pão, não tenho, e mesmo assim apego-me à razão.» Pela minha parte, também não tenho o fruto daquilo que aprendi, contudo apego-me a ela.
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Entrega o teu coração ao que aprendeste, e busca nisso refrigério. Faz por passar os dias que te restam como alguém que, em todos eles, se entregou de todo o coração aos deuses, e que, portanto, não é dono nem escravo de ninguém.
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Pensa, digamos, nos tempos de Vespasiano; (27) e o que é que vês? Homens e mulheres muito ocupados a casar, a criar os filhos, a adoecer, a morrer, a lutar, a festejar, a tagarelar, a trabalhar a terra, a lisonjear, a fanfarronar, a invejar, a intrigar, a rogar pragas, a jogar o destino, a amar, a entesourar, a cobiçar tronos e honrarias. De toda essa vida, nem o mais pequeno vestígio sobrevive hoje. Ou avança até aos dias de Trajano; outra vez a mesma coisa; essa vida morreu também. Dá igualmente uma vista de olhos aos registos de outros povos e épocas passados; repara como todos e cada um, depois da sua curta vida de luta, morreram, dissolvendo-se nos elementos. Recorda mais especialmente alguns, mesmo do teu conhecimento, que buscaram a vaidade em vez de se contentarem com um cumprimento corajoso dos deveres para que foram criados. Em tais casos é essencial não nos esquecermos de que o mérito da perseguição de qualquer objectivo depende do valor do objectivo perseguido. Portanto, se quiseres evitar o desencorajamento, nunca te deixes absorver por coisas que não sejam de primeira importância.
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Expressões outrora correntes caíram hoje em desuso. Nomes, também, que eram antigamente familiares, são hoje virtualmente arcaísmos; Camilo, Caleo, Voleso, Dentato; ou, um pouco mais tarde, Scípio e Catão, Augusto, também, e mesmo Adriano e António. Todas as coisas se dissolvem no passado lendário e em pouco tempo ficam envoltas no esquecimento. Mesmo para os homens cujas vidas foram de uma glória deslumbrante, esta passa; quanto aos outros, ainda mal acabam de dar o último suspiro e já, nas palavras de Homero, «os perdem de vista e de nome». O que é, afinal, a fama imortal? Qualquer coisa vazia e oca. A que é que nós devemos então aspirar? A isto e só a isto: ao pensamento justo, ao procedimento desinteressado, à boca que não mente, ao carácter que acolhe cada acontecimento como uma coisa predestinada, já esperada e que emana da fonte e origem Única.
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Submete-te a Clotho (28) de bom grado e deixa-a fiar o teu fio do material que ela quiser.
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Todos nós somos criaturas de um dia; tanto os que recordam como os que são recordados.
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Vê como todas as coisas estão sempre a nascer da mudança; ensina-te a ti próprio a ver que a mais elevada felicidade da Natureza reside em mudar as coisas que existem e formar novas coisas da mesma espécie. Tudo aquilo que existe é, em certo sentido, a semente do que irá nascer de si. Não há nada menos próprio de um filósofo do que imaginar que a semente só pode ser alguma coisa que se deita à terra ou no útero.
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Muito em breve vais morrer; mas tu ainda hoje não és puro, nem és superior à inquietação; nem imune ao mal exterior; nem caridoso para todos os homens, nem estás persuadido de que proceder com justiça é a única sabedoria.
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Observa cuidadosamente aquilo que guia as acções dos sábios, e aquilo que eles evitam ou buscam.
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Para ti, o mal não vem do espírito de outrem; nem mesmo de qualquer das fases ou mudanças da tua estrutura corporal. Então, donde? Daquela parte de ti próprio que age como avaliador daquilo que é mau. Recusa a sua avaliação e tudo ficará bem. Embora o pobre corpo, tão próximo dele, fique ferido ou queimado, supure ou gangrene, cala a voz desse avaliador; que ele não declare nada mau ou bom se isso pode acontecer tanto a homens bons como a homens maus — porque tudo o que acontece de forma imparcial aos homens, quer eles observem as leis da Natureza ou não, não pode nem entravar os seus propósitos, nem precipitá-los.
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Pensa sempre no universo como um organismo vivo, com uma substância e uma alma únicas; e vê como todas as coisas estão sujeitas à perceptibilidade deste único todo, todas são movidas pelo seu impulso único, e todas desempenham o seu papel na causação de tudo o que acontece. Repara no intricado da meada, na complexidade da teia.
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«Uma pobre alma que carrega consigo um cadáver» (29) , eis o que Epicteto te chama.
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Estar em processo de mudança não é um mal, tanto como não é um bem ser um produto de uma mudança.
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O tempo é um rio, o inexorável fluir de todas as criaturas. Uma coisa mal aparece à vista e logo desaparece rapidamente e outra nasce para logo, por sua vez, ser varrida.
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Tudo o que acontece é tão normal e já esperado como a rosa na primavera ou o fruto no verão; isto é verdade para a doença, para a morte, para a calúnia, para a intriga e para todas as outras coisas que deliciam ou incomodam os tolos.
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O que acontece a seguir está sempre intimamente relacionado com aquilo que o precedeu; não é um desfile de acontecimentos isolados que obedecem simplesmente às leis da sequência, mas uma continuidade racional. Além disso, tal como as coisas que já existem, estão todos coordenados harmoniosamente, os que se encontram em processo de nascimento exibem a mesma maravilha de concatenação, e não o facto nu e cru da sucessão.
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Lembra-te sempre do ditado de Heráclito, «Morte da terra, nascimento da água; morte da água, nascimento do ar; do ar, o fogo; e assim sucessivamente sempre em ciclos repetidos». Lembra-te também do seu «viajante esquecido do sítio onde o seu caminho o leva», do seu «homens sempre em desacordo com a sua companheira mais próxima» (a Razão controladora do Universo) e do seu «embora eles deparem com isto a cada passo, continuam a achá-lo estranho». E ainda, «nós não podemos agir ou falar como homens adormecidos», (porque, de facto, os homens durante o sono imaginam-se a agir e a falar), «nem como crianças às ordens dos pais»; isto é, em obediência cega às máximas tradicionais.
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Se um deus te dissesse, «Amanhã ou, quando muito, depois de amanhã, morrerás», tu não ficarias muito interessado em saber, a não ser que sejas o mais abjecto dos homens, se isso seria no dia seguinte ou no outro — porque, qual é a diferença? Da mesma maneira, não consideres de muita importância saber se isso será daqui a muitos anos ou já amanhã.
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Lembra-te sempre de todos os médicos, já mortos, que franziam as sobrancelhas perante os males dos seus doentes; de todos os astrólogos que tão solenemente prediziam o fim dos seus clientes; dos filósofos que discorriam incessantemente sobre a morte e a imortalidade; dos grandes chefes que chacinavam aos milhares; dos déspotas que brandiam poderes sobre a vida e a morte com uma terrível arrogância, como se eles próprios fossem deuses que nunca pudessem morrer; de cidades inteiras que morreram completamente, Hélice, Pompeia, Herculano e inúmeras outras. Depois, recorda um a um todos os teus conhecidos; como um enterrou o outro, para depois ser deposto e enterrado por um terceiro, e tudo num tão curto espaço de tempo. Repara, em resumo, como toda a vida mortal é transitória e trivial; ontem, uma gota de sémen, amanhã uma mão cheia de sal e cinzas. Passa, pois, estes momentos fugazes na terra como a Natureza te manda que passes e depois vai descansar de bom grado, como uma azeitona que cai na estação certa, com uma bênção para a terra que a criou e uma acção de graças para a árvore que lhe deu a vida.
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Sê como o promontório contra o qual as ondas quebram e voltam a quebrar; mantém-se firme até que, por fim, as águas tumultuosas à sua volta se rendem e vão descansar. «Que infeliz sou, o que me havia de acontecer!» De modo nenhum; diz antes, «Que feliz que eu sou em não ter ficado com azedume, mas antes inabalado pelo presente e sem receio do futuro». Aquilo podia ter acontecido a qualquer pessoa, mas nem todos ficariam assim sem azedume. Então, por que atribuir uma coisa à má sorte em vez de atribuir a outra à boa sorte? Pode alguém chamar pouca sorte a uma coisa que não seja uma infracção à sua natureza; e poderá ser uma infracção à sua natureza se não for contra a vontade da natureza? Bem, então: já aprendeste a conhecer essa vontade. Isso que te aconteceu impede-te de ser justo, magnânimo, moderado, judicioso, discreto, verdadeiro, respeitador de ti próprio, independente, e tudo o mais que leva à realização da natureza do homem? Eis, então, uma regra a recordar no futuro, quando alguma coisa te tentar a sentires-te amargo: não «Isto é uma infelicidade», mas «Suportar isto dignamente é uma felicidade».
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Filosofia à parte, uma efectiva ajuda no sentido de menosprezar a morte é pensar naqueles que se apegaram avidamente às suas vidas. Que vantagem tiveram eles sobre os que morreram ainda jovens? A terra cobre-os a todos eles algures, em qualquer tempo; Cadiciano, Fábio, Juliano, Lépido e todos os outros que acompanharam tanta gente às suas sepulturas simplesmente para, depois, serem por fim acompanhados às suas próprias. Curta foi, afinal, a prorrogação de que gozaram; arrastados até ao fim nestas condições e com estes ajudantes, e num corpo miserável. Não lhe dês, pois, grande importância; repara no abismo de tempo por detrás dela e no infinito que ainda se lhe segue. Em face disto, o que é que Nestor, com todos os seus anos tem a mais em relação a qualquer bebé de três dias?
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Segue sempre pelo caminho mais curto; e o caminho mais curto é o da natureza, tendo como objectivo uma perfeita segurança em cada palavra e acção. Tal propósito libertar-te-á da ansiedade e do conflito, e de todos os compromissos e estratagemas.
LIVRO 5
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Aos primeiros raios de luz, e para contrariar aquela aversão a deixar a cama, pensa logo «Vou-me levantar para o trabalho do homem». Estará certo eu resmungar por ter de começar a fazer aquilo para que nasci e que é a razão de ser da minha vinda ao mundo? Foi este o objectivo da minha criação, ficar aqui deitado debaixo dos cobertores para me manter quentinho? «Ah, mas é muito mais agradável!» Foi então para o prazer que vieste ao mundo, e não para o trabalho, para o esforço? Olha para as plantas, os pardais, as formigas, as aranhas, as abelhas, todos ocupados nas suas tarefas, cada um desempenhando o seu papel com vista a uma ordem mundial coerente; e vais tu rejeitar a parte do homem nesse trabalho, em vez de cumprires sem demoras as ordens da Natureza? «Sim, mas uma pessoa tem de ter também algum descanso.» Claro; mas o descanso tem os seus limites estabelecidos pela natureza, da mesma maneira que também os têm a alimentação e a bebida; e tu ultrapassas esses limites, tu vais para além da suficiência; enquanto, por outro lado, quando se trata de acção, tu ficas aquém daquilo que podias conseguir. Tu não tens verdadeiro amor por ti próprio; se o tivesses, amarias a tua natureza e a vontade da tua natureza. Os artesãos que amam a sua profissão empenham-se ao máximo no seu trabalho, mesmo sem se lavarem e sem comerem; mas tu tens a tua natureza em menos consideração do que o gravador tem a sua gravação, o dançarino a sua dança, o avarento o seu monte de prata, ou o presunçoso o seu momento de glória. Quando põem o coração no trabalho, estes homens estão prontos a sacrificar a alimentação e o sono ao avanço no sentido do objectivo que escolheram. Será o serviço da comunidade menos digno, aos teus olhos, e merecerá ele menos devoção?
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Oh, quem me dera a consolação de ser capaz de pôr de lado e atirar para o esquecimento todas as impressões importunas e fastidiosas, e ficar num instante completamente em paz!
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Reserva-te o direito a qualquer acto ou afirmação que esteja de acordo com a natureza. Que as críticas ou comentários que se possam seguir não to impeçam; se há alguma coisa boa para fazer ou dizer, nunca renuncies ao teu direito a ela. Aqueles que te criticam têm a sua própria razão a guiá-los, e os seus próprios impulsos a instigá-los; não deves deixar que os teus olhos se desviem na sua direcção, mas antes manter um rumo certo e seguir a tua própria natureza e a Natureza-Mundo (e o rumo destes dois é um só).
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Eu trilho as estradas da natureza até à hora em que me deitarei para descansar, devolvendo o meu último sopro ao ar de que o aspirei diariamente, e mergulhando na terra donde o meu pai tirou a semente, a minha mãe, o sangue, e a minha ama, o leite do meu ser — terra que durante tantos anos me forneceu diariamente comida e bebida, e, embora tão atrozmente maltratada, ainda permite que eu pise a sua superfície.
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Nunca serás célebre pela tua sagacidade. Seja; contudo há uma série de outras qualidades de que não poderás dizer «Não tenho tendência para isso». Cultiva-as, pois, porque elas estão totalmente ao teu alcance: a sinceridade, por exemplo, e a dignidade; o zelo e a sobriedade. Evita resmungar; sê sóbrio, discreto e franco; sê moderado nos modos e nas palavras; comporta-te com autoridade. Repara quantas qualidades há que podiam já ser tuas. Não podes alegar incapacidade ou inaptidão inata para elas; e contudo preferes ainda arrastar-te num plano menos sublime. Além disso, será a falta de dons naturais que precisa daqueles acessos de queixume, parcimónia e lisonja bajuladora, de invectivas contra a tua falta de saúde, de servilismo e jactância e das contínuas mudanças de humor? Certamente que não; podias ter-te visto livre de todos eles há muito tempo, e ter ficado imputável de nada mais do que uma certa lentidão e obtusidade de compreensão — e mesmo esta, podes corrigi-la com a prática, desde que não a menosprezes ou tenhas prazer no teu próprio embotamento.
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Há pessoas que, se te prestam um serviço, não hesitam em reclamar o seu crédito. Outras que, embora não dispostas a ir tão longe, te considerarão, contudo, como seu devedor e nunca esquecerão o que fizeram. Mas há também aqueles de quem se poderá quase dizer que não têm consciência nenhuma do que fizeram, como a videira que produz um cacho de uvas e depois, uma vez cedido o seu fruto, não espera mais agradecimentos do que o cavalo que acabou a corrida, ou o cão que descobriu a caça, ou a abelha que guardou o seu mel. Como eles, o homem que cometeu uma boa acção não o proclama, antes passa logo para uma outra, como a videira logo enceta o processo de criação de novo cacho de uvas. «Então, de acordo contigo, devemos comparar-nos com as coisas que agem inconscientemente?» Exactamente; contudo, devemos fazê-lo conscientemente; porque, como diz o ditado, «a consciência de que as suas acções são sociais é a marca de um ser social». «Mas também o é, seguramente, o desejo de que a própria sociedade tenha consciência disso?» É verdade, sem dúvida; contudo, tu não percebes o significado do aforismo, e portanto colocas-te dentro da mesma classe das pessoas que acabei de descrever e que, da mesma maneira, são levadas por um raciocínio enganador. Apreende o verdadeiro significado do ditado, e nunca terás de temer que ele te traia, levando-te a omitir qualquer dever social.
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Os atenienses rezam, «Faz chover, chover, querido Zeus, sobre os campos e planícies de Atenas». As orações, ou não deviam ser ditas, ou então deviam ser tão simples como esta.
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Assim como nós dizemos, «Esculápio (30) prescrevia exercícios a cavalo, ou banhos frios, ou andar a pé», também a Natureza-Mundo prescreve a doença, as mutilações, as perdas, ou quaisquer outras deficiências. No primeiro caso, prescrever significava ordenar um tratamento específico no interesse da saúde do paciente; da mesma maneira, no segundo caso, são-nos prescritas certas ocorrências no interesse do nosso destino. Podem, de facto, dizer-nos que nos “enquadremos” nestas desgraças no mesmo sentido em que os pedreiros dizem que as pedras quadradas das paredes ou as pirâmides se “enquadram” umas nas outras quando estão a ser ajustadas para constituírem um todo unificado. Esta integração mútua é um princípio universal. Assim como uma miríade de corpos se juntam para formar o Corpo único que é o mundo, também uma miríade de causas se combinam para formar uma única Causa que é o destino. Mesmo as pessoas vulgares compreendem isto quando dizem, «Calhou-lhe a ele». Calhou, de facto; isto é, foi-lhe destinado. Aceitemos tais coisas, portanto, como aceitamos as prescrições de Esculápio; porque estas também têm muitas vezes um sabor amargo, e contudo nós engolimo-las de bom grado na esperança de ter saúde. A execução e o cumprimento das leis da Natureza devem ser encarados da mesma maneira que encaramos a nossa saúde física: mesmo que aquilo que te acontece seja intragável, recebe-o sempre de bom grado, porque isso concorre para a saúde do universo, e mesmo para o bem- estar e bem-fazer do próprio Zeus. Se isso não fosse para benefício do todo, ele nunca o teria feito acontecer a um indivíduo. Não é próprio da Natureza provocar alguma coisa naquele que está sob o seu governo que não seja especificamente destinado ao seu bem. Há portanto duas razões por que tu deves aceitar de bom grado o que te acontece: primeiro, como te acontece a ti, foi-te prescrito a ti, e diz-te respeito a ti próprio, sendo um fio da tapeçaria da causação primordial; e segundo, porque todo o ordenamento individual é uma das causas da prosperidade, sucesso e mesmo sobrevivência d’Aquele que rege o universo. Separar qualquer partícula, por mais pequena que seja, da contínua concatenação — quer das causas, quer de quaisquer outros elementos — é ferir o todo. E sempre que tu te entregas à insatisfação, estás a provocar, dentro das tuas limitadas capacidades, essa separação e desmembramento.
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Não te entregues à tristeza nem ao desânimo e não desistas em desespero, se de vez em quando a prática ficar aquém da norma. Volta ao ataque depois de cada derrota e fica agradecido se globalmente o teu desempenho, na maioria dos casos, for como deve ser o de um homem. Mas cultiva um gosto genuíno pela disciplina a que regressas: não recorras à tua filosofia com o espírito de um aluno para com o professor, mas antes como aquele que, tendo uma ferida num olho, recorre à loção de ovo e esponja, ou como outros à cataplasma ou ao duche. Assim, a tua submissão à razão não se tornará uma questão de ostentação pública, mas de consolação privada. Lembra-te de que, enquanto que a filosofia quer apenas aquilo que a tua própria natureza quer, tu próprio estavas a querer outra coisa diferente, em divergência com a natureza. «Sim, mas que outra coisa podia ter sido mais agradável» — não é esse o atractivo com que o prazer procura enganar-te? Pensa, porém: não seria a nobreza da alma mais agradável? Não o seria a candura, a simplicidade, a bondade, a piedade? Mais ainda: se pensares na precisão e naturalidade com que os processos de raciocínio e cognição operam, poderá haver alguma coisa mais agradável do que o exercício do intelecto?
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Quanto à verdade, ela está tão envolta na obscuridade que muitos filósofos (31) reputados asseveram a impossibilidade de alcançar qualquer conhecimento certo. Mesmo os Estóicos admitem que a sua obtenção está cheia de dificuldades e que todas as nossas conclusões intelectuais são falíveis; pois, onde é que está o homem infalível? Ou vira-te para coisas mais materiais: que transitórias estas são, que inúteis — abertas à aquisição por todos os libertinos, mulheres de maus costumes ou criminosos. Ou repara nos caracteres dos teus companheiros: mesmo os mais agradáveis de entre eles são difíceis de suportar; e quanto a isso, já é bastante difícil suportarmo-nos a nós próprios. Em toda esta treva, em todo este lamaçal, portanto, em todo este fluir incessante do ser e do tempo, de mudanças impostas e mudanças sofridas, não consigo pensar em nada que mereça alto apreço ou dedicação séria. Não; o que um homem deve fazer é encher-se de coragem para esperar calmamente a sua natural dissolução; e entretanto não se agastar com a sua demora, mas antes procurar a sua consolação em dois pensamentos: primeiro, que nada nos pode acontecer que não esteja de acordo com a natureza; e segundo, que o poder de me abster de agir contra o espírito divino dentro de mim está nas minhas mãos, uma vez que não há homem nenhum vivo que me possa obrigar a tal desobediência.
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Que uso estou eu agora a dar aos poderes da minha alma? Auto-examina-te sobre este ponto a cada passo, e pergunta, «Como é que ela se dá com aquela parte de mim a que os homens chamam a parte-mestra? Que alma é que habita. O homem da rua entende-a como significando bens materiais, e não aquelas virtudes de carácter que são os verdadeiros “bens” da vida. Para um filósofo, por outro lado, a palavra tem este último sentido; e ficaria, portanto, intrigado com uma referência a alguém que «tem tantos bens que não lhe sobra espaço para tranquilizar o espírito».(Nota do tradutor da presente versão: a palavra portuguesa “bens”, neste contexto, corresponde por inteiro à palavra inglesa “goods”)) o meu corpo neste momento? A de uma criança, a de um rapaz, a de uma mulher, a de um tirano, a de um boi mudo, ou a de um animal selvagem?»
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A concepção popular de “bens” pode ser testada desta maneira.32 Se um homem, no seu espírito, identifica como “bens” coisas como a prudência, a temperança, a justiça e a coragem, então, de acordo com essa ideia, ele não dará ouvidos àquela velha graça que fala de «tantos bens», porque não faz qualquer sentido. Por outro lado, se ele partilha da ideia vulgar daquilo que constituem os “bens”, logo apreciará o gracejo e não terá dificuldade em ver a sua justeza. A maioria das pessoas tem, de facto, esta ideia de valores e nunca ficariam ofendidas com a graça ou recusariam ouvi-la; realmente, temos de aceitá-la como uma observação adequada e inteligente se considerarmos que ela se refere à riqueza ou a coisas que conduzem ao luxo ou ao prestígio. Agora quanto ao teste: pergunta-te se agimos bem ao dar grande importância às coisas e considerá-las como “bens”, se o retrato mental que fazemos delas é de molde a dar sentido à chalaça que diz, «ao possuidor de tantos bens não sobra espaço para se apaziguar».
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Eu consisto de um elemento formal e de matéria. Nenhum deles jamais pode transformar-se em nada, como também nenhum deles nasceu do nada. Consequentemente, cada uma das partes que me constituem será um dia remodelada, por um processo de transição, e transformada em alguma outra parte do universo; a qual, por sua vez, será de novo transformada em ainda outra parte, e assim sucessivamente até ao infinito. (a palavra “infinito” pode ser usada, mesmo que o mundo seja gerido em ciclos finitos.)
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A razão e o acto de raciocinar são faculdades auto-suficientes, tanto inerentemente, como no método de operar. É em suas próprias fontes que adquirem o seu ímpeto inicial; e avançam a direito, rumo aos seus objectivos autodeterminados. Acções deste tipo recebem concordantemente o nome de “rectidão” devido à linha recta que seguem.
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A menos que as coisas sejam parte de um homem, na sua qualidade de homem, não se pode dizer com propriedade que lhe pertencem. Não lhe podem ser exigidas; porque a sua natureza nem lhas promete, nem é aperfeiçoada por elas. Portanto, elas não podem representar o seu objectivo principal na vida. Além disso, se a herança do homem incluísse tais coisas, não poderia ao mesmo tempo ter incluído o desprezo e a renúncia a elas; nem a capacidade de passar sem elas teria sido razão de louvor; nem, supondo que elas são realmente boas, o facto de não reclamar uma boa parte delas seria compatível com a bondade. Mas assim, contudo, quanto mais um homem se despoja, ou se deixa despojar de tal tipo de coisas, mais ele cresce em bondade.
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O teu espírito será como os seus pensamentos habituais; porque a alma fica tingida na cor dos seus pensamentos. Impregna-o, pois, de correntes de pensamento, como, por exemplo, Lugar onde a vida é mesmo possível, também é possível uma vida correcta; a vida num palácio é possível; portanto, mesmo num palácio uma vida correcta é possível (33). Ou ainda: A finalidade que está por detrás da criação de cada coisa determina o seu desenvolvimento: o desenvolvimento aponta para o seu estado final; o estado final dá a pista para a sua principal vantagem e bem; portanto, o principal bem de um ser racional é a solidariedade com o semelhante — porque há muito que ficou claro que a solidariedade é o objectivo que está por detrás da criação. (É claramente evidente, não é? que enquanto que os inferiores existem para os superiores, estes existem uns para os outros. E enquanto que o ser animado é superior ao inanimado, o racional é ainda superior àquele.
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Procurar alcançar o inatingível é loucura, contudo, o insensato nunca consegue deixar de o fazer.
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A homem nenhum pode acontecer uma coisa para a qual a natureza o não tenha preparado para suportar. As experiências do teu vizinho não são diferentes das tuas; contudo, ele, por estar menos consciente do que aconteceu, ou mais ansioso por mostrar a sua têmpera, mantém-se firme e indómito. Pena é que a ignorância e a vaidade sejam comprovadamente mais fortes do que a sabedoria.
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As coisas exteriores não podem tocar a alma nem um bocadinho; não conhecem o caminho até ela; não têm o poder de a fazer vacilar ou mudar; ela vacila e move-se por si própria; tem os seus padrões de julgamento auto- aprovados, e é a eles que se reportam todas as experiências.
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De certa maneira, a humanidade toca-me de muito perto, tanto mais que estou destinado a fazer bem ao meu semelhante e a ser indulgente para com ele. Por outro lado, e na medida em que os homens, individualmente considerados, dificultam a minha própria actividade, a humanidade torna-se para mim uma coisa tão indiferente como o sol, o vento ou as criaturas do mundo selvagem. É verdade que outros me podem impedir a realização de certas acções, mas não podem obstaculizar a minha vontade, nem a disposição do meu espírito, uma vez que estes sempre se resguardarão e se adaptarão às circunstâncias. O espírito pode vencer todos os obstáculos com vista à acção, e convertê-los em avanço no sentido do seu principal objectivo, de modo que qualquer impedimento ao seu trabalho se torna, ao contrário, um auxiliar, e as barreiras no seu caminho se tornam uma ajuda ao progresso.
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No universo, venera aquele que está mais alto; nomeadamente, Aquele a que tudo o resto serve, e que dita a lei para todos. Da mesma maneira, venera o mais elevado em ti mesmo: ele constitui, com o Outro, uma só peça, uma vez que em ti próprio também reside aquilo a que tudo o resto serve e pelo qual se rege a tua vida.
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Aquilo que não é prejudicial para a cidade, também o não pode ser para o cidadão. Em todos os casos de prejuízo possíveis e imaginários aplica sempre a regra, «se a cidade não é prejudicada, eu também o não serei». Mas se a cidade for, de facto, prejudicada, nunca vociferes contra o culpado; procura, antes, descobrir em que ponto é que a sua visão falhou.
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Reflecte sobre a rapidez com que todas as coisas que existem, ou as que estão a nascer, passam velozmente por nós e desaparecem. O grande rio do Ser continua a fluir sem parar; as suas acções sempre em mudança, as suas causas sempre em infindável deslocamento, quase nada se mantendo parado; enquanto, sempre à mão, se estende para o passado e para o futuro o infinito — o abismo em que tudo desaparece da vista. Nestas condições, seria certamente absurdo um homem arfar, enfurecer-se, queixar-se, como se o tempo dos seus problemas pudesse alguma vez ser de duração contínua.
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Pensa na totalidade de todo o Ser e na insignificante migalha que é a tua parte nele; pensa em todo o Tempo e no instante fugaz que dele te cabe; pensa no Destino e como é insignificante a porção dele que tu és.
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Uma pessoa está a fazer-te mal? Ela própria que atente nisso; os seus humores e acções são só dela. Quanto a mim, estou apenas a receber aquilo que a Natureza-Mundo quer que eu receba, e estou a agir como a minha natureza quer que eu aja.
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Não deixes que as emoções da carne, sejam elas de dor ou de prazer, afectem a porção suprema e soberana da alma. Faz com que esta nunca se envolva com elas: ela deve manter-se dentro dos seus próprios domínios e manter os sentimentos confinados à sua própria esfera. Se (pela simpatia que impregna qualquer organismo uno) elas se propagam ao espírito, é inútil qualquer tentativa de resistir à sensação física; só que, a razão-mestra deve abster-se de acrescentar as suas próprias presunções sobre a bondade ou maldade delas.
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Vive com os deuses. Viver com os deuses é mostrar-lhes em todas as ocasiões uma alma satisfeita com as suas recompensas, e cumprir inteiramente a vontade daquela divindade interior, daquela partícula de si próprio, que Zeus deu a cada homem para seu regente e guia — o espírito e a razão.
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Os sovacos malcheirosos e o mau hálito irritam-te? Que bem é que isso te fará? Com a boca e os sovacos que aquela pessoa tem, essa condição tem necessariamente de produzir esses cheiros. «Mas afinal, esse indivíduo é dotado de razão, e é perfeitamente capaz de compreender aquilo que é repugnante se pensar um pouco nisso». Muito bem: mas tu próprio também és dotado de razão; aplica, pois, a tua razoabilidade para o levares a uma razoabilidade semelhante; comenta, aconselha. Se ele te escutar, terás operado uma cura, e a cólera será desnecessária. Deixa essa para os actores e para as prostitutas.
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Viver na terra como tu tencionas viver daqui para a frente é possível. Mas se os homens não te deixarem, então abandona a casa da vida, mas sem qualquer sentimento de vítima. «A cabana está a deitar fumo; saio». Não há razão para fazer grande questão disso. Contudo, desde que nada desse género me obrigue a partir, aqui continuo, dono de mim mesmo, e ninguém me impedirá de fazer aquilo que eu escolher - e aquilo que eu escolho é viver a vida que a natureza impõe a um membro sensato de uma comunidade social.
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O Espírito do universo é social. Seja como for, ele criou as formas inferiores para servirem as superiores, e depois ligou as superiores numa dependência mútua umas das outras. Repara como algumas estão sujeitas, outras ligadas, todas e cada uma recebem o que lhes é devido, e as mais eminentes de entre elas estão combinadas de mútuo acordo.
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Como é que te comportaste no passado para com os deuses, para com os teus pais, para com os teus irmãos, mulher, filhos, professores, tutores, amigos, parentes, pessoal da casa? Em todas estas relações, e até hoje, poderás tu repetir as palavras do poeta, «Nunca uma palavra mais áspera, nunca uma injustiça para com uma única pessoa?» (34) Recorda tudo aquilo por que passaste, e tudo aquilo que foste capaz de suportar. Pensa que a história da tua vida acabou, e o teu serviço está no fim; lembra-te de todas as belas vistas que desfrutaste, dos prazeres e dores que rejeitaste, das muitas honrarias que desprezaste, das muitas considerações que mostraste para com os pouco atenciosos.
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Como é que almas sem qualquer competência ou saber são capazes de confundir o perito com o sábio? Ah, mas que alma é verdadeiramente perita e também sábia? Só a daquele que tem o conhecimento do princípio e do fim, e daquela Razão que tudo penetra e que ordena o universo nos seus ciclos determinados até ao fim dos tempos.
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Muito em breve, tu não serás mais do que cinzas ou simples ossos; um nome, ou talvez nem mesmo um nome — embora mesmo um nome não seja mais do que um som vazio e repetido. Os homens, na vida, só entregam o coração à vaidade, à corrupção e ao lixo; os homens são como marionetas a brigar, ou crianças conflituosas que ora são todas sorrisos ora se desfazem em lágrimas. Fé e decoro, justiça e verdade fugiram «da terra de largos caminhos para o Olimpo». (35) Então, o que é que ainda te prende aqui? Os objectos dos sentidos são mutáveis e transitórios, os órgãos dos sentidos obscuros e facilmente enganados, a pobre alma, ela mesmo, um mero vapor que exala do sangue, (36) e o louvor do mundo, em tais condições, uma coisa vã. E então? Recobra o ânimo e espera pelo fim, seja ele extinção ou transformação. E o que é que pensas que é indispensável até que chegue a hora? Ora, que mais podia ser senão venerar e abençoar os deuses; fazer o bem aos homens; ser indulgente; e lembrares-te de que o que quer que esteja para além dos limites desta pobre carne e sopro não é teu, nem está no teu poder.
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Prossegue vigorosamente, não saias da estrada certa no pensamento e na acção, e os teus dias fluirão sempre tranquilamente. A alma do homem, como as almas de todos as criaturas racionais, tem duas coisas em comum com a alma de Deus: nunca pode ser contrariada do exterior, e a sua bondade consiste na rectidão de carácter e acção, e em a isso confinar todos os desejos.
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Se a coisa não é pecado meu, nem causada por qualquer pecado meu, e se a sociedade não fica pior com ela, porquê pensar mais nisso? Como é que ela pode prejudicar a sociedade?
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Não te tornes presa fácil das primeiras impressões. Ajuda aqueles que precisam na medida das tuas capacidades e tanto quanto eles possam merecer; mas se a sua queda não envolve nada de moralmente significativo, não deves olhá-los como realmente feridos, porque isso não é uma boa prática. Em tais casos, faz como aquele velho amigo que, à despedida, fingia pedir avidamente o pião da menina-escrava (37), sabendo embora muito bem que aquilo não passava de um pião. Quando, no palanque, estás a clamar por votos, meu amigo, não estarás tu a esquecer o valor último de tudo isso? «Eu sei; mas esta gente dá muito valor a isso». E esse facto justifica que partilhes da sua loucura? Apesar de banido para não importa que solidões, fui sempre bafejado pela Sorte. Porque bafejado pela Sorte é aquele que a premeia pelos bons presentes que dela recebe — os bons presentes de uma boa disposição, bons impulsos e boas acções.
LIVRO 6
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A matéria no universo é flexível e dócil, e a Razão que a controla não tem motivo para fazer mal; porque não tem maldade, e não faz nada com a intenção de magoar, nem nada é prejudicado por ela. É por sua determinação que todas as coisas nascem e se realizam.
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Se estiveres a fazer o que está correcto, não te importes se estás a gelar de frio ou junto de uma boa fogueira; a cair de sono ou fresco, depois de um bom sono; se és insultado ou aplaudido; se estás a morrer ou noutra qualquer situação. (Porque mesmo o morrer é parte das coisas da vida; e também aí nada mais se espera de nós do que «ver a obra do momento bem feita.»)
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Olha por debaixo da camada superficial: nunca deixes que a qualidade intrínseca ou o valor de uma coisa te escapem.
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Todos os objectos materiais mudam rapidamente: ou por sublimação (se a substância do universo for realmente una), ou então por dispersão.
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A Razão, a controladora, tem um perfeito entendimento das condições, do fim e das matérias da sua obra.
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Evitar a imitação é a melhor vingança.
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Que o teu único deleite e refrigério seja passar de um serviço à comunidade para outro, sempre com Deus no pensamento.
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A nossa razão-mestra é uma coisa que é auto-despertada e também auto- dirigida. Ela pode não só fazer-se o que quiser, como também impor o aspecto da sua escolha a qualquer coisa que experimente.
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Todas as coisas atingem a sua realização como manda a Natureza universal única; porque não há uma natureza rival, quer contendo-a do exterior, quer ela própria contida dentro dela, ou mesmo existindo à parte e separada dela.
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O mundo ou é uma simples salgalhada de aleatórias coesões e dispersões, ou então é uma unidade de ordem e providência. No primeiro caso, porquê desejar sobreviver numa tal confusão caótica sem qualquer sentido; porquê preocuparmo-nos com qualquer coisa a não ser com a maneira de regressar ao pó; porquê preocupar-me de todo; uma vez que, faça eu o que fizer, a dispersão tomará conta de mim mais tarde ou mais cedo? Mas se a contrária for verdadeira, então eu venero, mantenho-me firme e deposito toda a minha confiança no Poder director.
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Quando a força das circunstâncias perturba a tua equanimidade, não percas tempo a recuperar o teu autocontrole e não fiques em dissonância senão durante o tempo que não possas evitar. O regresso habitual à harmonia aumentará a tua capacidade de a dominar.
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Se tivesses uma madrasta e uma mãe simultaneamente, cumpririas o teu dever para com a primeira, mas recorrerias continuamente à tua mãe. Aqui tens as duas: a corte e a filosofia. Volta continuamente à filosofia por refrigério; e então mesmo a vida da corte, e tu nela, parecerão suportáveis.
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Quando tiveres carne e outros petiscos à tua frente reflecte: Isto é peixe morto, ou aves, ou galináceos, ou porco; ou: Este Falerno (38) é uma parte do sumo de um punhado de cachos de uva; o meu manto purpúreo é lã tingida com um pouco de sangue de um marisco; a cópula é a fricção dos membros e uma ejaculação. Reflexões deste tipo vão ao fundo das coisas, penetrando nelas e expondo a sua verdadeira natureza. O mesmo processo deve ser aplicado a toda a vida. Quando as credenciais de uma coisa parecem muito plausíveis, desnuda-a, observa a sua trivialidade, e despe-a do manto de verborreia que lhe dá dignidade. A presunção é o que há de mais enganador, mas nunca ela é mais ilusória do que quando tu te convences de que o teu trabalho é muito meritório. Repara no que Crates tem a dizer sobre o próprio Xenocrates. (39)
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As pessoas vulgares limitam a sua admiração principalmente às coisas de categoria elementar que existem em virtude de mera coesão ou de processos inorgânicos da natureza; coisas de madeira e pedra, por exemplo, ou arvoredos de figueiras ou videiras ou oliveiras. Espíritos com um grau de esclarecimento superior são atraídos por coisas que têm animação, como rebanhos ou manadas. Um grau de refinamento ainda mais elevado leva à admiração da alma racional: racional, mas ainda não no sentido de ser parte da Razão universal, mas simplesmente como possuidora de certas capacidades manuais ou outros talentos do género — ou até como mera detentora de grande número de escravos. Mas um homem que valoriza uma alma que é racional, e universal, e social, já não se interessa por nada mais, procura unicamente manter a serenidade da sua alma e todas as suas actividades racionais e sociais, e trabalha juntamente com os seus semelhantes nesse sentido.
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Uma coisa apressa-se a entrar em existência, outra a sair dela. Mesmo enquanto uma coisa está em processo de nascimento, uma parte dela já deixou de existir. O fluxo e a mudança estão permanentemente a renovar a estrutura do universo, tal como a incessante passagem do tempo está sempre a renovar a face da eternidade. Num tal rio, onde não há qualquer ponto de apoio firme, o que é que há para um homem prezar de entre as muitas coisas que por ele passam a correr? Isso seria como afeiçoarmo-nos a um pardal que passa voando rapidamente e que no mesmo momento desaparece da nossa vista. A vida de um homem não é mais do que uma inalação do ar e uma exalação do sangue; (40) e não há verdadeira diferença entre inspirar o ar para logo o soprar para fora, como nós fazemos a cada instante, e receber a faculdade de respirar, como fizemos ainda ontem no nosso nascimento, para a devolver um dia à fonte onde a fomos buscar.
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A transpiração não é coisa para prezar; partilhamo-la com as plantas. Nem a respiração; partilhamo-la com os animais dos campos e das florestas. Nem as percepções dos sentidos, nem os impulsos do instinto, nem o instinto gregário, nem o processo de nutrição — que de facto não é mais maravilhoso do que o da excreção. Então o que é que nós devemos prezar? O bater das palmas? Não; e também não o bater das línguas, que é tudo aquilo a que se limita o louvor das pessoas vulgares. Excluindo a ilusão da fama, o que é que resta para apreciar? Quanto a mim, isto: organizar, na acção, como na inacção, o objectivo das nossas estruturas naturais. Isso, ao fim e ao cabo, é o objectivo de todo o nosso adestramento e de todo o nosso trabalho; porque todas as obras têm como objectivo a adaptação de um produto ao fim para que foi produzido. O agricultor que trata da sua vinha, o moço de estrebaria que doma o cavalo, o empregado do canil que treina o seu cão, todos têm este propósito em vista. Os trabalhos dos tutores e dos professores dirigem-se, também, ao mesmo fim. Eis, pois, o galardão que procuramos. E se fizeres disto o teu próprio galardão, mais nenhum objectivo te tentará. Deixa todas as outras ambições que cultivas, senão nunca serás senhor de ti mesmo, nunca serás independente em relação aos outros, nem nunca estarás ao abrigo das paixões. Olharás com inveja, com ciúme e suspeição aqueles que possam desapossar-te dessas coisas, e intrigarás contra quem possa deter o mesmo que tu próprio cobiças. A crença de que as coisas deste género são indispensáveis vai seguramente provocar tumulto interiormente, e muitas vezes leva também ao murmúrio contra os deuses; enquanto que o respeito e a estima pela tua própria compreensão te manterá em paz contigo próprio, em unidade com a humanidade, e em harmonia com os deuses; isto é, de acordo com tudo o que eles distribuem e ordenam.
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Por cima, por baixo, e à nossa volta, redemoinham os elementos nos seus cursos. Mas a virtude não conhece tais movimentos: ela é qualquer coisa mais divina que avança serenamente em caminhos que estão para além da compreensão.
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Que estranhos são os caminhos dos homens! Não poupam palavras de louvor aos seus contemporâneos que vivem mesmo no meio deles, e contudo cobiçam para si próprios o louvor das gerações futuras que nunca viram nem nunca verão. E mais ou menos da mesma maneira, queixam-se por não receberem os louvores dos antepassados!
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Se uma coisa é difícil para ti, não concluas daí que ela está para além do poder dos mortais. Terás de admitir, pelo contrário, que, se uma coisa é possível, e própria para o homem fazer, tem de estar dentro das tuas próprias capacidades.
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Quando um adversário, no ginásio nos fere com as unhas ou nos magoa a cabeça num choque, não protestamos nem ficamos ofendidos, nem passamos depois a desconfiar sempre das suas intenções. Contudo passamos a olhá-lo com cautela, não com inimizade ou suspeição, mas mantendo-o, com bonomia, à distância. Que assim seja também noutras situações da vida; concordemos em passar por cima de muitas coisas naqueles que são como que nossos competidores. O simples acto de evitar, como já tenho dito, está sempre, para nós, em aberto, sem suspeição ou má vontade.
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Se alguém me consegue mostrar e provar que estou errado no pensamento ou na acção, eu mudo de bom grado. Eu procuro a verdade, o que ainda nunca magoou ninguém. Só a persistência na auto-ilusão e na ignorância é que magoa.
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Eu faço aquilo que é meu dever fazer. Nada mais me distrai; porque certamente se trata de qualquer coisa inanimada e irracional, ou de alguém que está iludido ou não sabe o caminho.
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Sê generoso e liberal na tua atitude em relação às criaturas irracionais e à generalidade das coisas materiais, porque tu tens uma razão e elas, não. Os seres humanos, por outro lado, têm uma razão; portanto trata-os com camaradagem. Pede, em tudo, o auxílio dos deuses — mas sem demasiada preocupação quanto à extensão das tuas preces; três horas chegam.
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Na morte, o fim de Alexandre da Macedónia não foi minimamente diferente do do seu moço da estrebaria. Ou foram ambos recebidos no mesmo princípio generativo do universo, ou foram ambos igualmente dispersos em átomos.
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Pensa em tudo aquilo, de ordem corpórea ou mental, que se está a passar ao mesmo tempo dentro de cada um de nós; e então não ficarás surpreendido que um número infinitamente maior de coisas — na realidade, tudo o que nasce neste vasto Único-e-Todo a que chamamos o universo — possa existir simultaneamente lá dentro.
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Se te pedissem que soletrasses o nome António, soltarias cada uma das letras aos berros, e depois, se os teus ouvintes ficassem irritados tu, por tua vez, irritavas-te também? Ou começarias a enumerar as várias letras calmamente uma a uma? Bem, então lembra-te de que, aqui na vida, cada um dos deveres é também formado pelos seus elementos separados. Presta muita atenção a cada um deles sem espalhafato e sem responder à irritação com irritação, para assim assegurares a finalização da tarefa que te foi distribuída.
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Como é bárbaro negar aos homens o privilégio de perseguirem aquilo que eles julgam ser as suas preocupações e interesses apropriados! E contudo, em certo sentido, é isso exactamente o que tu estás a fazer quando deixas que a tua indignação se manifeste perante os seus erros; porque, afinal, eles estão apenas a perseguir as suas aparentes preocupações e interesses. Tu dizes que eles estão enganados? Então diz-lhes isso, e explica-o a eles em vez de ficares indignado.
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A morte: uma libertação das impressões sensoriais, dos impulsos do apetite, dos desvios do pensamento e do serviço da carne.
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Que vergonha para a alma: hesitar na estrada da vida enquanto o corpo ainda persiste.
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Tem cuidado, não assumas em demasia a qualidade de monarca, não te deixes tingir profundamente pela púrpura; porque isso pode acontecer. Conserva a simplicidade, a bondade, a pureza, a seriedade e a modéstia; o amor da justiça e da religiosidade; sê amável, afectuoso e resoluto na tua devoção ao dever. Esforça-te o máximo por seres sempre um homem como a Filosofia manda que sejas. Venera os deuses e ajuda os teus semelhantes mortais. A vida é curta, e essa curta existência terrena não tem senão um fruto para produzir — a santidade, interiormente, e, exteriormente, a acção desinteressada. Sê em todas as coisas discípulo de António; lembra-te da sua insistência no controle do comportamento pela razão, da sua postura tranquila em todas as ocasiões, e da sua própria santidade; da serenidade do seu aspecto e da doçura das suas maneiras; do seu desprezo pela notoriedade, e do seu zelo pelo domínio dos factos; e de como ele nunca punha de lado um assunto enquanto não o examinasse exaustivamente e o compreendesse claramente; de como ele era alvo de críticas injustas sem responder da mesma maneira; de como ele nunca tinha pressa e não tinha amigos mexeriqueiros; de como era astuto nos seus juízos sobre os homens e sobre as maneiras, mas nunca crítico; de como estava completamente liberto de nervosismos, suspeições e demasiadas subtilezas; de como facilmente se contentava em coisas como o alojamento, a cama, o vestuário, as refeições e o serviço; de como era trabalhador e paciente; de como conseguia, graças a uma dieta frugal, ficar a trabalhar de manhã à noite sem sequer atender aos apelos da natureza até à sua hora habitual; como era firme e constante nas amizades, tolerando as mais francas oposições às suas opiniões, e aceitando de bom grado qualquer correcção sugerida; da veneração, sem qualquer vestígio de superstição, que mostrava para com os deuses. Lembra-te de tudo isto para que, quando a tua hora chegar, a tua consciência esteja tão límpida como a dele.
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Volta agora aos teus sóbrios sentidos; recorda o teu próprio eu; desperta do torpor e reconhece que foram apenas sonhos que te atormentaram; e exactamente como os olhaste, olha agora o que os teus olhos despertos vêem.
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Um corpo e uma alma constituem a minha pessoa. Ao corpo tudo é indiferente, porque é incapaz de fazer distinções. Ao espírito, as únicas coisas que não são indiferentes são as suas próprias actividades, e estas estão todas sob o seu controle. Além disso, mesmo em relação a elas, a sua única preocupação são as do momento presente; uma vez passadas, ou quando ainda residem no futuro, elas mesmas passam imediatamente a ser indiferentes.
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Uma dor numa mão ou num pé não é nada de anti-natural, desde que a mão ou o pé estejam a fazer o seu trabalho. Da mesma maneira, nenhuma dor é contra a natureza do homem, como homem, desde que ele esteja a fazer trabalho de homem. E se este estiver de acordo com a natureza, não pode ser um mal.
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Em que invulgares prazeres vão os ladrões, os pervertidos, os parricidas e os tiranos buscar a sua satisfação!
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Repara como vulgares artífices vão ao encontro dos desejos de um patrão até certo ponto inexperiente, mas, no entanto, seguem rigorosamente as regras do seu ofício e recusam desviar-se delas. Não é deplorável que um construtor ou um médico tenham mais respeito pelos cânones da sua arte do que um homem pelos seus próprios cânones que partilha com os deuses?
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No universo, a Ásia e a Europa são apenas dois cantinhos, a água de todos os oceanos, uma gota, Athos, um insignificante pedaço de terra, a vastidão do tempo, um pequeno ponto na eternidade. Tudo é insignificante, inconstante e perecível. Tudo procede da única fonte, emergindo directamente, ou por derivação, da soberana Razão universal. Mesmo as mandíbulas abertas do leão, o veneno mortal, ou todas as outras coisas que realmente ferem, até a roseira silvestre e o atoleiro, são subprodutos de qualquer outra coisa que em si própria é nobre e bela. Não penses nelas como estranhas a Aquele que veneras, mas lembra-te da origem única que é comum a todos eles.
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Ver as coisas do momento presente é ver tudo o que agora existe, tudo o que existe desde o princípio do tempo e tudo o que existirá até ao fim do mundo; porque todas as coisas pertencem a uma só espécie e têm uma só forma.
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Pensa com frequência nos laços que unem todas as coisas no universo, e na sua dependência umas das outras. Todas estão como que entrelaçadas e consequentemente ligadas por mútua afeição; porque a sua sucessão organizada é realizada por acção das correntes de tensão, (41) e pela unidade de toda a substância.
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Adapta-te ao ambiente para onde o teu grupo foi atirado, e mostra um amor verdadeiro pelos teus semelhantes mortais de que o destino te rodeou.
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Não há qualquer problema com uma ferramenta, um instrumento ou utensílio quando ele serve o fim para que foi feito, embora neste caso o seu construtor não esteja presente. Mas com as coisas feitas pela Natureza, o poder que as moldou ainda está com elas e nelas fica a residir. Mais uma razão para que a veneres e fiques com a certeza de que só vivendo de acordo com a sua vontade tu terás as coisas a teu gosto. É esta a maneira como também o universo tem todas as coisas a seu gosto.
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Se tens a ideia de que uma coisa que está para além do teu controle pode ser boa ou má para ti, então o acidente de perder a primeira ou encontrar a segunda vai certamente fazer com que fiques ressentido com os deuses e amargo com os homens que sabes ou suspeitas serem responsáveis pelo teu fracasso ou infortúnio. Nós cometemos realmente muitas injustiças por darmos importância a coisas deste tipo. Mas quando limitamos as nossas noções de bem e mal estritamente àquilo que está no nosso poder, não resta qualquer razão quer para acusações contra Deus quer para desavenças com os homens.
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Todos nós andamos a trabalhar para o mesmo fim; alguns consciente e intencionalmente, outros inconscientemente (como Heráclito, penso eu, observou que «mesmo durante o sono os homens estão a trabalhar» e a contribuir com o seu quinhão para o processo cósmico). A um calha esta parte da tarefa, a outro, aquela; na verdade não é pequena a parte desempenhada por aquele muito descontente que faz tudo quanto pode para impedir e desfazer o curso dos acontecimentos. O universo precisa até desses. Portanto é tua a decisão sobre com quem tu próprio vais enfileirar; porque, seja como for, aquele que tudo rege descobrirá uma qualquer utilidade para ti e atribuir-te-á um lugar entre os seus colaboradores e companheiros de trabalho. Só tens de cuidar que a tua não seja aquela lamentável função que, de acordo com Chrísipo, é desempenhada pelo palhaço no palco. (42)
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Será que o sol pensa fazer o trabalho da chuva? Ou Esculápio, o de Demétrio? E as estrelas? Não são elas todas diferentes, e, contudo, não trabalham todas elas concertadamente para o objectivo único?
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Se os deuses discutiram e se aconselharam mutuamente sobre mim e sobre o que me aconteceria, então o conselho foi bom. Pois, seria difícil conceber um aconselhamento insensato da parte da divindade. Afinal, que razão teriam eles para me provocarem sofrimento? Que ganhariam eles, quer para si próprios quer para o universo, que é a sua principal preocupação? Mesmo que não tenham pensado especialmente em mim, pensaram pelo menos no universo; e eu tenho de dar as boas vindas e ser indulgente em relação a tudo o que aconteça em resultado disso. Se, claro, eles não pensaram mesmo em nada - coisa ímpia de acreditar — então, ponhamos fim ao sacrifício e à prece e ao voto, e a todas as outras acções pelas quais reconhecemos a presença de deuses vivos no meio de nós. Mas mesmo assim, e mesmo que seja verdade que eles não se interessam nada pelos nossos assuntos mortais, eu ainda sou capaz de tomar conta de mim próprio e de olhar pelos meus próprios interesses; e o interesse de todas as criaturas reside na conformidade com a sua própria constituição e natureza. A minha natureza é racional e cívica; tenho uma cidade e tenho um país; como Marco, tenho Roma, e como ser humano, o universo; e consequentemente, o que é bom para estas comunidades é o único bem para mim.
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Tudo o que acontece ao indivíduo é para bem do todo. Isto é, só por si, garantia suficiente para nós; mas se olhares com atenção verás também que, em geral, o que é bom para um homem é também bom para os seus semelhantes. (Mas “bom” deve ser aqui tomado no sentido mais popular, incluindo as coisas que são moralmente indiferentes.)
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Tal como os espectáculos no circo, ou de outros locais de diversão, nos cansam com a sua perpétua repetição das mesmas coisas numa monotonia que torna o espectáculo enfadonho, também o mesmo se passa com toda a experiência da vida: na nossa caminhada para cima e para baixo todas as coisas acabam por ser sempre o mesmo — causas e efeitos por igual. Então quanto tempo…?
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Pondera com frequência no teu espírito a enorme quantidade de mortos de todas as classes e nações, mesmo até Filistion, Febo e Origanio. (43) Destes últimos, deixa que os teus pensamentos passem para as hordas de outros; pensa como devemos seguir daqui, donde tantos oradores já se foram, tantos veneráveis sábios — Heráclito, Pitágoras, Sócrates — os heróis de outros tempos, os capitães e os reis de tempos posteriores, e com eles Endoxo, Hipparco, Arquimedes e muitos outros; espíritos penetrantes, sublimes, homens infatigáveis, cheios de recursos e decididos; também aqueles que gracejaram com a transitoriedade e brevidade desta vida mortal, como Menippo e os da sua escola. Medita muitas vezes sobre estes homens há muito desaparecidos. Como é que eles, digam-me, sofrem agora — mais especialmente aqueles cujos próprios nomes foram esquecidos? Nesta vida só uma coisa é preciosa: viver os nossos dias em verdade e em justiça, e em caridade, mesmo para com os falsos e os injustos.
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Quando te apetecer um tónico para te animar, pensa nas boas qualidades dos teus amigos: a capacidade de um, a modéstia doutro, a generosidade de um terceiro, e por aí fora. Não há remédio mais seguro para o desânimo do que ver os exemplos das diferentes virtudes que os caracteres daqueles que nos rodeiam, tão claramente patenteiam. Mantém-nos bem diante dos olhos.
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Aborrece-te o facto de pesares só uns tantos quilos em vez de oitenta? Porquê, então, afligirmo-nos por viver só uns tantos anos e não mais? Uma vez que estás satisfeito com a medida da substância que te foi concedida, faz o mesmo em relação à medida do tempo.
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Tenta convencer os homens pela persuasão, mas age contra a sua vontade se os princípios da justiça assim mandarem. E se alguém usar da força para te impedir, segue uma via diferente; deves resignar-te sem angústia e transformar o obstáculo numa oportunidade para o exercício de outra virtude. Lembra-te de que a tua tentativa esteve sempre sujeita a reservas; tu não estavas a apontar para o impossível. Então para quê? Simplesmente para a tentativa, ela própria. Nisto conseguiste; e com isso atingiste o objectivo da tua existência.
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O homem de ambição pensa encontrar o seu bem nas actuações dos outros; o homem do prazer nas suas próprias sensações; mas o homem de compreensão, nas suas acções.
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Tu não és obrigado a formar um opinião sobre este assunto que tens pela frente, nem a perturbar a tua paz de espírito. As coisas em si mesmas não têm o poder de te arrancar um veredicto.
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Habitua-te a prestar muita atenção ao que os outros dizem, e tenta o mais possível entrar no espírito de quem fala.
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O que não é bom para a colmeia, também não o é para a abelha.
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Se a tripulação resolveu caluniar o seu timoneiro, ou os doentes, o seu médico, haverá mais alguém a quem eles dêem ouvidos em seu lugar; e como é que esse outro seria capaz de garantir a segurança dos marinheiros, ou a saúde dos doentes?
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Quantos daqueles que vieram ao mundo comigo não o deixaram já!
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A um homem com icterícia, o mel parece amargo; a alguém mordido por um cão raivoso, a água causa horror; para as crianças, uma bola é um tesouro valioso. Então por que cedo eu à cólera? Porque, poder-se-á supor que o pensamento errado de um homem tem menos efeito sobre ele do que a bílis na icterícia ou o vírus na hidrofobia?
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Ninguém te pode impedir de viver de acordo com as leis da tua natureza pessoal, e nada te pode acontecer que vá contra as leis da Natureza-Mundo.
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Que tristes criaturas são os homens a quem o povo procura agradar! Que tristes fins eles perseguem, e por que tristes meios! Que depressa o tempo apagará todas as coisas! Quantas não apagou ele mesmo agora!
LIVRO 7
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O que é o mal? Uma coisa que tu já viste vezes sem conta. E, tal como em relação a todos os outros tipos de ocorrências, lembra-te de pronto que isto também já tu testemunhaste muitas vezes. Porque em toda a parte, em cima e em baixo, tu não vais encontrar nada senão sempre as mesmas coisas; elas enchem as páginas de toda a história, antiga, moderna e contemporânea; e enchem as nossas cidades e os nossos lares hoje. A novidade é coisa que não existe; tudo é tão trivial quanto transitório.
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Os princípios só podem perder a sua vitalidade quando as primeiras impressões de que derivam já mergulharam na extinção; e compete-te a ti atiçar o fogo de modo a fornecer-lhe continuamente uma chama renovada. Eu sou perfeitamente capaz de formar a impressão certa de uma coisa; e dada esta capacidade, não preciso de me inquietar. (Quanto às coisas que estão para além do meu entendimento, elas não dizem respeito ao meu entendimento.) Uma vez aprendido isto, continuas de pé. Uma nova vida está ao teu alcance. Só tens de ver as coisas, uma vez mais, à luz da tua primeira e mais antiga visão, e a vida começa de novo.
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Um palco ambulante vazio; uma peça de teatro; rebanhos de ovelhas; manadas de gado; uma luta de lanceiros; um osso agitado no meio de um monte de cachorros; uma migalha atirada para dentro de um lago de peixes; formigas carregadas e a trabalhar; ratos amedrontados em correria; marionetas a sacudirem-se nos seus cordéis — isto é a vida. No meio de tudo isto, tu deves tomar o teu lugar, com boa disposição e sem desdém, mas consciente de que um homem não vale mais do que as suas ambições.
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Numa conversa, repara bem no que está a ser dito, e, quando chega a acção, no que está a ser feito. Neste último caso, vai logo ver qual o objectivo proposto; e no outro, certifica-te daquilo que se quer dizer.
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Está o meu entendimento à altura da minha tarefa, ou não? Se está, aplico-o ao trabalho como ferramenta oferecida pela natureza. Se não, ou abro caminho — se a função o permitir — a alguém mais capaz de realizar a tarefa, ou faço o melhor que posso com a ajuda de um assistente que tirará partido da minha inspiração para realizar o que é oportuno e útil para a comunidade. Porque tudo aquilo que eu faço, sozinho ou com outra pessoa, tem de ter como objectivo único o serviço e a harmonia de todos.
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Quantos daqueles a quem se cantaram louvores tão altissonantes estão já relegados para o esquecimento; e quantos dos cantores, eles próprios, já desapareceram da nossa vista!
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Não tenhas vergonha de ser ajudado. A tua obrigação é cumprir a tarefa que te foi destinada, como um soldado na seteira. Mas como o farás, se fores coxo e incapaz de trepar as ameias, senão com a ajuda de um camarada?
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Nunca deixes que o futuro te perturbe. Encontrá-lo-ás, se tiver de ser, com as mesmas armas da razão que te armam contra o presente.
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Todas as coisas estão entrelaçadas umas nas outras; um laço sagrado une- as; dificilmente se encontrará uma coisa isolada da outra. Tudo está coordenado, tudo trabalha em conjunto para dar forma ao universo uno. A ordem mundial é uma unidade feita de multiplicidade: Deus é uno e impregna todas as coisas; todo o ser é uno, toda a lei é una (nomeadamente, a razão comum que todas as criaturas pensantes possuem) e toda a verdade é una — se, como cremos, não pode haver senão um caminho para a perfeição para seres que são semelhantes em género e razão.
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Rapidamente, cada partícula de matéria desaparece na Substância universal; rapidamente, cada elemento de causação é retomado pela Razão universal; rapidamente, a memória de todas as coisas é enterrada no abismo da eternidade.
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Para um ser racional, um acto que se conforma com a natureza é um acto que se conforma com a razão.
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Pôr-se, ou ser posto, de pé?
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Num sistema que inclui diversos elementos, aqueles que possuem razão têm o mesmo papel a desempenhar que os membros do corpo num organismo que é uno, sendo similarmente constituídos para mútua cooperação. Esta reflexão impressionar-te-á mais fortemente se disseres constantemente a ti mesmo «Eu sou um “membro“ (melos) do todo complexo das coisas racionais». Se te considerares apenas como uma “parte“ (meros), não tens verdadeiro amor à humanidade, nem alegria no desempenho dos actos de bondade por si próprios. Pratica-los como simples obrigação, e não como bons serviços para ti mesmo.
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Aconteça o que acontecer às partes de mim que possam ser afectadas pela sua incidência, elas que se queixem disso, se quiserem. Quanto a mim, não vejo a coisa como um mal, não me sinto magoado. E nada me pode obrigar a vê-lo dessa maneira.
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Faça o mundo o que fizer, diga o mundo o que disser, o meu papel é continuar a ser bom; tal como uma peça de ouro ou uma esmeralda ou um manto de púrpura, repete sempre «Faça o mundo o que fizer, diga o mundo o que disser, o meu papel é continuar a ser uma esmeralda e conservar a minha cor verdadeira».
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A razão-mestra nunca é vítima de qualquer perturbação vinda de si própria; nunca, por exemplo, suscita paixões dentro de si. Se outro pode inspirar-lhe terror ou dor, que o faça; mas ela, por si mesma, nunca permite que as suas próprias assunções a desviem para tais disposições. O corpo que, por todos os meios, cuide por si próprio de evitar o traumatismo, se puder; e se ficar ferido, que o diga. Mas a alma, que é a única que pode conhecer o medo ou a dor, e de cujo julgamento depende a existência, não se magoa; não se pode forçá-la a um veredicto. A razão-mestra é auto-suficiente, e não conhece necessidades, a não ser aquelas que ela cria para si mesma, e por isso não pode experimentar perturbações ou obstruções, a não ser que elas sejam de sua própria criação.
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Felicidade, por derivação, significa “um bom deus interior” (44) ; isto é, uma boa razão-mestra. Então, vã Fantasia, que andas tu a fazer aqui? Vai-te, em nome de Deus, como vieste; não quero nenhuma de vós. Eu sei que o que vos traz aqui é um longo hábito, e não vos quero mal; mas ponde-vos a andar.
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Nós fugimos à mudança; contudo, há alguma coisa que possa nascer sem ela? O que é que a Natureza considera de mais querido ou mais próprio para si mesma? Poderias tu tomar um banho se a lenha da fogueira não sofresse uma mudança? Poderias tu alimentar-te se a comida não sofresse uma alteração? Será possível, para uma coisa útil, a realização sem mudança? Não vês, pois, que a mudança em ti próprio é da mesma ordem e não menos necessária à Natureza?
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Todos os corpos passam pela substância universal, como que entrando e saindo de um curso de água impetuoso; aderindo e trabalhando como um todo, como fazem os nossos membros físicos uns com os outros. Quantos Chrísipos, Sócrates, Epictetos é que o tempo já engoliu no seu abismo! Lembra-te disto quando tens de lidar com qualquer homem ou coisa, sejam eles quais forem.
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Só há uma coisa que me perturba: o medo de poder fazer qualquer coisa que a constituição do homem não permite, ou desejaria que fosse feita de outro modo, ou proíbe até um dia futuro.
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Em breve terás esquecido o mundo, e em breve o mundo te terá esquecido.
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O que distingue particularmente o homem é o amar mesmo aqueles que erram e descaminham. Tal amor nasce logo que tu realizas que eles são teus irmãos; que eles andam a tropeçar por ignorância, e não por vontade própria; que dentro de pouco tempo ambos já não serão; e, sobretudo, que tu mesmo não ficaste magoado porque a tua razão-mestra não ficou minimamente pior do que era.
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Da substância universal, como da cera, a Natureza molda um potro, e depois destrói-o e usa a matéria para fazer uma árvore, e depois, um homem, e a seguir, outra coisa qualquer; e nenhum destes dura mais do que um breve espaço de tempo. Quanto à embalagem propriamente dita, ser partida aos bocados não é maior sofrimento do que ser montada.
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Um ar zangado é totalmente contra a natureza. Se é assumido muitas vezes, a beleza começa a morrer, e, no fim, apaga-se irremediavelmente. Deves tentar compreender que isto revela falta de racionalidade; porque se nós perdemos a capacidade de perceber os nossos erros, para quê continuar a viver?
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Um breve instante só, e a Natureza, o juiz universal, alterará tudo o que tu vês, e da sua substância fará coisas novas, e, de novo, outras a partir daquelas, para a perpétua renovação da juventude do mundo.
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Quando alguém te ofende, que o teu primeiro pensamento seja este: Com base em que conceito de bem e mal é que isto foi feito? Uma vez isto sabido, o espanto e a cólera darão lugar à piedade. Porque, ou as tuas próprias ideias sobre o que é bom não são mais avançadas do que as dele, ou pelo menos têm alguma semelhança com elas, e, neste caso, é teu dever, evidentemente, perdoar-lhe; ou então, por outro lado, evoluíste para além da suposição de que tais actos são bons ou maus e, portanto, será tanto mais fácil seres tolerante em relação à cegueira de outrem.
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Não te entregues aos sonhos de ter aquilo que não tens; e pensa sim nas superiores bênçãos que de facto possuis, e depois lembra-te, com gratidão, de como as desejarias se as não tivesses. Ao mesmo tempo, porém, tem cuidado, não vá o deleite que delas tiras levar-te a acarinhá-las de tal maneira que a ideia da sua perda destrua a tua paz de espírito.
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Recolhe-te em ti próprio. A nossa razão-mestra nada mais exige do que agir de maneira justa e com isso conseguir a tranquilidade.
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Liberta-te de todas as fantasias. Deixa de ser uma marioneta da paixão. Confina o tempo ao presente. Aprende a reconhecer cada experiência pelo que ela é, quer seja tua ou de outrem. Divide e classifica os objectos dos sentidos em causa e matéria. Medita sobre a tua última hora. Deixa o comportamento incorrecto do teu vizinho com ele mesmo, que foi quem o iniciou.
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Fixa o pensamento naquilo que está a ser dito, e deixa o espírito penetrar todo naquilo que está a ser feito e também naquilo que o está a fazer.
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Veste-te com a esplendorosa simplicidade e com o respeito por ti próprio e com a indiferença por tudo o que fique fora do reino da virtude ou pelo vício. Ama a humanidade. Trilha os caminhos de Deus. «Tudo submetido à lei», diz o sábio; e que importa que o seu dito se refira só aos átomos? A nós basta-nos lembrar que todas as coisas estão de facto submetidas à lei. Três palavras, mas suficientes.
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Da Morte. Dispersão, se o mundo é uma confluência de átomos: extinção ou transmutação se é uma unidade.
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Da Dor. Se é para além do suportável, acaba connosco; se dura, pode ser suportada. O espírito, mantendo-se afastado do corpo conserva a sua tranquilidade e a razão mestra fica imune. Quanto às partes afectadas pela dor, elas que declarem o seu sofrimento, se puderem.
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Da Fama. Examina os espíritos dos seus seguidores, as suas ambições, as suas aversões. Além disso, reflecte sobre como nesta vida as coisas de hoje são rapidamente enterradas sob as de amanhã, e até como uma camada de areia em turbilhão fica rapidamente coberta pela seguinte.
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«Se um homem tem grandeza de espírito e o sopro de visão para contemplar todo o tempo e toda a realidade, pode ele olhar a vida humana como coisa de grande importância?» — «Não, não pode.» — «Portanto, não pensará na morte como qualquer coisa a temer?» — «Não.» (De Platão (45))
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«É sina dos príncipes serem criticados por agirem correctamente.» (De Anthístenes.)
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É pena que as feições se organizem e ajustem obedientemente, tal como o espírito manda, enquanto o mesmo espírito se recusa a organizar-se e a ajustar- se.
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«Não aflijais o vosso espírito no decurso das coisas; Elas não cuidam da vossa aflição.» (46)
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«Aos deuses imortais e também a nós próprios dai alegria.» (47)
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«Tal como as espigas de milho, também as vidas dos homens são ceifadas; Esta, poupada e aquela, cortada.» (48)
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«Se o Céu não cuida de mim nem dos meus dois filhos, Deve haver uma boa razão, mesmo para isso.» (49)
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«A razão e a boa sorte estão ambas do meu lado.» (50)
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«Não há lágrimas para aqueles que se lamentam, nem pulsação acelerada.» (51)
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«Eu bem podia responder-lhe, Estás enganado, meu amigo, se pensas que um homem de valor deve passar o tempo a pesar as perspectivas da vida e da morte. Ele só tem uma coisa a considerar ao praticar qualquer acção, e que é esta: se está a agir bem ou mal, como homem bom ou mau.» (De Platão (52))
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«A verdade da questão é esta, meus senhores. Uma vez ocupado o seu lugar, ou porque lhe pareça o melhor para ele, ou por obediência a ordens, creio que um homem é obrigado a ficar e enfrentar o perigo, não dando atenção à morte ou a qualquer outra coisa, excepto a desonra.» (De Platão (53))
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«Mas peço-te, meu amigo, que penses que é possível que a nobreza e a bondade possam ser uma coisa diferente de nos resguardarmos a nós e aos nossos amigos do perigo, e consideres se um verdadeiro homem, em vez de se agarrar à vida a todo o custo, não deverá remover do espírito a questão de saber quanto tempo pode ter de vida. Que deixe isso à vontade de Deus, na crença de que as nossa mulheres têm razão quando nos dizem que nenhum homem pode escapar ao seu destino, e ele que se entregue ao problema seguinte, a melhor maneira de viver a vida que lhe foi destinada.» (De Platão (54))
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Examina as estrelas que giram, como se tu próprio andasses no meio do seu curso. Observa com frequência a dança das mudanças dos elementos. Visões deste tipo expurgam da escória a nossa vida presa à terra.
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Platão tem uma bela frase: quem quer dissertar sobre o homem deve examinar, como se de uma alta torre de vigia, as coisas da terra; as assembleias para a paz e para a guerra, a agricultura, os acasalamentos e as separações, os nascimentos e mortes, os tribunais ruidosos, os desertos solitários, as pessoas estranhas de todos os tipos, as festas, os lutos, os negócios — observando toda aquela mistura colorida, e a ordem harmoniosa que é trabalhada a partir das contradições.
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Lança um olhar para o passado, com os seus impérios em mudança, que se erguem e caem, e assim podes prever o futuro também. A matriz será a mesma, até ao mais pequeno pormenor; porque ele não pode deixar de acertar o passo com a firme caminhada da criação. Ver a vida dos homens durante quarenta ou durante quarenta mil anos é tudo o mesmo; porque, que mais haverá para veres?
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«Tudo o que nasce da terra a ela tem de regressar; Tudo o que cresce de semente do céu para o céu voltará». (55) — pela desintegração, isto é, da sua estrutura atómica e dispersão dos seus elementos indiferentes.
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«O quê, pôr de lado as carnes e as bebidas e as amenidades As marés do Destino, e escapar assim à Morte?» (56)
«As brisas que sopram de Deus têm de ser encaradas Com remos diligentes e corações resignados.» (57)
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«Mais astuto na arena», (58) sem dúvida — mas não mais dedicado à causa pública, mais discreto, mais disciplinado às circunstâncias, mais indulgente para com os descuidos do vizinho.
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Se um feito pode ser realizado de acordo com aquela razão que os homens partilham com os deuses, não há nada a temer. Donde quer que se apresente uma oportunidade de serviço para qualquer acção que progrida em obediência às leis do nosso ser, não temos de ficar à espera de qualquer mal.
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Ao teu alcance está, a todas as horas e em toda a parte, uma religiosa aceitação dos acontecimentos do dia, um tratamento justo dos companheiros do dia, e uma escrupulosa atenção às impressões do dia, para que nenhumas delas obtenham admissão não sancionda.
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Não olhes furtivamente os instintos que regem outros homens, antes mantém os olhos postos no objectivo para que a própria natureza te guia — a Natureza-Mundo a falar pelas circunstâncias, e a tua própria natureza a falar pelos chamamentos do dever. Os actos dos homens devem estar de acordo com a sua constituição natural; e enquanto todas as outras criações são constituídas para o serviço dos seres racionais (de acordo com a lei geral segundo a qual os inferiores existem para o bem dos superiores), estes são constituídos para se servirem mutuamente. A primeira de entre todas as características da constituição do homem, portanto, é o seu dever para com os da sua espécie. A seguir vem a obrigação de resistir aos sussurros da carne; porque é uma função particular da sua razão e inteligência manter uma barreira tal à volta das suas obras que elas não sejam suplantadas pelas dos sentidos e instintos, que são, ambas, de qualidade animal. O espírito exige o primeiro lugar e não vergará à sua opressão; e muito bem, uma vez que a natureza o formou para se servir de tudo o resto. E em terceiro lugar, a constituição de um ser racional deve torná-lo incapaz de indiscrição e à prova de impostura. Deixa que a Razão, a timoneira, e só ela, rume a direito, firme nestes três princípios, e assegura-te de que ela chegue pelos próprios meios.
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Pensa como se tivesses morrido hoje e como se a história da tua vida tivesse terminado; e a partir daí, olha aquilo que o tempo futuro te possa dar como um extra não contratado, e vive-o em harmonia com a natureza.
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Não ames senão aquilo que chega até ti tecido no padrão do teu destino. Porque o que é que poderia servir mais eficazmente as tuas necessidades?
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Em qualquer situação difícil, põe os olhos nos casos de outros homens que sofreram uma crise idêntica com indignação, espanto e alarido. Onde estão eles agora? Em parte nenhuma. Então, porquê querer seguir-lhes o exemplo? Deixa, antes, os humores dos outros aos seus donos ou servos, e esforça-te por transformar o acontecimento numa boa causa. Assim, estarás a utilizá-lo da melhor maneira e ele servir-te-á como material de trabalho. Em todos os actos, que a tua auto-aprovação seja o único objectivo, tanto do teu esforço como da tua intenção, tendo sempre em mente que, em si mesmo, o acontecimento que induziu o teu acto é uma coisa sem consequências para nenhuma delas.
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Escava dentro de ti. Aí está a fonte do bem: escava continuamente e ele irá fluir sempre.
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Deixa também que o teu porte corporal seja firme e sem contorções, quer em movimento, quer em repouso. Tal como o espírito transparece na cara, emprestando-lhe uma expressão composta e decente, também o mesmo deve ser exigido dele em relação a todo o corpo. Tudo isto, porém, deve ser assegurado sem nenhuma espécie de afectação.
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A arte de viver é mais como uma luta do que como uma dança, na medida em que também exige uma postura de firmeza e de alerta contra qualquer investida inesperada.
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Aprende sempre a conhecer o carácter daqueles cuja aprovação queres conquistar, bem como os seus princípios condutores. Examina as fontes das suas opiniões e dos seus motivos, e, desta maneira, não os irás culpar das suas ofensas involuntárias, ou sentir a falta da sua aprovação.
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«Alma nenhuma», já se disse, «é privada da verdade por sua vontade». (59) E o mesmo se aplica à justiça, ao autodomínio, à bondade ou a qualquer outra virtude. Não há nada que mais precises de ter constantemente em mente do que isto; e isso vai ajudar-te a uma maior gentileza em todas as tuas relações com as pessoas.
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Quando em sofrimento, lembra-te de imediato de que não há nisso nada de vergonhoso, nem nada de prejudicial ao espírito timoneiro, que não sofre nenhum dano nem no aspecto racional nem no social. Em muitos casos, a afirmação de Epicuro de que «A dor nunca é insuportável ou infinda desde que nos lembremos das suas limitações e não nos entreguemos a exageros fantasiosos», deve ser uma ajuda. Tem em mente também que, embora não o percebamos, muitas outras coisas que achamos incómodas são, na realidade, da mesma natureza da dor: sensações de letargia, por exemplo, ou uma temperatura febril, ou a perda de apetite. Quando inclinado a resmungar contra isto, diz a ti mesmo que estás a ceder à dor.
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Quando os homens são desumanos, cuida de não sentires em relação a eles o mesmo que eles sentem em relação aos outros seres humanos.
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Como é que nós sabemos que Telauges pode não ter sido um homem melhor do que Sócrates? Está muito certo argumentar que Sócrates teve uma morte mais digna, ou que discutiu com mais perspicácia com os sofistas, ou que enfrentou mais arduamente os rigores de uma noite gelada; que resistiu vivamente à ordem para prender Leo de Salamis, (60) ou que «andou pelas ruas com pompa» (61) (embora a verdade desta última possa ser questionada) — mas a verdadeira questão a considerar é, Que espécie de alma tinha ele? Ele não pedia mais do que ser considerado justo em relação aos homens e puro perante os deuses? Evitava o ressentimento pelos vícios dos outros ou a submissão à sua ignorância? Aceitava o que o destino lhe reservava, não o olhando como coisa antinatural, nem o sofrendo como uma aflição insuportável, nem deixando o espírito ser influenciado por experiências da carne?
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A natureza não misturou o espírito com o corpo tão inextricavelmente que o impeça de estabelecer as suas próprias fronteiras e de controlar os seus próprios domínios. É perfeitamente possível ser semelhante a deus, mesmo que não se seja reconhecido como tal. Lembra-te sempre disto; e lembra-te também de que o que é preciso para uma vida feliz é muito pouco. O domínio da dialéctica ou da física pode ter-te iludido, mas isso não é razão para desesperares de conquistar a liberdade, o respeito próprio, a generosidade e a obediência à vontade de Deus.
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Vive os teus dias em calma serenidade, recusando a coerção, embora todo o mundo te ensurdeça com as suas exigências, e embora os animais selvagens te dilacerem este pobre invólucro de barro. Em tudo isso, nada pode impedir o espírito de se possuir em paz, de avaliar correctamente os acontecimentos à sua volta, e de utilizar prontamente o material que assim lhe é oferecido; para que o juízo diga ao acontecimento, «Isto é o que tu és na essência, seja qual for a maneira como os boatos te pintem», e o serviço diga à oportunidade, «Tu és aquilo que eu procurava». A ocorrência do momento é sempre uma boa matéria para empregar a razão e a fraternidade — numa palavra, para as práticas próprias dos homens e dos deuses. Porque não há uma só coisa que aconteça que não tenha a sua especial pertinência para deus ou para o homem; ela não aparece como um problema novo e intratável, mas como um velho e prestável amigo.
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Viver cada dia como se fosse o último, nunca perturbado, nunca apático, nunca com atitudes afectadas — aqui está a perfeição de carácter.
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Os deuses, embora vivam eternamente, não sentem ressentimento por terem de suportar eternamente gerações de homens e os seus erros; e mais, eles mostram por eles até todo o cuidado e preocupação possíveis. E vais tu, cuja duração é de apenas um instante, perder a paciência — tu que és até um dos culpados?
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Que ridículo é não fugirmos da nossa própria maldade, o que é possível, e tentarmos fugir da dos outros, o que não o é.
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Tudo aquilo que o raciocínio e o social achem irracional ou não fraternal, pode por eles ser declarado inferior a eles próprios.
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Quando tiveres feito uma boa acção, e outra pessoa beneficiar com ela, porquê pedir ainda mais — aplauso para tua bondade, ou um favor em troca — como fazem os insensatos?
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Ninguém se cansa de receber benefícios. Mas o benefício resulta da prática de acções que estão em consonância com a natureza. Nunca te canses, pois, de receber tais benefícios pelo próprio acto de os conferir.
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O impulso da Natureza universal foi criar um mundo bem ordenado. Daí, então, que tudo o que está a acontecer tem de seguir uma sequência lógica; se assim não fosse, o objectivo primeiro para o qual se direccionam os impulsos da Razão-Mundo seria irracional. Ter isto presente ajudar-te-á a enfrentar muitas coisas serenamente.
LIVRO 8
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A tendência será para afastar a complacência, se te lembrares de que qualquer alegação de que tens vivido como filósofo está já fora de questão; de facto, é tão evidente para muitos outros como o é para ti próprio que mesmo hoje ainda estás muito longe da filosofia. Consequentemente, o teu espírito continua em estado de confusão, e não fica nada mais fácil adquirir o título de filósofo; e também a tua posição na vida milita constantemente contra isso. Visto isto à sua verdadeira luz, deves banir quaisquer pensamentos sobre como podes parecer aos outros, e ficar satisfeito se fores capaz de tornar o que resta da tua vida naquilo que a natureza te manda que seja. Aprende a compreender a sua vontade e não deixes que nada mais te distraia. Até agora as tuas peregrinações em busca da vida certa foram mal sucedidas; não se encontrava na casuística da lógica, nem na riqueza, celebridade ou prazeres mundanos, nem em qualquer outra coisa. Onde está, então, o segredo? Em fazer o que a natureza do homem procura. Como assim? Adoptando os estritos princípios para a regulação do instinto e da acção. Tais como? Princípios relativos ao que é bom ou mau para nós: assim, por exemplo, que nada pode ser bom para um homem a não ser que contribua para o tornar justo, auto-disciplinado, corajoso e independente; e nada, mau, a não ser que tenha o efeito contrário.
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Sobre qualquer acção, interroga-te, Quais serão as suas consequências para mim? Irei arrepender-me? Dentro em breve morrerei e tudo será esquecido; mas, entretanto, se esse empreendimento é adequado a um ser racional e social que está sujeito à mesma lei que Deus, porquê procurar mais?
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Alexandre, César, Pompeu — o que é que eles eram comparados com Diógenes, Heráclito, Sócrates? Estes olhavam as coisas e as suas causas, e aquilo de que eram feitas; e os seus espíritos-mestres foram fundidos no mesmo molde. Mas os outros — que monte de encargos, que infinidade de escravidões!
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Tu podes despedaçar o coração, que os homens, esses, continuarão como antes.
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A primeira regra é mostrar um espírito tranquilo; porque todas as coisas se devem submeter à lei da Natureza; e muito em breve tu terás de desaparecer no nada, como Adriano e Augusto. A segunda é olhar as coisas de frente e conhecê-las pelo que elas são, tendo em mente que é teu dever ser um homem bom. Faz sem hesitação o que a natureza do homem exige; diz aquilo que te parece ser o mais justo — mas com cortesia, modéstia e sinceridade.
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A função da Natureza universal é misturar, transpor, permutar, tirar de um estado e transferir para outro. Em toda a parte há mudança; e contudo não temos de recear nada de inesperado, porque todas as coisas são regidas por hábitos de longa data, nem mesmo a maneira de as ratear varia.
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Toda a natureza tira satisfação da serena busca do seu próprio caminho. Para uma natureza dotada de razão, isto significa não sancionar qualquer impressão que seja enganadora ou obscura, não dando rédea solta ao impulso para acções que não tenham sentido social, limitando todos os desejos ou rejeições das coisas que estão dentro do seu poder, e saudando todas as disposições da Natureza com iguais boas vindas. Porque estas disposições fazem tão verdadeiramente parte dela como a natureza de uma folha é parte da da planta; salvo que a da folha é parte de uma natureza que não tem sentimentos nem razão e está sujeita à frustração, enquanto que a do homem é parte de uma natureza que não só não pode ser frustrada, como também é dotada tanto de inteligência como de justiça, uma vez que atribui a todos os homens de forma igual o seu quinhão de tempo, ser, causação, actividade e experiências. (Mas, não procures encontrar esta igualdade numa qualquer correspondência entre um e outro homem, no particular, mas, antes, numa comparação geral de ambos na sua inteireza.)
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Tu não podes ter a esperança de ser um erudito. Mas o que podes fazer é refrear a arrogância; o que podes fazer é elevar-te acima dos prazeres e das dores; podes ser superior à tentação da popularidade; podes conter a tua impaciência com os insensatos e os ingratos, sim, e até olhar por eles.
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Não permitas que alguém, nem mesmo tu próprio, te ouça a caluniar outra vez a vida da corte.
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O arrependimento é remorso pela perda de uma qualquer oportunidade útil. Ora, o que é bom é sempre útil, e deve ser preocupação de todo o homem bom; mas uma oportunidade de prazer é uma coisa que nenhum homem bom jamais se arrependeria de deixar passar. Daí, portanto, que o prazer não é bom nem útil.
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Pergunta-te, O que é esta coisa em si própria, pela sua própria constituição especial? O que é que ela é em substância, e na forma, e na matéria? Por quanto tempo é que subsiste?
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Quando é difícil espantar o sono, lembra-te de que ir cumprir com os deveres que tens para com a sociedade é estar a obedecer às leis da natureza humana e à tua própria constituição, enquanto que o sono é uma coisa que partilhamos com a criação bruta e irracional; e ainda mais, que a obediência à nossa própria natureza é o caminho mais correcto, o mais adequado e realmente o mais agradável.
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Habitua-te, se possível, a descobrir o carácter essencial de todas as impressões, dos seus efeitos no eu, e a sua reacção a uma análise lógica.
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Quando conheceres alguém, seja quem for, começa logo por te perguntar, Quais são as suas opiniões sobre a bondade ou maldade das coisas? Porque, assim, se os seus pontos de vista sobre o prazer e a dor e as suas causas, ou sobre a boa ou má reputação, ou sobre a vida e a morte são de um determinado tipo, não ficarei surpreendido ou escandalizado, por achar que os seus actos estão em consonância com aqueles; direi a mim mesmo que ele não tem alternativa.
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Ninguém fica surpreendido quando uma figueira dá figos. Do mesmo modo, devemos ficar envergonhados do nosso espanto quando o mundo produz a sua colheita de acontecimentos. Um médico ou um mestre de navio corariam se ficassem surpreendidos com um doente com febre ou com um vento contrário.
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Mudar de ideias e adiar para corrigir não é sacrificar a tua independência; porque tal atitude é só tua, na busca dos teus próprios impulsos, dos teus próprios juízos e da tua própria maneira de pensar.
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Se a escolha é tua, porquê proceder assim? Se é de outrem, quem vais tu culpar? Os deuses? Os átomos? Em ambos os casos seria loucura. Todos os pensamentos de culpa estão deslocados. Se puderes, corrige o transgressor; senão, corrige a transgressão; se também isto é impossível, para quê recriminar? Tudo o que não tem sentido não vale a pena.
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Aquilo que morre não abandona o mundo. Fica aqui, e aqui também se altera e se transforma, decompondo-se nas suas várias partículas; isto é, nos elementos que vão formar o universo e tu próprio. Da mesma maneira, eles próprios sofrem alterações, e, contudo, deles não nos chega qualquer queixa.
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Tudo — um cavalo, uma videira — é criado para um determinado fim. E isto não é de admirar: mesmo o sol dourado te dirá, «Estou aqui para cumprir uma tarefa», tal como todos os outros habitantes do céu. Qual a tarefa, pois, para que foste criado? Para o prazer? Um tal pensamento será tolerável?
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A natureza tem sempre um objectivo em vista; e este objectivo inclui tanto o fim da coisa como o seu princípio e duração. Ela é como o atirador da bola. A bola, em si mesma, fica melhor em resultado do seu voo? E fica pior quando vem a descer, ou quando fica cá em baixo, depois da queda? O que é que uma bola de sabão ganha por se manter, ou perde por rebentar? Isto também é verdadeiro em relação a uma vela.
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Vira este corpo mortal do avesso e repara no aspecto que ele tem. Vê como ele fica com a idade ou com a doença ou com a decrepitude. Que fugazes são as vidas, tanto a daquele que elogia, como a do que é elogiado; a daquele que recorda e a do recordado; que pequenos, os seus cantinhos nesta zona terrestre — e mesmo aí, eles não estão em paz uns com os outros. Não, a terra inteira não é, ela própria, mais do que o mais insignificante dos pontos.
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Dá-lhe toda a tua atenção, quer ele seja um objecto material, uma acção, um princípio ou o significado daquilo que está a ser dito. Este dissabor faz-te bem. Preferes esperar pela bondade amanhã a praticá-la hoje.
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Aquilo que faço, tenho de o fazer tendo como referência o serviço da humanidade. Aquilo que me acontece, tenho de o aceitar tendo como referência os deuses e aquela fonte universal donde provém toda a corrente das circunstâncias.
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A que é que tu associas os banhos? A gordura, suor, sujidade, água gordurosa, e tudo o mais que é repugnante. Tal é então a vida em todas as suas partes e tais são as suas coisas materiais.
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A morte roubou Lucilla a Vero (62), e mais tarde reclamou Lucilla também. A morte tirou Máximo a Secunda, e depois a própria Secunda; Diómito, a Epitynchano, e a seguir Epitynchano; Faustina, a António, e António, por sua vez. Assim é sempre. Celer enterra Adriano e alguém o enterra, depois, a ele próprio. Aqueles nobres espíritos de antigamente, aqueles homens de presciência, aqueles homens orgulhosos, onde estão agora? Espíritos vivos, como Charax, o platonista Demétrio, Endaemon, e outros como eles; todos vivendo apenas um dia e já há muito mortos e enterrados; alguns esquecidos logo que mortos, outros tornados lendas, outros desaparecidos das próprias lendas. Pensa, pois, que este teu corpo complexo ou tem de se desagregar e dispersar, ou o sopro que o anima tem de ser extinto ou removido ou trasladado para qualquer outro lugar.
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O verdadeiro prazer do homem é fazer aquilo para que foi criado. Ele foi criado para mostrar boa vontade para com os seus semelhantes, para ultrapassar os impulsos dos sentidos, para distinguir aparências de realidades e para prosseguir o estudo da Natureza universal e as sua obras.
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Nós temos três relações: uma com esta concha corpórea que nos envolve, outra com a Causa divina, que é a fonte de tudo em todas as coisas, e outra com os nossos semelhantes mortais que nos rodeiam.
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A dor deve ser um mal, ou para o corpo — e nesse caso deixa que o corpo fale por si — ou então para a alma. Mas a alma pode sempre recusar-se a considerá-la como um mal, e assim conservar os seus céus sem nuvens e a sua tranquilidade imperturbada. Porque não há decisão ou impulso ou movimento de aproximação ou de recuo que não tenha de vir do interior do eu; e para o interior do eu nenhum mal pode abrir caminho à força.
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Apaga todas as fantasias e insiste em dizer para ti mesmo, «Está na minha mão assegurar que nenhum vício, cupidez ou agitação de qualquer espécie se aloje nesta minha alma; está ao meu alcance compreender todas as coisas à sua verdadeira luz e tratar cada uma delas como merece». Lembra-te deste poder que é uma dádiva da natureza para ti.
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Tanto no senado como ao dirigires-te às pessoas, usa uma linguagem adequada, mas não retórica. Sê sensato e sadio nas tuas palavras.
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Pensa na corte de Augusto: mulher, filha, filhos, antepassados, irmã, Agripa, (63) parentes, relações, amigos, Arfeio, Mecenas, assistentes médicos, sacerdotes — uma corte inteira, todos desaparecidos. Volta-te para outros registos de desaparecimentos; extinções, não de indivíduos, mas de famílias completas — os Pompeus, por exemplo — e a inscrição que vemos nos memoriais, «O último da família». Pensa em todos os esforços dos seus predecessores para deixarem herdeiro; e contudo, no fim, alguém tem de ser o último, e mais uma família desaparece.
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Cada um dos teus actos, em separado, deve contribuir para uma vida integrada; e se cada um deles cumprir, tanto quanto possível, a sua parte até ao fim, deves sentir-te satisfeito, porque isso é uma coisa que ninguém pode impedir. «Haverá interferências do exterior», dizes tu? Mesmo assim, elas não afectarão a justiça, a prudência, a razoabilidade das tuas intenções. «Não, mas algum tipo de acção prática pode ser impedido». Talvez, contudo, se aceitares a frustração de bom grado e fores suficientemente sensato para aceitar aquilo que se te oferece, podes conseguir um curso alternativo que estará igualmente em consonância com a integração de que estamos a falar.
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Aceita com modéstia; rende-te com graciosidade.
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Provavelmente já viste uma mão ou um pé amputados, ou uma cabeça separada do seu corpo. É a esse estado que um homem está a fazer todo o possível por se reduzir, quando se recusa a aceitar o que lhe acontece e se afasta dos seus companheiros, ou quando age unicamente por motivos egoístas. Tornas-te então um pária na unidade da Natureza; embora criado como uma parte dela, tu cortaste essa ligação com as próprias mãos. Contudo, eis aqui um belo pensamento: que ainda está na tua mão reunificares-te. Nenhuma outra parte da criação foi assim favorecida por Deus com a permissão de se unificar de novo, depois de ser separada e dividida. Repara, pois, na bondade com que dignificou o homem: pôs na sua mão o poder de não só conseguir manter-se inseparado, mas também depois, se separado, o de voltar a reunir-se e retomar a sua qualidade de associado, como antes.
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Quando a Natureza de todas as coisas racionais equipou cada ser racional com os seus poderes, uma das faculdades que nós dela recebemos foi que, tal como ela transmuta todos os obstáculos ou oposições, também os ajusta aos seus lugares na matriz do destino e os assimila em si própria, e assim um ser racional tem o poder de transformar cada obstáculo em material para si mesmo e utilizá-lo para pôr em marcha as suas diligências.
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Nunca fiques confuso com as visões imediatas de uma vida inteira. Isto é, não deixes que os teus pensamentos percorram toda a enorme quantidade e variedade dos infortúnios que te podem acontecer, mas pergunta-te, antes, à medida que vais deparando com cada um, «O que é que há aqui de intolerável, de tão insuportável?» E vais ver que ficas envergonhado por admitir a derrota. Mais uma vez, lembra-te de que não é o peso do futuro, ou o do passado que te estão a pressionar, mas sempre e só o do presente. Mesmo este fardo pode ser atenuado se o confinares aos seus próprios limites e fores bastante severo com a incapacidade do teu espírito para suportar uma tal banalidade.
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Panteia (64) ou Pérgamo ainda estão junto do túmulo de Vero? Chabrias ou Diómito, junto do de Adriano? Que ridículo! E suponhamos que ainda estavam, os mortos seriam sensíveis a isso? Ou, se o fossem, estariam contentes? Além disso, mesmo que os próprios mortos estivessem contentes, será que é de esperar que os pranteadores, pela sua parte, vivam eternamente? Não estavam eles também condenados a ficar velhos e a morrer? — e, então, que fariam os pranteados quando os seus pranteadores deixassem de existir? E tudo isto para nada mais do que um saco cheio de fedor e decomposição.
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Nas palavras do sábio Crito, «Se tendes olhos para ver, pois, vede».
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Na constituição de um ser racional, não encontro qualquer virtude implantada para combater a justiça, mas encontro o autodomínio implantado para combater o prazer.
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Apaga as tuas noções daquilo que imaginas ser doloroso e então o teu eu fica invulnerável. «O meu eu — o que é isso?» A tua razão. «Mas eu não sou todo razão». Seja; nesse caso, pelo menos que a tua razão se abstenha de causar dor a si própria, e se outra parte de ti está com problemas, que os pensamentos sobre si própria sejam só da sua conta.
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Para a natureza da força vital que anima os nossos corpos, qualquer frustração dos sentidos é um mal, como também o é a frustração de qualquer esforço. A natureza de uma planta tem também as suas próprias frustrações e os seus males; e da mesma maneira, qualquer frustração do espírito é um mal para a natureza do espírito. Aplica tudo isto ao teu próprio caso. Uma dor afectate, ou um prazer? Os sentidos tratarão disso. Foste contrariado numa diligência? É verdade que se ela foi feita sem qualquer concessão a uma possível falha, tal frustração é realmente um mal para ti como ser racional. Contudo, uma vez que aceites aquela necessidade universal, não podes sofrer mal nenhum nem qualquer frustração. Não há ninguém que possa frustrar o espírito dentro do seu próprio domínio. O fogo, a espada, a opressão, a calúnia e tudo o mais são. (65)
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Eu, que nunca magoei voluntariamente ninguém, não tenho nada que me magoar a mim próprio.
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A cada um a sua felicidade. Para mim, a solidez da minha faculdade soberana, a razão; sem afastamento da humanidade e das suas vicissitudes; a capacidade de abranger e aceitar todas as coisas afavelmente, e tratá-las de acordo com os seus méritos.
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Aproveita o dia de hoje o melhor possível. Aqueles que, em vez disso, almejam os aplausos de amanhã não se lembram de que as futuras gerações não serão de modo nenhum diferentes das de hoje, que agora tanto põem à prova a sua paciência, e não menos mortais. De qualquer maneira, importa-te muito a maneira como as línguas da posteridade falem, ou que opiniões sobre ti tenham?
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Leva-me e atira-me para onde quiseres; continuarei possuidor da divindade que há dentro de mim, sereno e satisfeito, desde que ela sinta e aja de acordo com a sua constituição. Será que a questão desse momento é que a minha alma fique atormentada com isso e mude para pior, para se tornar numa coisa amedrontada e covarde, suplicante e sem espírito? Poderá alguma coisa ter tais consequências?
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Nada pode acontecer a um homem que não esteja ligado à sua condição de homem, nem a um boi, videira ou pedra, que não pertença à natureza dos bois, videiras ou pedras. Portanto, se todas as coisas só experimentam o que é lhes é usual e natural, porquê as queixas? A mesma Natureza que é tua e também deles não te traz nada que não possas suportar.
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Se estás perturbado por qualquer coisa exterior, o sofrimento não se deve à coisa em si mesma mas à avaliação que fazes dela; e isto está em teu poder anular em qualquer momento. Se a causa do problema está no teu próprio carácter, trata de alterar os teus princípios; quem é que te impede? Se é a incapacidade de seguir um curso de acção aparentemente sólido que te está a atormentar, por que não segui-lo em vez de te inquietares? «Porque há um obstáculo insuperável no caminho». Nesse caso, não te preocupes; a responsabilidade da inacção não é tua. «Mas não vale a pena viver com isto por fazer». Então diz um bem humorado adeus à vida, aceitando a frustração airosamente, e morrendo como qualquer outro homem cujas acções não foram impedidas.
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Lembra-te de que o teu Eu superior se torna invencível quando se recolhe em si mesmo e recusa tranquilamente agir contra sua vontade, mesmo que tal resistência seja globalmente irracional. E quanto mais, quando a sua decisão é baseada na razão e na circunspecção! Assim, um espírito liberto de paixões é uma verdadeira cidadela; o homem não tem fortaleza mais segura onde procurar refúgio e desafiar qualquer investida. Não entender isto é ignorância; mas entendê-lo e continuar a não procurar refúgio é de facto um infortúnio.
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Nunca vás além do sentido das tuas impressões originais. Estas dizem-te que tal e tal pessoa está a falar mal de ti; foi essa a sua mensagem; elas não foram mais além, dizendo-te que isso te fez algum mal. Vejo que o meu filho está doente; os olhos dizem-me isso, mas não me dizem que ele corre perigo de vida. Limita-te sempre às impressões originais; se não lhes acrescentares nada da tua lavra, estarás em segurança. Ou, quando muito, acrescenta-lhes apenas o reconhecimento da grande ordem mundial pela qual todas as coisas têm de passar.
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O pepino é amargo? Deita-o fora. Há roseiras bravas no teu caminho? Desvia-te. Isto chega. Não continues a dizer, «Por que é que se criaram coisas destas?» O estudante da natureza vai rir-se de ti; como um carpinteiro ou um sapateiro se ririam se criticasses as aparas e os restos dos seus trabalhos que viste na oficina. Contudo, eles pelo menos têm onde pôr o lixo; enquanto que a Natureza não tem um lugar assim exterior. É este o milagre da obra: que apesar desta auto-limitação, ela contudo transmuta em si própria todas as coisas que parecem gastas ou velhas ou inúteis, e remolda-as em novas criações, para que nunca precise de provisões novas do exterior, ou de um lugar onde se desfazer daquelas. O seu próprio espaço, os seus próprios materiais e a sua própria capacidade são-lhe suficientes.
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Acção dilatória, conversação incoerente, impressões vagas; uma alma demasiado constrangida interiormente; uma alma demasiado efusiva exteriormente; uma vida sem lazeres — evita estas coisas. O martírio, a mutilação, a execração; como é que estes podem afectar a capacidade do homem para continuar puro, são, moderado, justo? Um homem pode estar junto de uma límpida fonte de água doce e cumulá-la de palavras injuriosas; mas ela continua a jorrar água fresca e sã; ele pode mesmo conspurcá-la com imundícies e porcarias, mas ela dissolve-as logo e lava-as rapidamente, ficando sem mácula. Como é que havemos de ser, nós próprios, senhores de uma tal fonte perene? Salvaguardando o direito de sermos senhores de nós mesmos em todas as horas do dia, em toda a caridade, simplicidade e modéstia.
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Sem uma compreensão da natureza do universo, um homem não pode saber onde está; sem um entendimento dos seus objectivos, ele não pode saber aquilo que é, nem aquilo que o próprio universo é. Se qualquer destas descobertas lhe forem ocultadas, ele também não será capaz de apresentar uma razão para a sua própria existência. Então o que é que havemos de pensar de alguém que se preocupa em procurar o aplauso das multidões ululantes que não sabem onde estão nem o que são?
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Gostarias de receber o louvor de alguém que três vezes por hora lança maldições contra si próprio? Serias agradável para alguém que não é agradável para si próprio? E como é que um homem pode estar contente consigo mesmo, se se arrepende de quase tudo o que faz?
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Assim como a tua respiração toma parte no ar circundante, deixa também que o teu pensamento tome parte no Espírito circundante. Porque há uma Força mental que para aquele que a atrai para si mesmo não é menos ubíqua e penetrante do que a atmosfera para aquele que a pode respirar.
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A maldade geral da humanidade não pode magoar o universo; nem a maldade particular de um homem magoar um semelhante. Ela não magoa ninguém senão o próprio; e esse pode libertar-se disso quando quiser.
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A vontade do meu vizinho não é mais importante para a minha vontade do que a sua respiração ou a sua carne. O eu de cada homem tem os seus próprios direitos, independentemente do quanto nós fomos criados uns para os outros. Doutra maneira, o mal do meu vizinho tornar-se-ia o meu mal; e Deus não quis isto, para que a ruína da minha felicidade não ficasse nas mãos de outrem.
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Vê-se o sol a derramar-se e a estender-se em todas as direcções, e, no entanto, nunca se cansa. Porque este derramamento não é senão uma extensão de si próprio; os raios de sol, de facto, foram buscar o seu próprio nome a uma palavra que significa “estender-se”. Para entenderes a propriedade de um raio de sol, observa a luz que ele derrama dentro de uma sala escura através de uma estreita nesga. Ele estende-se para a frente em linha recta até encontrar um corpo sólido que lhe bloqueia a passagem para o ar que fica para além dele; e fica aí em repouso, sem deslizar nem desertar. A emissão, bem como a difusão do pensamento devem ser a contrapartida disto: não se cansando, mas simplesmente estendendo-se; não se precipitando violenta ou furiosamente contra os obstáculos que encontra, nem desertando em desespero; mas firmando-se no terreno e iluminando aquilo em que pousa. O insucesso em transmiti-lo é apenas uma auto-privação de luz.
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Quem teme a morte, ou tem medo de perder todas as sensações, ou então teme novas sensações. Na realidade, tu, ou não sentirás absolutamente nada, e, portanto, nada de mal, ou então, se sentires algumas novas sensações, serás uma nova criatura e portanto não terás deixado de viver.
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Os homens existem uns para os outros. Portanto, melhora-os ou suporta-os.
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Uma seta voa de uma maneira, mas o espírito, de outra. Mesmo quando o espírito anda a tactear o caminho cautelosamente e a abordar um problema de todos os ângulos, está a avançar a direito e a dirigir-se ao seu objectivo.
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Acede ao princípio que rege o espírito do teu vizinho e permite que ele aceda ao teu.
LIVRO 9
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A injustiça é pecado. A Natureza constituiu os seres racionais para bem deles próprios, para cada um ajudar os seus semelhantes de acordo com o seu valor e, de modo nenhum, para os magoar; e infringir a sua vontade é simplesmente pecar contra a mais velha de todas as divindades. A falsidade também é pecado, e contra a mesma deusa. Porque a Natureza é a natureza da própria Existência; e a existência implica o parentesco de todos os seres criados. Verdade não é senão um outro nome da Natureza, a criadora original de todas as coisas verdadeiras. Assim, uma mentira propositada é pecado porque a fraude é um acto de injustiça, uma mentira involuntária é também pecado porque é uma nota dissonante na harmonia da Natureza e cria a desordem sediciosa num universo organizado. Porque sediciosa é, de facto, quando um homem se deixa levar, mesmo que involuntariamente, para uma posição contrária à verdade; vendo que ele descurou de tal maneira as faculdades que a Natureza lhe deu que já não consegue distinguir o falso do verdadeiro. É também pecado buscar o prazer, como um bem, e evitar a dor, como um mal. Isto resulta necessariamente em queixas de que a Natureza é injusta nas recompensas que atribui ao vício e à virtude; porque são os maus que muitas vezes gozam os prazeres, e os meios de os obter, enquanto que o sofrimento e aquilo que provoca o sofrimento caem sobre a cabeça dos bons. Além disso, se um homem teme a dor, teme uma coisa que acontece e que tem de ser parte da ordem estabelecida das coisas, e isto é, em si mesmo, um pecado; se ele se entrega à busca do prazer, nenhum acto de injustiça o deterá, o que também é manifestamente pecaminoso. Não, se a Natureza, ela própria, não faz a distinção — e se a fizesse não teria criado a dor e o prazer lado a lado — compete àqueles que queiram seguir os seus passos serem da mesma opinião e mostrar a mesma indiferença. Portanto, quem não encara com igual despreocupação a dor ou o prazer, a morte ou a vida, a fama ou a desonra — todos eles empregados pela Natureza sem qualquer parcialidade — comete, evidentemente um pecado. E ao dizer que a Natureza os emprega imparcialmente, quero dizer que cada geração sucessiva de coisas criadas passa igualmente, e à vez, pelas mesmas experiências; porque isto é o resultado do impulso inicial que no princípio levou a Providência — tirando certos germens de existências futuras e dotando-os de poderes produtivos de auto- realização, de mutação, e de sucessão — a progredir desde o início do universo até ao actual sistema organizado.
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Um homem de sentimentos mais apurados teria dito adeus ao mundo sem nunca experimentar a sua falsidade, a sua duplicidade, o seu luxo e orgulho; mas agora que tudo isto já foi experimentado à saciedade, o caminho seguinte devia ser acabar com a vida daqui para a frente. Ou estás realmente decidido a continuar a viver no meio da iniquidade, e a experiência ainda não te convenceu a fugir desta pestilência? Porque a infecção do espírito é uma pestilência muito mais grave do que qualquer insalubridade ou desordem na atmosfera que nos rodeia. Enquanto animais, uma ataca as nossas vidas; mas enquanto homens, a outra ataca a nossa humanidade.
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Não desprezes a Morte; sorri, antes, à sua chegada; ela está entre as coisas que a Natureza quer. Tal como a juventude e a velhice, como o crescimento e a maturidade, como o aparecimento dos dentes, da barba e dos cabelos brancos, como a concepção, a gravidez e o parto. Tal como todos os outros processos naturais que as estações da vida nos trazem, assim é a nossa dissolução. Portanto, nunca um homem sensato deve encarar a morte com ligeireza, com impaciência ou com desdém; deve esperar por ela apenas como mais um dos processos da Natureza. Tal como esperas a saída do bebé do ventre da tua mulher, espera também a hora em que a pequena alma deslize para fora do seu invólucro. Mas se o teu coração prefere um consolo mais simples, não há melhor refrigério face à morte do que pensar na natureza das coisas que vais deixar e nos personagens com que já não terás de te misturar. Não que devas achar estes prejudiciais; o teu dever é, antes, o de cuidar deles e tolerá-los com brandura; contudo, nunca te esqueças de que estás a despedir-te de homens com outros princípios totalmente diferentes. Se alguma coisa te pode deter e amarrar-te à vida é a oportunidade de convívio com espíritos aparentados. Mas quando pensas no enfado de uma existência em companhia tão dissonante, exclamas, «Vem depressa, Morte, para que também eu não acabe por me esqueçer de mim mesmo».
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O pecador peca contra si mesmo; o transgressor transgride contra si mesmo, e torna-se pior pelas suas próprias acções.
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Um homem não peca só por acção, mas muitas vezes por omissão.
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Basta que a tua opinião de hoje seja fundada na convicção, a tua acção de hoje, no altruísmo, e a tua disposição de hoje, na satisfação com o que te acontece vindo do exterior.
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Apaga a fantasia; refreia os instintos; esfria o desejo; deixa a razão soberana governar.
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Um princípio vital único é distribuído por todas as criaturas irracionais e um princípio espiritual único pelas racionais; tal como uma única terra dá forma a todas as coisas terrenas, e tal como todos nós, que temos olhos e respiramos, vemos à mesma luz e respiramos o mesmo ar.
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Todas as coisas que partilham o mesmo elemento tendem a procurar os da sua própria espécie. As coisas terrenas são atraídas para a terra, as coisas aquosas fluem umas para as outras, e o mesmo se passa com as coisas etéreas — daí a necessidade das barreiras que as mantêm separadas à força. A tendência das chamas é subir para o céu por causa do fogo elemental; mesmo aqui em baixo, elas são tão ávidas da companhia dos da sua espécie que qualquer tipo de matéria, desde que razoavelmente seca, inflama com facilidade, uma vez que há apenas um pequeno número dos seus ingredientes que resiste ao fogo. Da mesma maneira, portanto, todas as porções do Espírito universal são atraídas umas para as outras. Mais fortemente ainda, na verdade; porque, sendo superiores na escala da criação, a sua avidez em se misturarem e combinarem com as suas afins, é proporcionalmente mais activa. Este instinto de união revela-se, no seu primeiro estádio, entre as criaturas sem razão, quando vemos as abelhas a enxamear, o gado a reunir-se em rebanho, as aves fazendo colónias de ninhos, e os casais a acasalarem; porque neles, a alma já emergiu, e em tais formas de vida relativamente superiores como as delas, o desejo de união encontra-se num nível de intensidade que não está presente nas pedras ou nos paus. Quando chegamos aos seres racionais, há associações políticas, camaradagens, vida familiar, reuniões públicas e, em tempo de guerra, tratados e armistícios; e entre as espécies ainda mais elevadas existe mesmo uma dimensão de unidade entre os corpos muito afastados uns dos outros — como, por exemplo, entre as estrelas. Assim, a subida na escala da criação pode induzir sentimentos de simpatia mesmo onde não há proximidade. Contudo, vê agora o que acontece. Só nós — nós, seres inteligentes — é que esquecemos este ardor mútuo de unidade; só entre nós se não vêem as correntes a convergir. Porém, embora o homem possa fugir quando quer, ele é apanhado e fica bem seguro; a Natureza é forte demais para ele. Repara bem e verás: mais depressa encontrarás um fragmento de terra não relacionado com o resto do que um homem que não tenha um laço qualquer com os seus semelhantes.
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Todas as coisas dão fruto; o homem, Deus, todo o universo, cada qual na sua estação própria. Não importa que a expressão, no seu uso comum, se restrinja às videiras e outras do género. Também a razão dá frutos, tanto para si própria, como para o mundo; porque dela vem uma colheita de coisas boas, todas com a marca da razão.
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Ensina-os melhor, se puderes; senão, lembra-te de que a generosidade foi- te dada para momentos como estes. Os próprios deuses mostram generosidade para com homens assim; e às vezes são tão indulgentes que os ajudam mesmo nos seus esforços para manter a saúde, a riqueza ou a reputação. Isto podias tu fazer também; quem é que te impede?
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Trabalha muito, tu mesmo, mas não como se estivesses a ser uma vítima, e também não com qualquer desejo de simpatia ou admiração. Deseja apenas uma coisa: que tanto as tuas acções como a tua inacção sejam dignas de um cidadão dotado de razão.
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Hoje deixei todas as minhas perplexidades; ou melhor, tirei-as de dentro de mim — porque elas não estavam fora, mas dentro; elas estavam dentro da minha própria perspectiva.
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Na experiência tudo é banal, fugaz na duração, sórdido no conteúdo; é, em todos os aspectos, o mesmo que gerações já mortas e enterradas acharam que era.
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Os factos estão totalmente fora dos nossos domínios; eles são o que são, e nada mais: não sabem nada sobre si próprios, nem formulam juízos sobre si próprios. Então o que é que faz o julgamento? A nossa própria guia e soberana, a Razão.
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Um ser racional e social não é afectado em si mesmo, nem para melhor nem para pior, pelos seus sentimentos, mas pela sua vontade; assim como o seu comportamento exterior, bom ou mau, é produto da vontade e não dos sentimentos.
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Para a pedra que se atira não há mais mal em cair do que em subir ao ar.
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Penetra bem fundo no mais íntimo dos seus espíritos e verás que tipo de críticos tu temes e em que medida são capazes de se criticar a si próprios.
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Todas as coisas estão em processo de mudança. Tu próprio estás em incessante transformação e deterioração em algumas das tuas partes, e o mesmo se passa com todo o universo.
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Deixa ficar as más acções dos outros onde elas estão.
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Na interrupção de uma actividade, ou na descontinuação e como que morte de um impulso, ou de uma opinião, não há mal. Recorda as fases do teu próprio crescimento: infância, meninice, juventude, velhice: cada mudança, ela própria, uma espécie de morte. E isso foi assim tão assustador? Ou olha para as vidas que viveste com o teu avô e depois com a tua mãe e depois com o teu pai; regista as numerosas diferenças e mudanças e descontinuações que houve nesses tempos e pergunta-te, «Foram assim tão assustadoras?» Também o não são, portanto, a cessação, a interrupção, a mudança da própria vida.
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O teu espírito, o Espírito do universo, o espírito do teu vizinho — dispõe-te a explorá-los todos. O teu próprio, para que possas moldá-lo à justiça; o do universo, para que possas rememorar aquilo de que tu és uma parte; o do teu vizinho, para que possas perceber se ele está informado de ignorância ou de conhecimento, e, também, para reconheceres que ele está ligado a ti próprio.
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Como unidade que tu próprio és, tu ajudas a completar o todo social; e da mesma maneira, portanto, todos os teus actos devem contribuir para completar a vida social. Qualquer acto que não esteja relacionado directa ou remotamente com este objectivo social desarticula essa vida e destrói a sua unidade. É um acto tão cismático como quando qualquer cidadão duma comunidade faz todo o possível para se dissociar do acordo geral.
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Querelas infantis, jogos infantis, «sopros insignificantes que sustentam cadáveres» — ora, os fantasmas de Homero são claramente mais reais!
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Primeiro alcança a natureza e qualidade da causa primeira, separa-a da matéria a que ela deu forma e estuda-a; depois determina a possível duração dos seus efeitos.
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Os infortúnios que tu tiveste de suportar são inúmeros porque não te bastou deixar a Razão, tua guia e mestra, fazer o seu trabalho natural. Vamos lá, acabemos com isto!
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Quando os que te rodeiam estão a dar vazão às suas críticas ou maldades para contigo, ou erguendo qualquer outro tipo de clamores injuriosos, aproxima- te e penetra nas suas almas para ver que espécie de homens eles são. Encontrarás muito poucas razões para os teus dolorosos esforços em conquistar a sua boa opinião. Mesmo assim, continua a ser teu dever tratá-los generosamente; porque a Natureza fê-los para serem teus amigos, e mesmo os deuses dão-lhes todo o tipo de ajuda, em sonhos, e em oráculos, para obterem os fins para que os seus corações estão dispostos.
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Para cima e para baixo, (66) de idade em idade, os ciclos do universo seguem os seus cursos imutáveis. Pode ser que o Espírito-Mundo queira cada acontecimento separado, em sucessão; e se assim é, aceita então as consequências. Ou, talvez tivesse havido apenas um primitivo acto de vontade, do qual tudo o mais é a sequência, sendo todos os acontecimentos o gérmen de outros. Dizendo de outra maneira, as coisas ou são unidades isoladas, ou formam um todo inseparável. Se esse todo é Deus, então tudo está bem; mas se é acaso sem objectivo, pelo menos não tens de andar também a esmo. Em breve a terra cobrir-nos-á a todos. Depois, a seu tempo, a terra também mudará; mais tarde, o que resulta desta mudança mudará também, por sua vez, incessantemente, e assim tudo tomará de novo, e por sua vez, o seu lugar, até ao fim do mundo. Deixar o espírito repisar nestas vagas giratórias de mudança e transformação é conhecer um desprezo por todas as coisas mortais.
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A Causa primeira é como um rio numa inundação; leva tudo consigo. Que ignóbeis são os pequenos homens que brincam à política e se convencem de que estão a agir dentro do espírito da filosofia. Crianças que nem sabem assoar o nariz. E então tu, que és um homem? Ora, faz o que a natureza te está a pedir no momento. Trata disso quando a oportunidade se te oferece e não olhes à volta a ver se estás a ser observado. Mas não contes com a comunidade ideal de Platão; contenta-te mesmo com uma banal diligência que acaba bem, e não consideres o resultado como um sucesso insignificante. Porque quem é que pode ter a esperança de alterar as convicções dos homens? E sem mudança de convicções o que é que pode haver senão sujeição ressentida e concordância fingida? Oh, sim, continua agora a falar-me de Alexandre e Filipe, e de Demétrio de Faleron. (67) Se esses homens compreenderam, na verdade, a vontade da Natureza e se instruíram no sentido de a seguir, é com eles. Mas se tudo não passou de um papel teatral que eles estavam a desempenhar, nenhum tribunal me condenou a imitar o seu exemplo. A filosofia é uma ocupação modesta, tudo simplicidade e tratamento sério. Nunca tentes seduzir-me para o pretensiosismo solene.
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Olha do alto os inúmeros rebanhos de humanos com as suas misteriosas cerimónias, as suas variadas navegações nas tempestades e na acalmia, e todo o xadrez das suas idas e vindas e ajuntamentos. Continua, depois, a considerar a vida das gerações passadas; e depois a vida daqueles que ainda estão para vir, e, até no presente, a dos rebanhos dos selvagens longínquos. Em resumo, reflecte sobre as multidões que ignoram mesmo o teu nome; quantos mais o terão esquecido rapidamente; quantos, talvez agora a elogiar-te, não te irão injuriar muito em breve, e que, portanto, a memória, a glória e tudo o mais junto são coisas de nenhum valor.
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Quando assediado do exterior pelas circunstâncias, deixa-te ficar imperturbável; quando instigado do interior para a acção, sê justo e imparcial: em suma, deixa que tanto a vontade como a acção resultem em comportamento que seja social e cumpra a lei do teu ser.
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Muitas das ansiedades que te perturbam são supérfluas; sendo apenas criações da tua imaginação, podes ver-te livre delas e expandir-te para uma região mais ampla, deixando o pensamento varrer todo o universo, contemplando os ilimitados campos da eternidade, notando a rapidez da mudança em cada coisa criada, e contrastando o breve espaço de tempo entre o nascimento e a dissolução com as infindáveis eternidades que precedem um e o infinito que se segue à outra.
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Num instante apenas, tudo isto que agora tens diante dos olhos terá já desaparecido. Aqueles que testemunham a sua passagem seguirão o mesmo caminho pouco depois; e então que escolha haverá para fazer entre o avô mais velho e o bebé que morre no seu berço?
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Observa os instintos que guiam estes homens; os fins por que lutam; os fundamentos dos seus gostos e valorização das coisas. Em resumo, retrata as suas almas postas a nu. E contudo, eles imaginam que os seus elogios ou as suas críticas podem ajudar ou prejudicar. Que presunção!
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A perda não é mais do que uma mudança, e a mudança é o deleite da Natureza. Desde o princípio do mundo, as coisas foram ordenadas a seu mando, exactamente da mesma maneira que o são hoje, e como outras coisas semelhantes serão ordenadas até ao fim dos tempos. Como é que podes então dizer que tudo está errado e sempre assim ficará; que nenhum poder entre todos os deuses do céu pode servir para o corrigir; e que o mundo está condenado a uma servidão de males sem fim?
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A substância de todos nós está condenada à deterioração; a humidade e o barro, os ossos e a fetidez. O nosso precioso mármore não é senão uma calosidade da terra, o nosso ouro e prata o seu sedimento; os nossos trajos, pedaços de cabelo, a nossa púrpura, sangue de peixe; e assim com todas as outras coisas. Assim também o próprio sopro das nossas vidas — sempre a passar, como ele faz, deste para aquele.
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Basta desta forma de vida tão miserável, deste eterno resmungar, desta palhaçada. Por que é que te hás-de incomodar desta maneira? Nada sem precedentes está a acontecer; então, o que é que te perturba? A forma? Olha bem para ela. A matéria? Olha-a bem, também. Para além da forma e da matéria, não há mais nada. Mesmo a esta hora tardia, dispõe-te a tornares-te um homem mais simples e melhor perante os deuses. Para dominar essa lição, três anos são o mesmo que cem.
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Se ele pecou, o mal é dele. Mas, se calhar, afinal não pecou.
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As coisas ou devem ter a sua origem numa única fonte inteligente, e caírem todas no seu lugar para formarem como que um corpo único — e neste caso nenhuma das partes se deve queixar daquilo que acontece para o bem do todo — ou então o mundo não passa de átomos com as suas confusas associações e dispersões. Então, porquê tanta perturbação? Diz à Razão que se encontra ao leme, «Vamos lá ver, estás morta e em decadência? Isto é algum papel que estás a representar? Desceste ao nível de um animal selvagem, a pastar com o resto do rebanho?»
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Os deuses ou têm poder ou não têm. Se não têm, porquê rezar-lhes? Se têm, então, em vez de lhes implorar que te concedam ou te livrem de certa coisa, por que não rezar, antes, para que façam com que não a temas, ou a não cobices ou não te aflijas com ela? Evidentemente que, se eles podem de facto ajudar um homem, podem ajudá-lo desta maneira. Tu vais dizer, talvez, «Mas tudo isso são coisas que eles puseram ao meu alcance». Então era certamente melhor usares do teu poder para seres um homem livre, do que suspirar como um escravo e um pedinte por qualquer coisa que não está no teu poder. Além disso, quem te disse que os deuses nunca dão a sua ajuda, mesmo para uma coisa que não está no nosso poder? Começa a rezar desta maneira e verás. Onde outro homem reza, «Deus permita que eu possua esta mulher», diz tu a tua oração desta maneira, «Deus permita que eu não deseje possuí-la». Quando ele reza, «Deus me livre de fulano», tu rezas, «Tira-me o desejo de me ver livre dele». Quando ele implora, «Deus me livre da perda do meu precioso filho», pede, antes, que te evite o terror de o perder. Em resumo, dá às tuas petições um teor neste sentido e vê o que acontece.
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«Quando eu estava doente», diz Epicuro, «nunca falava dos meus padecimentos. Não discutia assuntos deste tipo com as minhas visitas. Falava dos princípios da filosofia natural; e o ponto em que eu particularmente insistia era em como o espírito, enquanto parte em todos estes abalos da carne, pode ficar imune e continuar a buscar o seu bem certo». E acrescenta, «Nem dava aos médicos oportunidade de se gabarem dos seus triunfos; a minha vida continuava simplesmente o seu curso normal, tranquila e felizmente». Na doença, portanto, ou em qualquer outro tipo de problema, faz como Epicuro. Nunca troques o domínio da filosofia por qualquer coisa que te possa acontecer, e nunca tomes parte nos disparates em que falam os ignorantes e os sem instrução (isto é uma máxima em que todas as escolas concordam). Concentra- te totalmente na tarefa que tens diante de ti, e no instrumento que possuis para a sua realização.
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Quando te sentires ultrajado pela insolência de alguém, pergunta-te logo, «Poderá o mundo existir sem os insolentes?» Não pode; portanto não peças impossíveis. Aquele homem é simplesmente um dos insolentes cuja existência é necessária ao mundo. Tem este pensamento bem presente sempre que depares com velhacarias, duplicidades ou qualquer outra forma de dissimulação ou falta de probidade. Tens apenas que te lembrar de que este tipo é indispensável e logo te sentirás mais bondoso para com a pessoa. Também ajudará recordares prontamente que qualidade especial a Natureza nos deu para opor a tais defeitos em particular. Porque há antídotos com que ela nos dotou: a gentileza para enfrentar a brutalidade, por exemplo, e outros correctivos para outros males. Geralmente também tens a oportunidade de mostrar ao culpado o seu erro — porque toda a gente que comete erros está a faltar ao cumprimento do seu próprio objectivo e é portanto um bronco. Além disso, que prejuízo sofreste tu? Nada do que estas vítimas da tua irritação fizeram pôde afectar de modo nocivo o teu espírito; e só no espírito é que qualquer coisa má ou prejudicial para o eu pode ter existência real. O que é que há de errado ou de surpreendente, afinal, no comportamento grosseiro de uma pessoa grosseira? Pensa, portanto, se a culpa não será antes tua mesmo por não preveres que ele te ia ofender dessa maneira. Tu, em virtude da tua razão, tinhas todos os meios para considerar provável esse seu comportamento; esqueceste isso e agora a sua ofensa apanha-te de surpresa. Quando ficares indignado com alguém pela sua perfídia ou ingratidão volta o teu pensamento primeiro e sobretudo para ti próprio. Porque o erro é claramente teu se puseres muita fé na boa fé de um homem com essas características, ou, quando lhe tiveres feito bem, se não o tiveres feito sem reservas e na crença de que essa acção seria, ela própria, a recompensa. Depois de prestado um serviço a um homem, que mais querias? Não te basta ter obedecido às leis da tua própria natureza sem esperar qualquer paga? Isso é como os olhos pedirem uma recompensa por verem, ou os pés por caminharem. É precisamente para esse fim que eles existem; e eles têm o que lhes é devido, ao fazerem aquilo para que foram criados. Da mesma maneira, o homem nasce para actos de bondade; e quando ele faz uma acção boa, ou de qualquer maneira serviu o bem comum, fez aquilo para que foi criado e já recebeu a sua paga.
LIVRO 10
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Ó alma minha, será que nunca serás boa e sincera, una, aberta, mais visível ainda ao observador do que ao corpo que te envolve? Será que nunca irás conhecer o sabor da doçura de um coração amante e afectuoso? Será que nunca ficarás satisfeita e não carente, nunca suspirando por nada, nunca ansiando por pessoa ou coisa que te proporcione os teus prazeres, ou pelo prolongamento dos dias para os gozar, por um lugar ou país ou clima agradável, ou doce companhia humana? Quando é que ficarás satisfeita com o teu estado actual, feliz com tudo o que te rodeia, convencida de que todas as coisas são tuas, de que tudo deriva dos deuses, e que tudo está e estará bem contigo, desde que isso lhes dê prazer e seja destinado por eles para segurança e bem estar daquele Todo vivente e perfeito — tão bom, tão justo, tão belo — que dá a vida a todas as coisas, protegendo-as e abraçando-as, e, na sua dissolução, absorvendo-as em si próprio para que outras da sua espécie possam nascer? Será que nunca te adaptarás a um tal companheirismo com os deuses e com os homens de modo a não teres uma só palavra de queixa deles, uma só palavra de censura da parte deles?
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Presta atenção àquilo que a tua natureza particular exige de ti, como alguém que está totalmente submetido ao governo da grande Natureza. Faz isso, e aceita-o, sempre na condição de que não venha a prejudicar a tua natureza física. Contudo, presta também atenção às exigências da tua natureza física e sanciona todas elas, a não ser que venham, por sua vez, a prejudicar a tua natureza racional (e o racional implica directamente o social também). Segue estas regras e não desperdices esforços noutras coisas.
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Aconteça-te o que acontecer, a Natureza ou te preparou para o enfrentar ou não te preparou. Se acontece alguma coisa desagradável que tens o poder de suportar, não fiques ressentido, mas suporta-o, antes, da maneira que ela te capacitou para o fazeres. Se essa coisa excede esse poder, mesmo assim, não cedas ao ressentimento; porque a sua vitória sobre ti porá fim à sua própria existência. Lembra-te, contudo, de que a Natureza te deu, de facto, a capacidade para suportar qualquer coisa que o teu julgamento consiga declarar suportável, considerando-a como uma coisa de interesse próprio e um dever a cumprir.
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Se um homem tem um deslize, admoesta-o delicadamente e mostra-lhe o erro. Se não o conseguires convencer, lança as culpas sobre ti mesmo, ou então não culpes ninguém.
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Todas as coisas que te possam acontecer, sejam elas quais forem, foram preparadas para ti antecipadamente desde o princípio dos tempos. Na tapeçaria da causação, o fio do teu ser foi entrelaçado desde sempre com esse particular incidente.
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Independentemente do facto de o universo ser uma confusão de átomos ou um desenvolvimento natural, que a minha primeira convicção seja a de que faço parte de um Todo que está sob o governo da Natureza; e que a segunda, a de que existe um laço de parentesco entre mim próprio e todas as outras partes semelhantes. Se tiver em mente estas duas ideias, em primeiro lugar, sendo eu uma parte, não me sentirei magoado por uma qualquer disposição a mim destinada e vinda do Todo, uma vez que nada que seja bom para um qualquer todo pode ser mau para uma das partes, e neste caso não há nada no conteúdo deste Todo que seja prejudicial para ele próprio. (O mesmo, de facto, pode dizer- se em relação a todos os organismos naturais; mas a natureza do universo tem ainda a outra coisa que a distingue: que não há causa exterior a si que alguma vez a possa obrigar a produzir qualquer coisa de mau para si própria.) Então, lembrando que sou uma parte desse Todo, aceitarei alegremente seja o que for que me caiba em sorte. Em segundo lugar, dado que há este laço de parentesco entre mim e as outras partes minhas congéneres, não farei nada que possa vir a magoar o seu bem estar comum, mas, pelo contrário, terei sempre intencionalmente em vista essas partes minhas semelhantes, orientando todos os impulsos no sentido do seu bem e afastados de qualquer coisa que concorra contra isso. Fazendo assim, não poderei deixar de pensar que a corrente da minha vida flui tranquilamente, tão tranquilamente como podemos imaginar a de um homem público cujos actos estão consistentemente ao serviço dos seus concidadãos, e que está pronto a aceitar de bom grado qualquer tarefa que a cidade lhe atribua.
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Todas as partes do Todo — e com isto quero significar tudo o que está naturalmente compreendido no universo — têm de, com o tempo, entrar em degradação; ou, para ser mais rigoroso, têm de sofrer uma mudança de forma. Se, pela sua natureza, esta mudança, além de inevitável, fosse positivamente um mal para elas, o regular trabalho do Todo não podia continuar; porque as suas partes encaminham-se sempre para uma mudança de forma, ou outra, e estão constitucionalmente sujeitas à deterioração nos seus caminhos respectivos. Então, a Natureza pretendeu deliberadamente infligir danos às coisas que são parte de si própria, tornando-as não só sujeitas ao mal, mas também inelutavelmente condenadas a ele? Ou será que isso acontece sem o seu conhecimento? Nenhuma destas suposições merece qualquer crédito. Mesmo que, por hipótese, deixemos a Natureza completamente fora da questão, e expliquemos tudo isto em termos de ordem normal de criação, continua a ser absurdo dizer que esta mutabilidade das partes do Todo é normal se, simultaneamente, vamos ficar espantados ou ressentidos como se se tratasse de uma ocorrência anti-natural; tanto mais que tudo aquilo que as partes estão a fazer é simplesmente dissolverem-se de novo nos constituintes da sua composição primitiva. Porque, afinal, se a dissolução não é simplesmente uma mera dispersão dos elementos de que sou formado, deve ser uma transformação das partículas mais grosseiras em forma terrena e das espirituais em forma etérea, para que todas sejam reabsorvidas na Razão universal (não importa se esta tem de ser periodicamente consumida em chamas, ou mantida em perpétua renovação, em eternos ciclos de mudança). Repara, contudo, que não podemos pensar que estas partículas, as grosseiras e as espirituais, são aquelas que recebemos ao nascer, quando vemos que a nossa completa estrutura actual derivou o seu incremento da carne comida e do ar respirado ontem ou no dia anterior. O que vai sofrer estas transformações não é, portanto, uma coisa que a nossa mãe primitivamente pariu, mas uma coisa que recebemos posteriormente. (Mesmo que admitamos que o nascimento realmente nos envolve em grande medida com estas partículas intrinsecamente mutáveis, penso que isso não altera o que acabei de dizer.)
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Se reclamas para ti atributos como a bondade, a modéstia, a honestidade, a pureza, a rectidão e a elevação de espírito, tem cuidado, não os desmintas; e se acontecer ficares privado deles, não percas tempo a tentar recuperá-los. Mas lembra-te que “pureza de espírito” deve sugerir-te uma consideração discriminadora de cada pormenor separado e uma atenção cuidada a cada um; “rectidão” uma aceitação de tudo o que a Natureza te destinou; e “elevação de espírito” uma elevação do intelecto em relação aos trabalhos da carne, sejam eles suaves ou ásperos, e à vanglória, morte ou quaisquer outras alienações. Vive para estes desígnios — embora sem desejar que te sejam aplicados pelos outros — e serás um homem diferente e encetarás uma vida diferente. Continuar como estás agora, continuar a ser despedaçado e aviltado por uma existência como esta é o caminho de um insensato e de um fraco; faz lembrar o espadachim que foi retalhado pelos animais na arena e coberto de sangue e feridas, e contudo ainda pede para continuar até ao dia seguinte, para ser de novo atirado, com feridas e tudo, aos mesmos dentes e mandíbulas. Salta, pois, para bordo desta pequena jangada de atributos, e se o conseguires, fica aí como se fosses transportado para as Ilhas dos Bem-Aventurados. Mas se te sentires à deriva e incapaz de manter a rota, arranja coragem e faz-te a um porto de abrigo tranquilo onde possas firmar o teu caminho; ou diz mesmo adeus à vida, não num arrebatamento, mas simples, livre e despretensiosamente, com pelo menos esta vitória na tua conta, uma partida digna. Para teres sempre em mente estes atributos, muito ajudará não esqueceres os deuses; recordar que o que eles desejam não é serem lisonjeados, mas que tudo aquilo que tem o dom da razão se torne como eles próprios; e também lembrar que uma figueira é aquela que faz o trabalho da figueira, um cão é aquele que faz o de um cão, uma abelha, o de uma abelha — e um homem, o de um homem.
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Dia a dia, a bufonaria, a querela, a timidez, a indolência e o servilismo que te rodeiam conspiram para te apagar do espírito aquelas máximas consagradas que ele apreende tão pouco filosoficamente e põe de lado tão descuidadamente. O que o dever exige de ti é observar cada simples coisa e realizar cada acto de tal maneira que, ao mesmo tempo que as exigências práticas de uma situação são satisfeitas, os poderes do pensamento sejam plenamente exercidos; e também manter (em reserva, mas nunca longe da vista) a autoconfiança própria de quem dominou todos os pormenores relevantes. Será que nunca irás atingir a felicidade de uma integridade e dignidade reais? De uma compreensão que abranja o mais íntimo ser de cada coisa, o seu lugar na ordem mundial, o prazo da sua existência natural, a estrutura da sua composição, e a quem pertence ou quem tem o poder de o outorgar ou de o retirar?
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Uma aranha sente orgulho em apanhar uma mosca; e um homem, de caçar uma lebre, ou outro, de pescar um arenque, ou um terceiro, de capturar javalis ou ursos ou Samartianos. (68) Se entrares na questão dos princípios, não serão estes simplesmente ladrões?
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Cria o hábito de observares regularmente o processo universal da mudança; fá-lo com frequência, e instrui-te plenamente neste ramo do estudo; não há nada que mais elevação dê ao espírito. Porque quando um homem compreende que em qualquer momento pode ter de deixar tudo para trás e deixar a companhia dos seus camaradas, ele põe o corpo de parte e, a partir de então, dedica-se totalmente ao serviço da justiça nas suas acções pessoais e à consonância com a natureza em tudo o mais. Não desperdiça um só pensamento sobre o que os outros podem dizer ou pensar dele ou fazer contra ele; apenas duas coisas lhe bastam, a justiça nas suas acções diárias e satisfação com tudo aquilo que do destino lhe coube. Todas as preocupações, todas as distracções são postas de parte; a sua única ambição é seguir os caminhos rectos da lei, e, ao proceder assim, tornar-se um seguidor de Deus.
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Para quê o trabalho de tentar adivinhar, se o caminho do dever está ali diante dos teus olhos? Se a estrada for bem clara para a poderes ver, avança de boa vontade e sem olhares para trás; senão, espera e aconselha-te da melhor maneira possível. Se mais obstáculos se te depararem, avança discretamente até ao limite dos teus recursos, seguindo sempre o caminho que a justiça te aponta. Alcançar a justiça é o ponto mais alto do sucesso, uma vez que é aí que o fracasso mais frequentemente ocorre.
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Começa o dia por te perguntar, Pode a conduta justa e recta de outrem ter alguma influência em mim próprio? Não. Lembra-te que os homens que estão arrogantemente prontos a elogiar ou a criticar, são o mesmo na sua vida privada, na cama e à mesa; recorda as coisas que eles fazem, as coisas que eles evitam e as coisas por que eles anseiam, e as ladroagens e depredações que eles cometem — não de facto com as mãos e os pés, mas com aquele mais precioso dos seus bens, que pode ser, e para isso basta que um homem queira, a fonte da fé, da modéstia, da verdade, da lei e do bem estar da divindade dentro de si.
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Para a Natureza, donde procedem todas as coisas e para onde todas regressam, a exclamação do coração humilde e bem formado é, «Dai quando quiserdes, tomai de volta quando quiserdes»; porém, dito sem exagero, mas em pura obediência e com boa vontade.
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Os anos que te faltam são já poucos. Vive-os, pois, como se estivesses no cimo de uma montanha. Se o destino atira um homem para este ou aquele lugar é irrelevante, desde que em todos os lugares ele veja o mundo como uma cidade e a si próprio como seu cidadão. Dá aos homens a oportunidade de verem e conhecerem um verdadeiro homem que vive segundo as leis da Natureza. Se eles não conseguem tolerar a vista, então que se livrem dele. É melhor assim do que viver como eles vivem.
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Não desperdices mais tempo a discutir sobre como um homem bom deve ser. Sê um deles.
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Deixa que o teu espírito habite sempre em todo o Tempo e em todo o Ser, e assim aprenda que cada coisa separada não é mais do que um grão de areia em comparação com o Ser e uma simples volta de parafuso em comparação com o Tempo.
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Compreende a natureza de todas as coisas materiais observando como cada uma delas está neste preciso momento a sofrer dissolução e mudança, e está já em processo de degradação, ou dispersão, ou o que quer que seja que o destino lhe tenha reservado.
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A comer, a dormir, a copular, a excretar, e a fazer outras coisas do género; que turba que eles são! Tão pomposos na sua arrogância, tão autoritários e tirânicos, tão altivamente críticos dos outros! Quantas botas lambiam eles ainda há pouco — e com que fins! — e daqui a pouco estarão a fazer outra vez a mesma coisa.
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Aquilo que a Natureza traz para cada homem e para cada coisa é para seu bem; mais ainda, é para o seu bem no preciso momento em que chega.
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«A Terra está apaixonada pelos aguaceiros que vêm do céu, E o santificado Céu está, ele mesmo, apaixonado.» (69) — isto é, o universo está verdadeiramente apaixonado pela sua tarefa de talhar seja o que for que esteja para nascer; e para o universo, portanto, a minha resposta tem de ser, «Como vós amais, também eu amo.» (Não é esta a mesma ideia implícita na vulgar expressão que diz que tal ou tal coisa «gosta de acontecer»?)
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Tu, ou continuas a viver aqui, hábito a que já estás suficientemente adaptado; ou mudas-te para qualquer outro sítio, o que farás por tua própria e livre iniciativa, ou morres, o que significa que o teu serviço acabou. Outra escolha não há, portanto, encara isto de boa mente.
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Que para ti fique bem claro que a paz dos verdes campos pode ser tua, neste, naquele ou em qualquer outro lugar; e que nada aqui é diferente do que seria, quer lá em cima nos montes, quer cá em baixo junto ao mar, ou onde quer que queiras. Encontrarás esta mesma ideia em Platão, quando ele fala em viver dentro das muralhas da cidade «como se a ordenhar os rebanhos num redil da montanha.» (70)
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O que é para mim a minha razão-mestra? O que é que estou a fazer dela neste momento? Que uso estou eu a dar-lhe? Será que ela está a revelar-se uma tonta? Estará a ficar divorciada e separada dos laços da camaradagem? Terá ficado tão envolvida e tão identificada com a carne que reflecte as suas mudanças e vacilações?
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Um servo que se liberta do seu amo é um desertor. Para nós, o amo é a lei; e consequentemente qualquer transgressor tem que ser um desertor. Mas o pesar, a cólera ou o medo são todos eles rejeições de qualquer coisa que no passado, no presente ou no futuro foi decretado pelo poder que rege o universo — por outras palavras, pela Lei, que atribui a cada criatura aquilo que lhe é devido. (71) Ceder ao medo, ao pesar ou à cólera é, portanto, ser um desertor.
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Um homem deixa uma semente no útero e prossegue o seu caminho; depois outra causa pega nela, põe-se a trabalhar, e acaba a formar um bebé — que transformação! O mesmo homem ingere os alimentos e, uma vez mais, uma outra causa pega neles e converte-os em sensação e movimento e, em suma, em vida, vigor, e outros produtos, muitos e variados. Pensa nestes processos que são trabalhados de maneira tão misteriosa; e vê o poder a trabalhar ali da mesma maneira como vemos as forças que atraem os objectos para a terra e para cima — não com os olhos, quero dizer, mas não menos claramente.
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Pensa muitas vezes como toda a vida de hoje é uma repetição do passado; e observa que ela também pressagia o que está para vir. Revê os muitos dramas acabados e os seus cenários, todos tão semelhantes, que tens conhecido na tua experiência, ou da história passada: todo o círculo da corte de Adriano, por exemplo, ou a corte de António, ou as cortes de Filipe, Alexandre e Cresus. A representação é sempre a mesma, só os actores mudam.
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Quando vires um homem aborrecido ou ressentido com alguma coisa, pensa num porco a espernear e a grunhir sob a faca do sacrifício. Outro que se recolha na cama, em solidão, lamentando-se silenciosamente da nossa servidão, também não está em melhor situação. Só aos seres racionais é garantido o poder de uma conformidade voluntária com as circunstâncias; a simples conformidade em si mesma, que a implacável necessidade exige de cada criatura.
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Em qualquer coisa de que te encarregues, seja ela qual for, pára a cada passo para te perguntares: «É a ideia de ser privado disto que me faz temer a morte?»
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Quando a falta de outrem te magoa, volta-te para ti mesmo e pensa nos defeitos semelhantes que tu tens. Também encontras o teu bem estar na riqueza, no prazer, na reputação ou em coisas deste tipo? Pensa nisto, e a tua cólera logo será esquecida ao reflectires que ele está a agir sob pressão; que mais podia ele fazer? Em alternativa, arranja maneira de o libertar dessa pressão.
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Que a vista de Satyricon te recorde os falecidos Socráticos ou Eutyches ou Hymen; a vista de Euphrates te lembre Eutychion ou Silvano; um olhar a Alciphron te sugira a memória de Tropaeophorus; um vislumbre de Severo, o de Crito ou Xenofonte; quando te olhares pensa nos imperadores que te precederam. Da mesma maneira, com cada homem imagina a sua contrapartida; e depois passa para a seguinte reflexão: «Onde estão eles agora?» Em parte nenhuma — ou algures. Desta maneira, ir-te-ás acostumando a olhar tudo o que é mortal como um vapor e um nada; e mais ainda, se te lembrares também de que as mudanças nas coisas, uma vez operadas, são para sempre irreversíveis. Então porquê lutar e esforçares-te em vez de ficares satisfeito em viver convenientemente a tua curta vida? Pensa no material e nas possibilidades para o bem que andas a rejeitar; uma vez que, o que são as tuas aflições senão exercícios para treino da tua razão, depois de ter aprendido a ver as verdades da vida a uma correcta luz filosófica? Sê paciente, pois, até que, para ti, elas se tornem familiares e naturais, da mesma maneira que um estômago forte pode assimilar toda a espécie de alimentos, ou um fogo brilhante transforma qualquer coisa que se lhe atire em calor e chamas.
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Não permitas que alguém se sinta no direito de dizer com verdade que te falta integridade e bondade; se alguém pensar tal coisa, trata de fazer com que isso não tenha fundamento. Tudo depende de ti, pois, quem mais te pode impedir de conseguir a integridade e a bondade? Se não consegues viver desta maneira, só tens de tomar a decisão de não continuar a viver; porque, nesse caso, nem a própria razão te pode exigir que continues.
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Qual é a melhor coisa que pode ser dita ou feita com os materiais à tua disposição? Qualquer que ela seja, tu tens o poder de o dizer ou fazer; que não haja a pretensão de que não és um agente livre. Essas tuas lamentações nunca acabarão enquanto o cumprimento do dever natural de um homem, com quaisquer materiais que lhe venham ter às mãos, não representar tanto para ti como os prazeres para o sibarita. (De facto, todo o exercício dos nossos instintos naturais deve ser considerado como uma forma de prazer; e as oportunidades para isso estão presentes em toda a parte.) Um cilindro não tem sempre o privilégio, seguramente, de se mover à sua vontade, nem a água, nem o fogo, nem qualquer outra coisa que esteja submetida ao governo da sua própria natureza ou de uma alma sem razão; porque há muitos factores que intervêm para o evitar. Mas um espírito e uma razão podem avançar no meio de quaisquer obstáculos, porque a sua natureza para tal os capacita e a sua vontade para tal os incita. Imagina a maneira como a razão descobre um meio de ultrapassar todas as barreiras tão facilmente (tão sem esforço), como o fogo sobe ou uma pedra cai ou um cilindro desce uma encosta; e não queiras pedir mais. As interferências, em qualquer caso, ou devem afectar apenas o corpo — que não é senão uma coisa inanimada — ou então serem impotentes para nos aniquilar ou magoar, a menos que recebam a ajuda das nossas próprias ideias preconcebidas e da rendição da própria razão. Se assim não fosse, o seu efeito sobre o sujeito seria prejudicial; e, embora saibamos que em todo o resto da criação a ocorrência de qualquer revés envolve um agravamento da vítima, no caso de um homem podemos mesmo dizer que ele fica melhor e mais digno de louvor pelo correcto uso que faz da adversidade. Em resumo, nunca te esqueças de que nada pode magoar o verdadeiro cidadão, se não magoar a própria cidade, e nada pode magoar a cidade a não ser que magoe a lei, e, portanto, não pode magoar nem a cidade nem o cidadão.
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Uma vez gravados no espírito os verdadeiros princípios, mesmo a mais ligeira trivialidade bastará para recordar a inutilidade das lamentações ou dos medos; como, por exemplo, «O que são os filhos dos homens senão folhas que caem ao sopro do vento?» (72) Tal como folhas eram aqueles teus queridos filhos; folhas também são as multidões, aquelas vozes pretensamente convincentes que gritam as suas aclamações, lançam as suas maldições ou zombam e escarnecem às escondidas; folhas também são todos aqueles em cujas mãos ficará a tua reputação daqui para a frente. Todos e cada um, eles «florescem na primavera», os ventos fazem-nos cair e logo a floresta põe nova verdura no seu lugar. A impermanência é o distintivo de todos e cada um; e, contudo, tu persegue-los ou foges deles, como se eles tivessem que sofrer para toda a eternidade. Dentro em pouco, os teus olhos fechar-se-ão; e pelo homem que te levar à sepultura, também pouco depois as lágrimas correrão.
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A função de uns olhos sãos é ver tudo aquilo que é visível, e não exigir que tudo seja verde, porque isso é apenas sinal de uma visão doente. Da mesma maneira, a audição e o olfacto, se saudáveis, devem estar receptivos a todos os sons e cheiros, e um estômago são, a todos os tipos de carne, como um moinho que aceita qualquer cereal que esteja preparado para moer. Da mesma forma, portanto, um espírito são deve estar preparado para qualquer coisa que possa acontecer. Um espírito que exclame: «Oh, que os meus filhos sejam poupados!» ou «Oh, se o mundo ressoasse de aclamações a todos os meus actos», é uma vista anelando pelo verde, ou um dente por coisa tenra.
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Não há ninguém tão afortunado que não tenha à cabeceira do leito da morte quem saúde a sua próxima perda com deleite. Digamos que ele era tão virtuoso, sábio até; e mesmo assim, haverá sempre alguém que no fim murmura baixinho: «Finalmente podemos outra vez respirar à vontade sem o nosso amo! Ele nunca foi certamente, severo connosco; mas tive sempre a impressão de que ele tinha um secreto desprezo por nós»? Tal é o destino dos virtuosos; quanto aos outros de nós, que quantidade de outras boas razões não há para alguns dos nossos amigos, e não tão poucos como isso, ficarem contentes por se verem livres de nós! Pensa nisto quando estiveres para morrer; isso tornará mais fácil a reflexão seguinte: «Vou deixar um mundo em que os meus próprios companheiros, por quem eu tanto trabalhei, tanto orei e tanto pensei, desejam a minha partida e esperam obter qualquer alívio com ela; então, como é que alguém pode desejar um prolongamento dos seus dias aqui?» Contudo, não te vás, por essa razão, com um espírito de menos bondade para com eles; conserva a tua amizade do costume, a boa vontade e a caridade; e não sintas a partida como uma separação dolorosa, antes deixa que a tua despedida seja como aquelas mortes indolores em que a alma desliza facilmente para fora do corpo. Antes, a Natureza juntou-te a esses homens e uniu-vos num só; agora ela desfaz o nó. Estou solto, pois, também dos meus próprios parentes; mas sem resistência, sem forçar; é apenas mais um dos processos da Natureza.
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Em todos os actos, não importa por quem eles sejam praticados, habitua-te a perguntar-te: «Qual é o seu objectivo ao fazer isto?» Mas começa por ti mesmo; faz primeiro que tudo essa pergunta a ti mesmo.
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Não te esqueças, é aquela força secreta e bem escondida dentro de nós que puxa os cordelinhos; aí reside a voz da persuasão, a própria vida, aí, poderíamos dizer, está o homem, ele mesmo. Nunca o confundas na tua imaginação com o seu invólucro de carne, ou com os órgãos a ele associados, que, salvo o facto de se desenvolverem sobre o corpo, são meros instrumentos, tal como o machado do carpinteiro. Sem o agente que impulsiona ou refreia os seus movimentos, as partes, por si só, não têm mais préstimo do que a lançadeira do tecelão, a caneta do escritor ou o chicote do carroceiro.
LIVRO 11
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As propriedades de uma alma racional são estas: pode contemplar-se, analisar-se, fazer dela o que quiser, aproveitar ela própria o fruto que tem dentro de si (enquanto que o fruto produzido pelas árvores, como o seu correspondente produzido pelos animais, é aproveitado por outros), e ter sempre o seu trabalho completo qualquer que seja a altura em que a nossa vida atinja o seu limite fixado. Porque diferentemente da dança ou das peças de teatro, e outras coisas do género, que, se são repentinamente interrompidas, o espectáculo, como um todo, fica incompleto, a alma, independentemente do estádio em que é arrestada, tem a sua tarefa completada para sua própria satisfação e pode dizer «Estou na posse plena de mim própria.» Além disso ela pode abarcar todo o universo à sua vontade, tanto a estrutura como o vazio à sua volta, e pode alcançar a eternidade, abraçando e abrangendo as grandes renovações cíclicas da criação e assim perceber que as futuras gerações não terão nada de novo para testemunhar, da mesma maneira que os nossos antepassados não contemplaram nada mais do que nós hoje; mas, se um homem atinge os quarenta anos e compreende alguma coisa, já viu virtualmente — graças às suas semelhanças — todos os acontecimentos possíveis, passados e futuros. Finalmente, as qualidades da alma racional incluem o amor pelo semelhante, a verdade, a modéstia, e o respeito por si próprio, antes de tudo o mais; e como este último é também uma das qualidades da lei, segue-se que o princípio da racionalidade é o mesmo que o princípio da justiça.
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Tu podes tornar-te muito rapidamente indiferente às seduções da música ou da dança ou de demonstrações atléticas, se decompuseres a melodia nas suas diferentes notas e te interrogares sobre cada uma por sua vez: «É a esta que eu não consigo resistir?» Hesitarás em confessá-lo. Faz o mesmo em relação a cada movimento ou atitude dos dançarinos e dos atletas. Em suma, salvo no caso da virtude e suas implicações, lembra-te sempre de te dirigires directamente às partes e, dissecando-as, consegues o teu desencantamento. E agora, transporta este método para a vida tomada como um todo.
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Feliz da alma que, em qualquer altura que chegue a hora de se separar do corpo, esteja também pronta para encarar a extinção, a dispersão ou a sobrevivência. Tal preparação, contudo, tem de ser o resultado da sua própria decisão; uma decisão não instigada por mera contumácia, como acontece com os cristãos, (73) mas formada com ponderação e seriedade, e, se tiver de ser convincente para os outros, sem grandiloquência.
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Pratiquei uma acção altruísta? Muito bem, já tive a minha recompensa. Tem sempre presente este pensamento e continua.
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Qual é o teu mister? A bondade. Mas como é que vais nele ter sucesso se não tiveres a capacidade de um filósofo para penetrar na natureza do universo e na constituição particular do homem?
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O teatro, na sua primeira fase, tomou a forma de Tragédia, que pela apresentação das vicissitudes da vida nos recorda como as coisas desse tipo podem acontecer naturalmente, e que, como elas, no palco, nos levam ao prazer, não temos o direito de ficar magoados pela sua ocorrência no palco mais vasto da realidade. Porque nestas peças mostram-nos que, embora os actos tenham de ter inevitáveis consequências, os homens conseguem suportá-las, apesar do angustiado «Ah, Cithaeron!» (74) que sai das suas bocas. Além disso, há úteis expressões que se encontram aqui e ali nos escritores de tragédias; por exemplo, Se o Céu não cuida de mim e dos meus filhos, (75) Deve haver uma boa razão para isso, ou ainda, Não atormenteis o espírito por causa do curso das coisas ou, Como as espigas de milho, as vidas dos homens são ceifadas e muitas outras deste tipo. Depois da tragédia veio a Comédia Antiga, (76) com uma língua implacável, como a de um mestre-escola, mas ministrando, com a sua grande franqueza (que até certo ponto foi adoptada por Diógenes com a mesma finalidade) uma censura geral ao orgulho. Mas, repara, mais tarde, nos objectivos da Comédia Média (77) ; e finalmente na Comédia Nova (78), que pouco depois havia de entrar em decadência transformando-se no mero artificialismo do Mimo. (79) Certamente que mesmo estes escritores tardios têm algumas coisas boas a dizer, como sabemos; mas a que é que monta todo o alcance e intenção de toda a sua produção poética e teatral?
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Manifestamente, nenhuma condição de vida podia ser tão adequada à prática da filosofia como esta em que o acaso te encontra hoje!
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Um ramo arrancado de outro ramo adjacente fica necessariamente arrancado da árvore. Da mesma maneira, um homem que foi separado dos seus semelhantes fica também separado de toda a comunidade. Mas enquanto que o ramo é podado por outras mãos, o homem, com os seus sentimentos de ódio e aversão, provoca o seu próprio afastamento do seu semelhante, e não vê que ao mesmo tempo cortou a sua relação com toda a estrutura da sociedade. Todavia, está no nosso poder, graças a Zeus, o autor de toda a fraternidade, recuar e unirmo-nos de novo com o nosso semelhante, desempenhando assim, uma vez mais, o nosso papel na integração do todo. Mas se estes actos de secessão se repetirem com frequência dificultam ao não-conformista a consecução desta reunião e restituição. Um ramo que foi parceiro do crescimento da árvore desde o início e que nunca deixou de partilhar a sua vida é uma coisa diferente de um que nunca voltou a enxertar-se depois de arrancado. Como dizem os jardineiros, é da mesma árvore, mas não da mesma mente.
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Embora os homens possam impedir-te de seguir os caminhos da razão, nunca conseguirão desviar-te dos actos sãos; mas assegura-te de que eles também não consigam destruir os teus sentimentos de caridade em relação a eles. Deves defender ambas as posições de igual maneira: firmeza na decisão e acção e, ao mesmo tempo, gentileza para com aqueles que tentam criar-te obstáculos ou molestar-te de qualquer outra maneira. Ceder à irritação seria fraqueza igual à do abandono do teu curso de acção e ser forçado à rendição. Em ambos os casos o posto do dever fica deserto; num, por falta de coragem, e no outro pelo afastamento de homens que são teus irmãos e amigos naturais.
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Qualquer forma da natureza supera a arte, porque toda a arte não é mais do que a imitação da natureza. Assim sendo, aquela Natureza suprema que é mais perfeita e abrangente do que qualquer outra não pode deixar de ser preeminente no ofício do artista. E mais ainda, só com o olhar em qualquer coisa superior a arte produz as suas obras inferiores; e isto é também o que a Natureza faz. Aqui encontramos então as origens da justiça; porque todas as outras virtudes dependem disto. Nunca podemos conseguir verdadeira justiça enquanto nos dedicamos a coisas de menor valor, e nos contentamos em continuar crédulos, obstinados e inconstantes.
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Talvez as coisas que tu te atormentas e exasperas para perseguir ou evitar não venham até ti, mas que sejas tu a ir ter com elas. Refreia os juízos que fazes delas; elas pela sua parte não se moverão, e assim tu não serás visto a persegui-las ou a evitá-las.
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A alma atinge a sua forma perfeitamente redonda (80) quando não se está a esforçar por qualquer coisa; nem a recolher-se em si própria; nem a disseminar- se em bocados, nem ainda a mergulhar em colapso; mas banhada numa radiação que lhe revele o mundo e ela própria nas suas verdadeiras cores.
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Se alguém escarnece de mim, isso só a ele dirá respeito; a mim competirá assegurar que nada do que faça ou diga seja motivo de escárnio. Talvez ele me odeie? Uma vez mais, problema dele. O meu, é manter relações de amizade e caridade com todos os homens, pronto a mostrar a esse mesmo homem onde é que ele errou e fazê-lo sem recriminações ou manifesta indulgência, mas — supondo que as suas palavras não foram mero palavreado — franca e generosamente como o Phocion de outrora. (81) É este o espírito certo que um homem deve ter em si; nunca deve ser visto pelos deuses no acto de alimentar um rancor ou de fazer dos seus sofrimentos uma ofensa. Que mal te pode atingir se seguires as leis do teu ser e aceitares momento a momento tudo o que a grande Natureza considera oportuno, como um verdadeiro homem que se esforça por desenvolver por todos os meios o bem estar do mundo?
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Eles desprezam-se e todavia adulam-se; cada um deles era capaz de passar por cima do outro, e contudo aninha-se e abaixa-se diante dele.
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Como a coisa soa insincera e vazia quando alguém diz «Estou decidido a ser perfeitamente franco contigo.» Ora, homem, o que é isso? A coisa não precisa de prólogo; ela revela-se por si própria. Devia estar escrita na testa, devia estar espelhada no tom da voz, devia brilhar-te nos olhos, como um simples olhar da pessoa amada diz tudo ao amante. A sinceridade e a bondade devem ter o seu próprio odor, para que quem com isso depare fique logo a saber, mesmo contra sua vontade. Uma franqueza simulada é um punhal escondido. A amizade fingida do lobo é a mais desprezível de todas e deve ser completamente repudiada. Um homem verdadeiramente bom e sincero e bem intencionado revela-o na expressão, e ninguém poderá deixar de o ver.
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A vida autêntica pode ser levada à perfeição por qualquer alma capaz de mostrar indiferença em relação às coisas que são, elas próprias, indiferentes. Isto pode ser conseguido dando cuidadosa atenção aos elementos que as compõem, e depois a elas próprias; e tendo também sempre em mente que nenhuma delas é responsável pela opinião que delas formamos. Elas não vêm ter connosco, ficam estacionárias; nós é que fazemos juízos acerca delas e depois as inscrevemos, por assim dizer, nos nossos espíritos; isto apesar do facto de estar na nossa mão não inscrever absolutamente nada, ou pelo menos, apagar prontamente qualquer coisa que se tenha inscrito inadvertidamente. Além disso, deves lembrar-te de que não haverá muito mais tempo para cuidar destes assuntos, e que a nossa corrida em breve acabará. Não te aflijas, pois, se as coisas não correrem sempre ao teu gosto. Desde que estejam em consonância com a natureza, contenta-te com elas, e não cries dificuldades; se não estiverem, descobre então o que é que a tua própria natureza ordena e faz os possíveis por cumpri-lo; porque a procura do nosso próprio bem está sempre justificada.
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Pensa na origem de cada coisa, no que a compõe e naquilo em que se vai transformar, e naquilo que ela será depois da transformação, e que não ficará minimamente pior.
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Quando ofendido. Conselho Primeiro. Recorda a íntima relação entre mim e o resto da humanidade. Isto prevalece porque todos nós nascemos uns para os outros; ou, para apresentar outra razão, porque nasci para ser o seu guia, tal como o carneiro não castrado nasceu para guiar o rebanho, ou o touro, a manada; ou ainda — voltando aos primeiros princípios — porque o mundo, se não for um conjunto de simples átomos, tem de ser governado pela Natureza, e, nesse caso, as espécies inferiores da criação têm de existir para as superiores, e as superiores têm de existir umas para as outras. Um Segundo. Pensa nos seus caracteres, à mesa e na cama, e por aí adiante; e em particular nas pressões que as suas maneiras de pensar exercem sobre eles, e na consequente auto-confiança com que eles agem. Um Terceiro. Se o que eles estão a fazer está correcto, não tens que te sentir magoado; se não está, só pode ter sido sem intenção e inconscientemente. Porque, precisamente como «nenhuma alma jamais viola a verdade voluntariamente», também ninguém nega voluntariamente a outrem o tratamento a que ele tem direito; observa a sua indignação quando alguém os acusa de injustiça, ingratidão, mesquinhez ou qualquer outro mau comportamento para com os seus semelhantes. Um Quarto. Tu próprio magoas de várias maneiras, e não és diferente de todos os outros. Podes evitar certos erros, mas a tendência está lá, mesmo que a cobardia ou a preocupação pela tua reputação ou outro motivo ignóbil te inibam de imitar as suas más acções. Um Quinto. Tu não tens a certeza de que eles estejam a proceder mal, porque os motivos dos actos dos homens nem sempre são o que parecem. Há geralmente muito a aprender antes de se formular com segurança um juízo sobre o comportamento de outrem. Um Sexto. Diz a ti mesmo, quando te sentires exasperado ou sem paciência nenhuma, que esta vida mortal não dura mais do que um momento; não falta muito para que todos e cada um de nós sejamos postos em repouso. Um Sétimo. Não são os actos destes homens — que apenas dizem respeito à sua razão directora — que são a fonte dos nossos aborrecimentos, mas a cor que nós próprios lhes atribuímos. Elimina isto, abandona todos os pensamentos sobre os seus ódios, e a cólera desaparecerá imediatamente. Como proceder a tal apagamento? Reflectindo que pelo menos tu ficas ileso. Porque se não fosse verdade que só a desgraça moral é má, tu próprio serias culpado de inúmeros procedimentos condenáveis — roubo e todos os outros tipos de vilanias. (82) Um Oitavo. A nossa cólera e irritação são mais prejudiciais a nós próprios do que as coisas que as provocam. Um Nono. A bondade é irresistível, se genuína e sem falsos sorrisos ou duplicidade. A mais rematada insolência não pode fazer nada se continuares persistentemente bom para com quem te ofendeu; admoesta-o gentilmente quando se oferecer a oportunidade, e no momento em que ele se prepare para dar livre curso à maldade chama-o calmamente à razão dizendo «Não, meu filho, não foi para isto que fomos feitos. Eu não fico magoado; tu estás a magoar- te a ti mesmo.» Explica-lhe cortesmente e em termos gerais a razão por que isto é assim, e como nem as abelhas e outros animais gregários se comportam como ele — mas não o faças com sarcasmo ou espírito recriminatório, antes com real afecto e sem rancor; não como um mestre-escola, nem para a admiração dos circunstantes, mas, mesmo na presença de outras pessoas, como se tu e ele estivessem a sós. Guarda estes nove conselhos na memória, como outras tantas dádivas das Musas; e, enquanto ainda estás vivo, começa finalmente a ser um homem. Todavia, ao procurares defender-te contra a cólera em relação aos outros, não descures evitar a bajulação. Ambas são contra o bem estar comum e ambas conduzem à maldade. Em momento de cólera, tem sempre presente a ideia de que a irritação não é sinal de virilidade e que há mais virilidade e também mais humanidade natural naquele que se mostra gentil e sereno; naquele que dá mostras de força e coragem e virilidade, e não no seu semelhante encolerizado e insatisfeito. A cólera é tanto um sinal de fraqueza como a dor; em ambos os casos, os homens recebem um ferimento e submetem-se à derrota. Em aditamento, toma isto, se quiseres, como uma décima dádiva; desta vez, do próprio guia (83) das Musas. Esperar que os homens maus nunca façam coisas más é insensato; é esperar o impossível. Tolerar as suas ofensas aos outros, e não contar com nenhumas a ti próprio é irracional e arbitrário.
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Há quatro desvios do timoneiro da tua alma contra os quais te deves constantemente precaver e suprimi-los quando detectados. Diz-lhos um a um, «Isto é um pensamento que não é necessário», «Isto iria minar a camaradagem», «Isto não é a voz do meu verdadeiro eu» (porque exprimir qualquer coisa que não os teus verdadeiros sentimentos é, de entre todas as coisas a mais inoportuna e, em quarto lugar, quando estiveres inclinado para a auto-censura, «Isto mostraria que o elemento divino em mim foi derrotado e forçado a ajoelhar pela carne ignóbil e mortal, com as suas concepções grosseiras.»
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Embora a propensão natural de quaisquer partículas etéreas e ígneas da tua composição seja a de se elevarem, contudo, em obediência às ordens do Todo, elas são reprimidas dentro do corpo que compõem. Por outro lado, todas as partículas terrenas e fluidas em ti, apesar da sua tendência para se afundarem, são mantidas à superfície e numa posição que lhes não é natural. Assim, mesmo estas partículas obedecem às leis do Todo; quando destinadas a uma posição elas mantêm-se forçosamente aí até que o sinal para a dissolução as chame de novo. Então, não é penoso que só a única parte de ti que não é obediente e que se agasta com a sua própria esfera de acção seja a parte pensante? Nada de violento lhe é exigido, nada mais do que estar em consonância com a sua própria natureza; contudo, não se quer submeter e irrompe na direcção contrária — porque o que são todos aqueles seus movimentos no sentido da injustiça, da intemperança, da cólera, da dor ou do medo senão divergências voluntárias da natureza? Quando o timoneiro da alma revela ressentimento por qualquer coisa que lhe aconteça, nesse momento está a abandonar o seu posto; porque ele não foi menos feito para a santidade e veneração dos deuses do que para a justiça, e aquelas, sendo parte da ideia de camaradagem do universo, têm de vir antes da justiça.
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Se a vida de um homem não tem um objectivo consistente e uniforme, não pode ele próprio ser consistente e uniforme. Contudo, esta afirmação só por si não chega, a menos que lhe acrescentemos qualquer coisa sobre qual deve ser o objectivo. Ora, não é sobre toda a série de coisas geralmente consideradas boas que encontramos a uniformidade de opinião para existir, mas apenas sobre coisas de um determinado tipo: nomeadamente aquelas que afectam o bem estar da sociedade. De acordo com isto, o objectivo que nos devemos propor deve ser o do bem dos nossos semelhantes e da comunidade. Quem assim orientar todos os seus esforços para este fim estará a transmitir uma uniformidade a todos os seus actos, e assim conseguirá a consistência consigo mesmo.
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Lembra-te do encontro do rato do campo com o rato da cidade (84) e da perturbação e agitação em que ele ficou.
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O nome de Sócrates para o homem da rua era um “papão” para assustar as crianças.
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Os espartanos costumavam sentar os seus convidados à sombra em todos os espectáculos públicos, e eles próprios sentavam-se onde podiam.
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Sócrates apresentou como razão para declinar um convite para a corte de Perdiccas o seguinte, «Não quero ir para a cova com ignomínia», sugerindo que não aceitaria favor nenhum que não pudesse retribuir.
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As escrituras dos Efesos contêm uma exortação à prática frequente da rememoração de exemplos passados de uma vida virtuosa.
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Os Pitagoristas impõem a contemplação dos céus todas as manhãs para relembrarem a maneira invariável e pontual com que aqueles corpos desempenham as suas tarefas, e também para lhes recordar a disciplina, a pureza e a crua simplicidade — porque nenhum véu encobre uma estrela.
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Pensa em Sócrates envolto numa pele de ovelha depois (85) de Xantipe lhe ter levado o manto, e no que ele disse aos amigos quando eles recuaram, desconcertados, ao vê-lo assim vestido.
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Na leitura e na escrita, não se podem estabelecer regras sem primeiro aprender a respeitá-las. E na vida ainda menos.
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«Servil por natureza, a razão não é para ti» (86)
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«… e depois riu-se o coração dentro de mim.» (87)
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«A virtude não deixarão eles de violar e de caluniar com amargos impropérios.» (88)
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«O tolo procura figos no inverno; assim é quem procura ter filhos depois de passar o seu tempo.» (89)
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«Enquanto beijas o teu filho», disse uma vez Epicteto, «murmura baixinho, amanhã pode estar morto». «Palavras de mau agoiro», disseram-lhe. «De modo nenhum», disse ele, «apenas significam um acto da natureza. Será mau agoiro falar da colheita do milho maduro?» (90)
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«Uva verde, cacho maduro, passa de uva; uma mudança a cada passo, não para aquilo que não é, mas para aquilo que ainda virá a ser». (91)
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«O ladrão da tua livre vontade», escreve Epicteto, «não existe». (92)
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Ele diz também que devemos desenvolver um sistema próprio para usar do sancionamento. Em relação aos impulsos, devemos ter o cuidado de os manter sempre sujeitos a alteração, livres dos interesses próprios, e devidamente proporcionais aos méritos do caso. Os desejos devem também ser reprimidos ao máximo, e as aversões limitadas aos assuntos que controlamos.
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«Não há aqui uma questão de trivialidade», diz ele, «mas uma simples questão de sanidade ou insanidade».
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«O que é que desejais ter?» perguntava Sócrates. «Almas de homens razoáveis ou imoderados?» «Razoáveis.» «De homens razoáveis sãos ou doentes?» «Sãos.» «Então por que não ides procurá-las?» «Porque já as temos.» «Nesse caso, porquê todo esse esforço e toda essa luta?»
LIVRO 12
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Todas as bênçãos que, daqui para a frente, procurares obter com as tuas preces podiam ser tuas hoje, se não as negasses a ti mesmo. Bastar-te-á acabar completamente com o passado, entregar o futuro à providência e procurar simplesmente orientar o presente no sentido da santidade e da justiça: santidade, com uma afectuosa aceitação do quinhão que te foi atribuído, uma vez que a Natureza o produziu para ti, e a ti para ele: justiça, nas palavras, com uma verdade franca e directa, e nos actos, com o respeito pela lei e pelos direitos dos outros. Também não te permitas criar qualquer obstáculo à maldade, aos equívocos ou às calúnias dos outros, nem às sensações que esta estrutura de carne possa experimentar; a parte atormentada olhará por si própria. A tua hora aproxima-se; basta esqueceres tudo o resto e dares atenção apenas ao timoneiro da tua alma e à divina centelha dentro de ti — basta substituíres o medo de um dia teres de morrer por um medo de até a começares em consonância com os verdadeiros princípios da natureza — para poderes ainda tornar-te um homem, digno do universo que te criou, em vez de um estranho na sua própria terra, confundido com os acontecimentos de cada dia, como se se tratasse de maravilhas não procuradas, e sempre dependente deste ou do seguinte.
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Deus vê o interior do espírito dos homens despido de todos os invólucros, cascas ou impurezas materiais. Agindo apenas através do pensamento, ele estabelece contacto com aquilo que neles é uma emanação de si próprio. Industria-te para fazer o mesmo e assim evitarás muitas distracções; porque quem é que, olhando mais para além deste invólucro de carne, alguma vez será molestado por visões de roupas, casa ou fama ou qualquer dos outros hábitos e cenários da vida?
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Tu és formado de três partes: corpo, respiração e espírito. Os dois primeiros apenas te pertencem no sentido em que tu és responsável por cuidares deles; só o último é verdadeiramente teu. Portanto, se afastares deste teu eu real — isto é, do teu entendimento — tudo o que os outros fazem ou dizem e tudo o que tu próprio fizeste ou disseste no passado, bem como toda a ansiedade sobre o futuro, e tudo o que afecta o corpo ou a respiração, sua parceira, e que está fora do teu controle, bem como tudo o que rodopia à tua volta no turbilhão das circunstâncias exteriores, para que os poderes do teu espírito, assim imaculado e afastado de tudo o que o destino pode fazer, possa viver a sua vida em independência, fazendo o que é justo, aceitando o que acontece, e falando a verdade — se, repito, afastares desta tua faculdade-mestra todos estes acessórios pegajosos e tudo aquilo que reside nos anos vindouros ou passados, ensinando-te a ti mesmo a tornares-te naquilo que Empedocles chama uma «esfera totalmente redonda, na sua própria esfericidade se alegrando» e a preocupares-te apenas com a vida que vives no momento presente, então, até chegar a tua hora serás capaz de passar o resto dos teus dias liberto de toda a ansiedade, em bondade e em consonância com a divindade dentro de ti.
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Fico muitas vezes admirado ao verificar que, embora cada homem se ame a si próprio acima de tudo, a opinião que ele tem de si mesmo é menos lisonjeira do que a que tem dos outros. Certamente que se um deus ou um conselheiro sábio estivesse a seu lado e lhe mandasse que não guardasse qualquer pensamento ou intenção no seu coração sem a tornar imediatamente pública, ele não conseguiria aguentá-lo mais do que um dia. Tal é a importância que damos ao juízo que o nosso vizinho faz de nós; maior do que a que damos ao que fazemos de nós próprios.
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Poderão os deuses, que tão bem e tão benevolentemente conceberam tudo o resto, ter descurado o facto de que até os homens virtuosos, homens na mais íntima consonância com o divino e que vivem em íntima união com ele pelas suas boas acções e devoção, não conheçam um renascimento depois da morte, mas estejam condenados à completa extinção? Todavia, se é este, de facto, o seu destino, podem ficar certos de que se tivesse havido necessidade de diferente plano, isso assim teria sido organizado; se isso estivesse de acordo com a Natureza, a Natureza tê-lo-ia realizado assim. Portanto, não sendo assim (se na verdade não for assim), podes confiar em absoluto que não devia ser assim. Compreendes certamente que ao levantar questões inúteis como esta estás a inculpar a divindade? Porque, será que discutiríamos o assunto com os deuses se eles não fossem superiormente bons e justos? E se o são, como é que eles alguma vez permitiriam que alguma coisa fosse injusta ou insensatamente descurada nas suas determinações para o universo?
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Pratica, mesmo que não tenhas perspectivas de sucesso. A mão esquerda, incapaz para outras coisas por falta de prática, sabe segurar as rédeas com mais firmeza do que a direita, porque disso, tem ela prática.
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Medita sobre o que deves ser em corpo e alma quando a morte tomar conta de ti; medita sobre a brevidade da vida e sobre os incomensuráveis abismos de eternidade por detrás e antes dela, e sobre a fragilidade de tudo o que é matéria.
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Olha o mais íntimo das causas das coisas, despidas das suas cascas; repara nas intenções que estão por detrás dos actos; estuda as essências da dor, do prazer, da morte e da glória; observa como a intranquilidade do homem é toda de sua própria criação, e como os problemas nunca vêm pela mão dos outros, mas, como tudo o resto, são criações da nossa própria maneira de pensar.
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Na gestão dos teus princípios, segue o exemplo do pugilista e não o do espadachim. Um pousa a espada e depois tem de a apanhar outra vez; o outro nunca fica sem o punho e apenas tem de o cerrar.
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Vê de que é que as coisas são feitas; decompõe-nas nas suas matéria, forma e finalidade.
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Que grandes são os privilégios atribuídos ao homem — não fazer nada senão o que Deus sanciona, e aceitar tudo aquilo que Deus lhe destinou!
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Não se culpem os deuses pela ordem das coisas, uma vez que nada de errado pode ser feito por eles, voluntariamente ou não; nem os homens, cujos erros não acontecem por sua vontade. Abstém-te, pois, de todos os pensamentos de culpa.
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Que ridículo e que estranho é o espanto por qualquer coisa que aconteça na vida!
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Ou há um destino inexorável e uma lei inviolável, ou uma providência que pode ser misericordiosa, ou então há um caos desgovernado e sem sentido. Se há um destino irresistível, porquê tentar lutar contra ele? Se há uma providência disposta à misericórdia, faz os possíveis por merecer o seu auxílio. Se há um caos sem direcção, dá graças por, no meio de tais mares tempestuosos, teres, dentro de ti, um espírito ao leme. Se as águas te engolirem, que engulam carne, respiração e tudo o mais, porque nunca conseguirão fazer naufragar o espírito.
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Se a chama da lanterna brilha com fulgor até ser extinta, será que a verdade, a sabedoria e a justiça morrem dentro de ti antes de tu próprio te extinguires?
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Se ficares com a impressão de que alguém agiu mal, pensa «Que certeza tenho eu de que está mal?» Mais ainda, mesmo que esteja mal, não se terá ele já censurado por isso, tanto como se as unhas lhe tivessem arranhado visivelmente a cara? Desejar que um patife nunca faça mal é como desejar que uma figueira nunca dê sumo amargo nos seus frutos, que os bebés nunca chorem, que os cavalos nunca relinchem ou que qualquer outra das coisas inevitáveis da vida nunca aconteça. Como é que, digam-me, poderia ele agir de outra maneira, com o carácter que tem? Se achas isto tão incómodo, corrige-o.
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Se não é a coisa certa a fazer, nunca o faças; se não é verdade, nunca o digas. Tem mão nos teus impulsos.
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Olha sempre uma coisa no seu todo. Descobre o que é que causa a sua impressão em ti, depois, abre-a e divide-a nas suas causa, matéria, finalidade e duração.
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Antes que seja tarde demais, tenta fazer com que tenhas dentro de ti uma coisa mais elevada e mais divina do que meros instintos que despertam as emoções e te contorcem como uma marioneta. Qual deles está agora a encobrir o meu entendimento? O medo, a inveja, a luxúria, ou outro qualquer?
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Primeiro, evita todos os actos casuais ou sem sentido; e, segundo, faz com que todos os actos almejem somente o bem comum.
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Em breve, não te esqueças, tu próprio terás de te tornar uma coisa errante do nada; em breve, tudo o que agora tens diante dos olhos, juntamente com todos aqueles em que agora reside o sopro da vida, terão de deixar de ser. Porque todas as coisas nascem para mudar e morrer, para que outras, por sua vez, possam vir a existir.
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Todas as coisas não são mais do que o conceito que delas fazes, e esse conceito está dentro de ti. Rejeita-o quando quiseres, e logo passarás o cabo e tudo ficará tranquilo; um mar calmo, um porto sem marés.
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Quando uma operação, não importa de que tipo, chega ao fim no tempo certo, a paragem não lhe faz mal e o próprio agente não piora por ter descontinuado a acção. Assim, se a própria vida — que não é senão a soma de todas as nossas operações — também acaba quando chega a hora, não fica molestada pela sua simples cessação, e nem é afectado de modo desfavorável quem põe fim a toda a série das suas operações. Mas a hora própria e o prazo são fixados pela Natureza: se não pela própria natureza de um homem — como, por exemplo, pela idade avançada — então, de qualquer maneira, pela grande Natureza, ela própria, por cuja contínua renovação de todas as suas partes o universo continua eternamente jovem e vigoroso. Tudo aquilo que sirva os fins do Todo se mantém belo e florescente. Segue-se, portanto, que o fim da vida não pode ser mau para um homem — porque, sendo uma coisa que está fora do seu controle e inocente de quaisquer interesses próprios, não há nada nele que o avilte — não, é até um bem, tanto mais que para o universo é uma coisa oportuna e vantajosa e que está em harmonia com tudo o resto. Assim, seguindo o caminho de Deus, e em união com ele no pensamento, o homem é levado na continuação da sua caminhada pela divina mão.
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Há três conselhos a ter em atenção. O primeiro diz respeito às acções: estas nunca devem ser realizadas ao acaso, nem de maneira não sancionada pela justiça. Tens de te lembrar de que todos os acontecimentos exteriores são o resultado ou do acaso ou da providência; e tu não podes censurar o acaso ou impugnar a providência. Em segundo lugar, pensa bem no que todas as coisas são, desde a semente original até ao nascimento da alma, e do nascimento da alma até à sua rendição final; naquilo de que a coisa é composta, e naquilo em que se irá dissolver. Terceiro, imagina-te de repente transportado para as nuvens e a olhar para baixo para todo o panorama das actividades humanas: como a cena não haveria provocar o teu desprezo, agora que conseguias distinguir a enorme quantidade de seres etéreos e celestiais que se apinham à sua volta. Além disso, reflecte sobre o facto que, não importa quantas vezes estivesses nessa posição, terias as mesmas vistas, em toda a sua monotonia e transitoriedade. Contudo, estas são as coisas de que tanto nos gabamos!
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Uma vez rejeitada a visão que tens, estás fora de perigo. Então, quem é que está a impedir essa rejeição?
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Quando te permites experimentar ressentimento por uma coisa, esqueces-te de que nada pode acontecer que não obedeça à Natureza; que qualquer conduta errada no assunto não tem nada a ver contigo; e mais, que esta é a única forma como as coisas sempre aconteceram, sempre acontecerão e sempre realmente acontecem. Esqueces também, a intimidade da fraternidade do homem com os da sua espécie; uma fraternidade não de sangue ou de semente humana, mas de uma comum inteligência; e que esta inteligência em todos os homens é Deus, uma emanação da divindade. Esqueces que nada é verdadeiramente do homem, porque mesmo o seu filho, o seu corpo, a sua própria alma, todos vêm de Deus; e também que todas as coisas dependem da maneira de pensar; e também que o momento que passa é tudo o que um homem pode viver ou perder.
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Pensa na vida dos homens que não puseram limites às suas paixões, nos homens que atingiram o cume da glória, da desgraça, do ódio ou qualquer outro dos cumes do acaso; e depois pergunta, «Onde estão eles agora?» Vapor, cinzas, uma história; nem sequer uma história, porventura. Contempla os numerosos exemplos: Fábio Catulo nas suas terras, Lúcio Lupo nos seus jardins, Sertínio em Baiae, Tibério em Cápri, Véliko Rufo; qualquer exemplo daquilo em que o orgulho pode pôr o seu coração. Que ignóbeis são os seus esforços! Quanto mais adequados a um filósofo se almejassem a justiça, a temperança e o preito aos deuses — mas sempre com simplicidade, porque o orgulho que incha por debaixo de uma capa de humildade é a mais intolerável de todas as coisas.
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Para aqueles que continuam a dizer «Onde é que tu já alguma vez viste os deuses, e como é que podes ter tanta certeza da sua existência para os adorares dessa maneira?» a minha resposta é «Em primeiro lugar, eles são perfeitamente visíveis. (93) Em segundo lugar, também nunca vi a minha alma, e, no entanto, venero-a. O mesmo se passa com os deuses; é a experiência que prova o seu poder em cada dia, e portanto estou contente por eles existirem e venero-os.»
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Para uma vida sã e segura, faz com frequência um exame intelectual completo ás coisas e descobre-lhes a essência, a matéria e a causa; põe todo o teu empenho em fazer o que é justo, e em falar verdade; e quanto ao resto, toma contacto com a alegria da vida, amontoando boas acções umas sobre as outras, até que não se veja fenda ou brecha entre elas.
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A luz do sol é una, mesmo quando separada por paredes, montanhas ou um monte de outras coisas. A substância é una, mesmo quando distribuída por entre inúmeros corpos vivos de tipos diferentes, cada um com as suas qualidades especiais. A alma é una, mesmo quando distribuída por incontáveis naturezas de todas as espécies em incontáveis proporções diferentes. Mesmo a alma dotada da qualidade adicional do pensamento, embora aparentemente divisível, é da mesma maneira una. Porque as outras partes de todos estes organismos — a respiração, por exemplo, são coisas materiais, incapazes de sensações, que não têm afinidades entre elas e apenas se mantêm juntas pela força unificadora da gravidade. Mas o pensamento, pela sua própria natureza, tende espontaneamente para qualquer coisa da sua espécie e mistura-se com ela; para que o instinto da unidade não seja frustrado.
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Por que é que anseias pelo prolongamento dos dias? Para experimentares sensações e desejos, ou o aumento ou a cessação do crescimento? Para usares o poder da fala ou do pensamento? Qualquer destas coisas parece-te realmente digna de cobiça? Então, se pensas que elas estão abaixo dos teus interesses, continua a perseguir esforçadamente o fim de todos os fins — que é seguir a razão e Deus. Mas fazer isto, lembra-te, é incompatível com quaisquer ressentimentos por a morte te ir roubar aos outros.
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Que pequena fracção de todo o tempo incomensurável e infinito nos é destinado a cada um; um instante, e desaparece na eternidade. Que ínfima, também, é a tua porção de toda a substância do mundo; que insignificante o teu quinhão da alma de todo o mundo; em que ponto miniatural de toda a terra tu rastejas. Ao pensares nestas coisas, convence-te de que nada tem qualquer importância salvo o fazer aquilo que a tua natureza te ordena e suportar aquilo que a Natureza do mundo te envia.
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Como é que o timoneiro da minha alma se está a desempenhar da sua tarefa? Porque é aí que toda a questão reside. Tudo o mais, dentro ou fora do meu controle, são ossos mortos e vapor.
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Não há nada que mais encorage o desprezo pela morte do que a reflexão de que até homens que consideraram o prazer como um bem e a dor como um mal, conseguiram desprezá-la.
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Quando um homem encontra o seu único bem naquilo que a hora marcada lhe traz; quando ele cuida não de que os seus actos sejam muitos ou poucos, mas antes de que estejam em estrita consonância com a razão; quando não lhe importe nada se o seu vislumbre deste mundo é longo ou fugaz — nem a própria morte poderá aterrorizá-lo.
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Homem, a cidadania desta cidade-mundo já foi tua. Durante cinco ou cinquenta anos, o que é que isso representa para ti? Qualquer que seja a lei que a cidade decreta, ela é justa para todos por igual. Donde, então, a tua aflição? Não foste exilado da cidade por um qualquer juiz injusto ou tirânico, mas pela mesma Natureza que te trouxe para ela; tal como quando um actor é despedido pelo empresário que o contratou. «Mas eu não representei mais do que três dos cinco actos». Precisamente; no drama da tua vida, três actos são toda a peça. O seu ponto de perfeição é determinado por aquele que primeiro sancionou a tua criação, e hoje sanciona a tua dissolução. Nenhuma destas decisões estava dentro de ti. Continua pois o teu caminho de cara alegre, sob o sorriso daquele que te manda partir.
Notas
1 As cores dos aurigários no Circo. O entusiasmo dos romanos por estas corridas não tinha limites; os vencedores ganhavam grandes fortunas e tornavam-se ídolos populares.
2 Num tipo de combate de gladiadiores (o “Trácio”) os contendores eram armados com escudos redondos leves; noutro (o “Samnita”) eles traziam escudos rectangulares pesados.
3 Pintor e filósofo a quem Marco, ainda um rapaz de onze anos, ficou a dever os primeiros contactos com o estoicismo. De Bacchio, Tandasis ou Marciano nada se sabe.
4 Q. Júnio Rústico, um professor estóico que foi tutor de leis e amigo de Marco.
5 Professor de filosofia que veio da Calcedónia para Roma. Quando Marco o chamou pela primeira vez ao palácio, dizem que ele respondeu, «O mestre não deve ir ter com o aluno, mas o aluno com o mestre.»
6 Oriundo de Caerónia, na Boécia, e neto de Plutarco. Um dos primeiros professores de filosofia de Marco.
7 Reputado erudito grego, conhecido por “o Gramático”
8 M. Cornélio Fronto, famoso advogado e professor que dava lições de retórica, e reconhecidamente apenas inferior a Cícero, como orador. Foi encarregado da educação dos futuros co-imperadores Marco Aurélio e Lúcio Vero. A publicação da correspondência de Fronto que contém muitas das cartas que lhes escreveu, bem como as suas respostas, lançou muita luz sobre o carácter e os hábitos de Marco, e também revela o afecto que os seus pupilos reais dedicavam ao seu tutor.
9 Secretário do imperador
10 Cinna Catulo era outro dos professores que davam lições de filosofia.
11 Marco não tinha qualquer irmão. A palavra pode ser uma alusão jocosa a Cláudio Severo (cujo filho casou com uma das filhas de Marco), uma vez que Marco também se chamara originalmente Severo, embora tivesse mais tarde eliminado o nome. Trata-se mais provavelmente de erro do texto. Muitos editores preferem o nome Vero, isto é, o Lúcio Vero que, como o próprio Marco, for adoptado pelo Imperador António Pio como seu filho; mas o retrato lisongeiro aqui traçado não corresponde de modo nenhum ao que se conhece do carácter de Vero (ver nota 14)
12 Cláudio Máximo, filósofo estóico especialmente admirado por Marco. A sua coragem na doença é recordada com gratidão (I,16) e a sua morte, bem como a da mulher, Secunda, lembradas com pena (VIII,25).
13 Não o pai natural, Annio Vero, mas o Imperador António Pio, o pai adoptivo.
14 Lúcio Ceinóio Cómodo, depois conhecido como Lúcio Vero. Foi adoptado por António Pio juntamente com Marco, com quem ele foi co-imperador e com cuja filha, Lucila, casou. Homem, a princípio corajoso e capaz, Vero veio depois a fraquejar, tornando-se um amante da boa vida. Como comandante dos exércitos romanos na guerra Partiana, revelou-se um indolente e um incapaz, e só se salvou da desgraça devido à destreza dos seus generais. Quando voltou do Oriente com as suas legiões, estas trouxeram consigo as sementes da peste que se propagou, com terríveis efeitos, por todo o Império. Vero morreu em 169 — segundo alguns, ás mãos de um envenenador.
15 Aparentemente uma citação, cuja fonte não foi descoberta.
16 Isto é, à decisão dos outros em aprovar ou criticar as tuas acções.
17 Hipócrates (460-355 a.C.) era oriundo da ilha de Cos e o mais famoso médico da Antiguidade. Os seus numerosos tratados constituíram os fundamentos de toda a ciência médica do mundo clássico. Parece não haver razão para pôr em dúvida a sua autoria do “Juramento Hipocrático”; e também lhe é atribuída a autoria do ditado, «A vida é curta, a arte longa.»
18 Heráclito (540-475 a.C.), filósofo jónico, ensinava que a essência do Ser é o Devir: isto é, um movimento incessante de mudança pelo qual um aspecto de uma coisa está sempre a levar a uma outra. O tipo deste movimento perpétuo, e a forma primitiva de toda a matéria, é o fogo; e o processo elemental do universo é a passagem do fogo a água e terra e de novo a fogo. «Todas as coisas estão em fluxo» e «Não se pode mergulhar duas vezes na mesma água de um rio» eram dois dos conhecidos ditados em que ele exprimia a sua doutrina; e Marco refere-se a outros em IV,46. Muito do posterior sistema estóico da física baseava-se nas teorias de Heráclito.
19 Demócrito, contemporâneo de Hipócrates, afirmava que o universo era formado de combinações infinitamente variadas de um número infinito de átomos, crença em que foi depois seguido por Epicuro e a sua escola. Ao contrário do sombrio Heráclito, “o filósofo choroso”, a sua boa disposição trouxe-lhe a alcunha de “o filósofo risonho”. Esta referência de Marco é o nosso único testemunho para esta versão da sua morte.
20 É uma referência ao poeta Mélito, ao curtidor Ânito e ao orador Lycon. Eles fizeram a Sócrates a acusação pela qual ele foi condenado à morte. Pouco depois da sua execução, os Atenienses arrependeram-se da sua injustiça, apedrejaram Mélito até à morte, e baniram Ânio e Lycon.
21 Phalaris, governador de Agrigento, na Sicília, no século VI a. C., ganhou uma reputação proverbial pela sua crueldade desumana. Diz-se que queimou os seus prisioneiros vivos dentro de um touro de bronze, sendo a primeira vítima o seu inventor, Périlo. As apócrifas “Epístolas de Phalaris” são hoje lembradas devido principalmente ao erudito inglês Richard Bentley, que provou, na “Dissertação Imortal” (Porton), que lhe deu fama, que elas eram falsificações.
22 A própria vida não é senão aquilo que tu acreditas que é. Hamlet (Acto II, cena 2) diz: «There’s nothing either good or bad, but thinking makes it so» (Não há coisa alguma que seja, em si própria, boa ou má, o pensamento é que a faz assim). Marco exprime aqui este pensamento mais sucintamente em duas palavras gregas que significam literalmente «[a] vida [é] opinião».
23 Cecrops foi o lendário fundador de Atenas, mas a fonte desta citação é desconhecida. Na nobre expressão de Marco para o universo, «Querida Cidade de Deus», encontrou Santo Agostinho de Hippo o seu título, já pronto, para a sua grande obra cristã Civitas Dei.
24 O lado desagradável de um qualquer encontro recente.
25 Podemos apenas tentar adivinhar a razão desta explosão tão pouco própria do seu carácter. Teria Marco andado a reler a vida de Nero?
26 Muitos filósofos da escola Cínica defendiam que a virtude era o único objectivo da vida, contentavam-se com um mínimo de vestuário e afirmavam que a Natureza era o único livro que um sábio precisava de ler. Os Estóicos consideravam o seu próprio sistema como um ramo do Cinismo; o sátiro Juvenal, de facto, afirma, gracejando, que só se pode distinguir um estóico de um cínico porque o primeiro usa camisa (Sátira xiii, 121)
27 O Imperador Vespasiano morrera oitenta e dois, e Trajano, quarenta e quatro anos antes de Marco ascender ao trono.
28 Clotho, uma das três Fatas, é a que fia o fio da vida dos homens; Lachesis decide do seu destino; Atropos corta o fio quando eles têm de morrer.
29 Estas palavras não aparecem em qualquer das obras de Epicteto que chegaram até nós, mas sugeriram a Swinburne o verso, «A little soul for a little bears up this corpse which is man» (uma pequenina alma suporta por pouquinho tempo este cadáver que é o homem) no seu Hymn to Proserpine.
30 Com Esculápio, Marco aqui quer dizer qualquer consultor médico. O Esculápio original é mencionado por Homero simplesmente como «um excelente curador» que era pai de Machaon e Podalírio, os dois médicos do exército grego em Troia. Mais tarde ele aparece com a categoria de divindade, presidindo às artes da cura e venerado nos templos em toda a Grécia. As serpentes andavam em toda a parte associadas ao culto de Esculápio (a mudança periódica de pele que acontece com as cobras fez com que ela fosse considerada como um símbolo apropriado de saúde e vigor renovados); e o emblema do deus representando um bastão com uma serpente enrolada era frequentemente aposto pelos médicos no topo das receitas. É hoje muito conhecido como distintivo do Royal Army Medical Corps.
31 A referência é à chamada escola “céptica” ou pirrónica de filósofos, fundada por Pirro de Elis. Eles defendiam que as nossas percepções podem apenas mostrar-nos as coisas como elas parecem e não como são, e que portanto uma suspensão do julgamento é a única atitude correcta em qualquer caso.
32 Este parágrafo gira à volta do significado ambíguo da palavra “bens” (“goods” na tradução inglesa). O homem da rua entende-a como significando bens materiais, e não aquelas virtudes de carácter que são os verdadeiros “bens” da vida. Para um filósofo, por outro lado, a palavra tem este último sentido; e ficaria, portanto, intrigado com uma referência a alguém que «tem tantos bens que não lhe sobra espaço para tranquilizar o espírito».(Nota do tradutor da presente versão: a palavra portuguesa “bens”, neste contexto, corresponde por inteiro à palavra inglesa “goods”)
33 Mathew Arnold encontrou nestas palavras a inspiração para o seu soneto que começa, «“Mesmo num palácio a vida pode ser bem vivida“; assim falou o sábio imperial, o mais puro dos homens, Marco Aurélio».
34 Homero, Odisseia, iv, 690
35 Hesíodo, Trabalhos e Dias, v, 197.
36 De acordo com a crença estóica, a partícula de fogo divino que constitui a alma humana é alimentada pelo sangue.
37 O “velho amigo” fingiu bondosamente partilhar da noção da criança de que o pião era um tesouro apetecível e precioso. Da mesma maneira, diz Marco, devemos ser solidários com a tristeza dos outros, mesmo quando o nosso maior conhecimento nos diz que eles não sofreram nenhum mal real.
38 Vinho famoso da antiga Campânia. (Nota do autor desta versão portuguesa)
39 Referência desconhecida.
40 Ver nota 36
41 Uma explicação da teoria estóica da “tensão” é dada na introdução, pág. viii.
42 i. é, fornecer aquele elemento de baixeza contra a qual a nobreza se mostra mais claramente.
43 Filistion, Febo e Origanion são-nos desconhecidos; a linguagem sugere que são pessoas que tinham morrido recentemente. Eudoxo diz-se ter sido erudito em astrologia, medicina e leis. Hiparco foi um matemático de nome. A reputação científica de Arquimedes sobreviveu até aos nossos dias. Sobre o filósofo grego Menippo, Diógenes Laertio observa que «ele não publicou nada de memorável, mas os seus escritos estão cheios de humor e riso» (vi,99)
44 Isto é o significado de eudaimonia, a palavra grega para felicidade.
45 República, 486
46 Eurípedes, Bellerophon, Frag. 289
47 Fonte desconhecida
48 Eurípedes, Hypsipyle, Frag. 757
49 Eurípedes, Antíope, Frag. 207
50 Eurípedes, Frag. 910
51 Fonte desconhecida
52 Apologia, 28 B
53 Apologia, 28 E
54 Gorgias, 512 DE
55 Eurípedes, Chrísipo, Frag. 836
56 Eurípedes, Suplicantes, 1110
57 Fonte desconhecida
58 Em grego, literalmente “melhor derrubador”. A palavra aparece numa das histórias de Plutarco, onde um lutador espartano desanimado se queixa de que o seu adversário vitorioso não era «nada mais esperto, nem mais forte, apenas melhor derrubador». A história parece ter feito lembrar a Marco uma qualquer figura política da época.
59 Platão, citado por Epicteto.
60 Durante o reinado de terror dos Trinta, que se seguiu ao derrube da democracia em Atenas em 403 a. C., muitas pessoas inocentes foram mortas. Quando ordenaram a Sócrates, e a mais outros quatro, que prendessem um cidadão honesto, Leo de Salamis, ele recusou-se firmemente a cumprir a ordem dos tiranos.
61 Um dos gracejos de Aristófanes sobre Sócrates (Nuvens, 362)
62 Lucilla e Vero eram os pais do próprio Marco. Máximo foi o professor a quem ele se referiu com gratidão em I, 15, e Secunda, a mulher desse filósofo. Epitynchano e Diómito são desconhecidos. O imperador António, que era casado com Faustina, era pai adoptivo de Marco. Celer era secretário do imperador Adriano. De Chanax não sabemos nada. Com Demétrio, deve talvez referir-se a Demétrio de Faleron, o último dos famosos oradores e homens de estado a quem Marco se refere outra vez em IX, 29. Eudaemon diz-se que foi um astrólogo famoso.
63 Agripa e Mecenas eram os dois principais ministros de Augusto, dividindo entre si o encargo de gerir quase todos as questões públicas. O filósofo, Areio, era seu amigo pessoal e conselheiro .
64 Segundo Luciano, Panteia era amante, e Pérgamo um escravo libertado, de Vero, colega imperial de Marco.
65 Empedocles
66 Para cima e para baixo, isto é, mudando sucessivamente de fogo para ar, de ar para água, de água para terra, e depois de novo em sentido inverso, como Heráclito ensinava. (V. nota 18)
67 Ver nota 62
68 Nome genérico dos homens das tribos da região do Danúbio com que Marco e as suas legiões mantiveram uma guerra quase contínua.
69 Eurípedes, Frag. 890
70 Theaeteto, 174 D
71 Supõe-se que a palavra grega para lei (nomos) deriva de um verbo que significa distribuir (nemein).
72 Homero, Ilíada, vi, 147
73 Se estas palavras são autênticas e não foram inseridas mais tarde, são a única referência que Marco faz aos cristãos. C. R. Haines, contudo, na edição da Loeb das Meditações, observa que a frase está «marginal à construção, e, de facto, gramaticalmente incorrecta. Tem a forma de nota à margem e todo o aspecto de ser uma anotação acrescentada ao texto.»
74 Na tragédia de Sófocles Rei Édipo, o rei, ao aperceber-se, angustiado, da sua culpa, e com o sangue a correr-lhe dos olhos que ele próprio mutilou, exclama, «Ah, Cithaeron, Cithaeron, por que me protegeste? Por que não me levaste e me mataste logo?» Foi nas montanhas de Cithaeron, perto de Tebas, que ele, ao nascer, fora exposto pela mãe Jocasta.
75 Este, bem como os outros versos aqui transcritos, parecem ter tido um lugar especial na memória de Marco, que perdera quatro dos cinco filhos. Já os mencionou antes, em VII, 41.
76 Os três grandes poetas áticos daquilo a que se chama a “Comédia Antiga”, na era de Péricles, foram Cratino e os seus contemporâneos mais novos, Eupolis e Aristófanes. Todas as suas obras, excepto as de Aristófanes, se perderam; e, segundo o historiador Grote, se não tivéssemos estas diante de nós, «teria sido impossível imaginar a maneira desmesurada e impiedosa como a Comédia Antiga atacava os deuses, as instituições, os políticos, filósofos, poetas, cidadãos particulares e até as mulheres de Atenas.
77 Nos últimos tempos da carreira de Aristófanes, a licenciosidade da Comédia Antiga foi restringida por lei, e os escritores começaram também a dispensar os dispendiosos serviços do coro, abrindo assim caminho à Média Comédia (400-388 a.C), donde já desapareceu o coro e onde os tipos — o soldado, o avarento, o cortesão — tomam o lugar de pessoas vivas como objecto do ridículo. Os autores mais importantes deste período, depois do próprio Aristófanes, diz-se que foram Eubulo, Antiphanes e Alexis.
78 A Comédia Nova nasceu depois de Atenas ter ficado submetida à Macedónia, e foi um desenvolvimento da Média. Os políticos foram excluídos do palco, e as intrigas amorosas de personagens fictícios tornaram- se o tema principal. Neste grupo de escritores, a figura proeminente é Menander, que escreveu para cima de uma centena de comédias e foi confessadamente imitado pelos poetas romanos Plauto e Terêncio.
79 Tanto na Grécia como em Roma, a comédia convencional foi sempre menos popular do que os Mimos, em que a acção era retratada pelos movimentos e gestos de um único actor enquanto o coro recitava o texto correspondente. Os mimos de Sophron (420 a.C.) foram durante muito tempo o divertimento favorito dos gregos; e em Roma, este tipo de diversão tornou-se tão popular no tempo de Augusto e dos seus sucessores, que por fim praticamente suplantou o teatro autêntico.
80 Esta imagem de uma esfera, que simboliza a plenitude e a perfeição, é uma imagem favorita de Marco; compare-se VIII, 41, e XII, 3 (onde ele atribui a metáfora a Empedocles). Horácio também descreve de maneira semelhante o homem bom como “totus teres atque rotundus” (Sátiras II, 7, 86).
81 General e homem de estado ateniense acusado de traição e condenado à morte pelo povo. Perguntado se tinha uma última palavra a dizer, respondeu; «Apenas que não tenho qualquer rancor contra os atenienses.»
82 Marco já observou (X, 10) que a supressão dos mais fracos pelos mais fortes é sempre, rigorosamente falando, um acto de roubo; embora possa muitas vezes revestir formas que não são, em sentido nenhum, moralmente vergonhosas. Se tal supressão fosse eo ipso vergonhosa, seria um mal; e o próprio Marco seria culpado de muito mal, no simples desempenho dos seus deveres imperiais como juiz e guerreiro.
83 Apolo, deus da lira, presidia às nove Musas que eram as divindades inspiradoras da poesia, da música e das artes.
84 Marco avisa desta maneira os filósofos para não trocarem a tranquilidade das suas próprias almas pelas perturbações do mundo.
85 Nunca se encontrou registo deste episódio. Sabemos, contudo, que Sócrates, coerentemente, recusou as provocações de Xantipe. Segundo Diógenes Laertio, uma vez perguntaram-lhe se ele não achava aquelas suas contínuas censuras intoleráveis. «Achas que o quá-quá dos teus patos é intolerável?» disse ele. «Não,» foi a resposta, «porque eles fornecem-me os ovos e as crias.» «Também ela me dá filhos,» respondeu Sócrates a sorrir. Marco pode estar a referir-se a qualquer exemplo semelhante de tolerância a que ele tão frequentemente se exorta a si mesmo.
86 Fonte desconhecida
87 Homero, Odisseia, iv, 413
88 Hesíodo, Obras e Dias, 185 (adaptado)
89 Epicteto, iii, 24, 87
90 Epicteto, 91
91 ibid., 92
92 ibid., iii, 22, 105
93 Os Estóicos acreditavam que as estrelas eram divinas.